Da desnecessidade de quitação dos débitos pretéritos para transferência da titularidade das faturas de água e de energia elétrica
É totalmente ilegal a negativa de transferência da titularidade de titularidade das faturas de água/luz/gás sob a alegação de existência de dívidas pretéritas.
segunda-feira, 9 de agosto de 2021
Atualizado às 08:17
É comum encontrar nos contratos de locação uma cláusula prevendo a necessidade de transferência para o inquilino da titularidade das faturas de água e de energia elétrica. Tal situação se concretiza tanto por autorização legal (art. 23, VIII 1, da lei de Locação Urbana) como por garantia de que o nome do locador não terá pendências caso o locatário venha a ser devedor perante as concessionárias responsáveis pela prestação dos serviços.
Contudo, não raro, após a saída do imóvel por parte do locatário, o proprietário se depara com faturas em aberto, enfrentando dificuldades - impostas pela concessionária - para transferir novamente a titularidade das contas para si. O fundamento utilizado é que somente após a quitação dos débitos pretéritos a modificação poderia se concretizar. Tal óbice gera dificuldades de ordem prática, vez que, permanecendo o inadimplemento, há um sério risco de suspensão no fornecimento do serviço, o que impossibilitaria a relocação do imóvel.
Todavia, ao contrário do que as concessionárias sustentam, na realidade, a responsabilidade pelo adimplemento das faturas de água e de energia elétrica é personalíssima, ou seja, o adimplemento deverá ocorrer por quem efetivamente utilizou o serviço prestado, não se tratando, portanto, de uma obrigação propter rem (que decorre propriedade da coisa). Neste seguimento, ao contrário de dívidas condominiais, por exemplo, que seguem a sorte do bem principal, por decorrerem de obrigações reais, os débitos de água e energia elétrica somente podem ser cobrados dos consumidores que efetivamente os utilizaram e que possuem seu nome registrado na fatura, diante de sua indiscutível natureza pessoal, sendo que a negativa de transferência pautada na necessidade de quitação dos débitos se mostra abusiva e inviável do ponto de vista jurídico.
Dito isto, tem-se que a exigência de quitação por parte de terceira pessoa se configura em abuso de direito, sendo que, ao procederem com a cobrança das pendências de quem não possui responsabilidade sobre a utilização anterior dos serviços, as concessionárias acabam por violar diretamente o que dispõe o art. 42, parágrafo único 2, do Código de Defesa do Consumidor, ensejando, em caso de pagamento, a repetição em dobro do indébito.
De tais disposições, também se extrai que, caso a negativa persista, mostra-se viável o ajuizamento da competente ação de obrigação de fazer, com pedido de urgência, a fim de concretizar a transferência da unidade consumidora. De mais a mais, mostra-se possível pleitear, inclusive, o arbitramento de indenização por dano moral, cujo respaldo se encontra no fato de se tratar de um serviço essencial, e que, portanto, deve ser prestado de forma eficiente, adequada e segura ao consumidor (art. 22 3 do Código de Defesa do Consumidor), sendo que a privação de acesso aos serviços essenciais possui o condão de atrair o dever de indenizar 4.
Caso o proprietário demonstre que, diante da exigência indevida de quitação prévia dos débitos para transferência de titularidade das faturas, resultaram prejuízos, como a frustração da formalização de um novo contrato de locação, nada impede a cobrança de perdas e danos, a fim de buscar ressarcimento pelo que deixou de ganhar e demais prejuízos demonstrados por conta da conduta ilegal da concessionária.
Sendo assim, não existe razão para a negativa de transferência da titularidade da unidade, ainda que existam débitos pendentes de adimplemento, pois a pessoa que deu causa ao inadimplemento ainda continuará na condição de devedora, devendo ela ser cobrada por meio da devida ação, não se mostrando possível proceder com a cobrança em face de terceiros alheios à relação contratual.
É importante frisar que o entendimento dos Tribunais tem sido no mesmo sentido exposto, de que a responsabilidade pelo pagamento é de quem se utilizou do serviço, não vinculando ao proprietário do imóvel ou ao terceiro o pagamento, pelo que, consequentemente, não há impedimento à transferência, conforme se vê:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E COLETA DE ESGOTO. AÇÃO DE COBRANÇA. DÉBITO DE TERCEIRO. OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PESSOAL. RESPONSABILIDADE DO CONSUMIDOR QUE EFETIVAMENTE SE UTILIZOU DO SERVIÇO.
1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, a obrigação de pagar o débito referente ao serviço de fornecimento de água e coleta de esgoto se reveste de natureza pessoal e não propter rem, não se vinculando, portanto, à titularidade do imóvel. Assim, o atual usuário do serviço ou o proprietário do imóvel não podem ser responsabilizados por débitos de terceiro que efetivamente tenha-se utilizado do serviço.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1444530/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/05/2014, DJe 16/05/2014).
Assim, é totalmente ilegal a negativa de transferência da titularidade de titularidade das faturas de água/luz/gás sob a alegação de existência de dívidas pretéritas, pois se está diante de uma obrigação pessoal e não derivada do imóvel ou da propriedade sobre a unidade, sendo possível a mudança de titularidade independentemente da existência ou não de dívidas dos inquilinos anteriores, os quais, conforme ressaltado, por disposição legal expressa (art. 23, VIII 5, da lei de Locação Urbana), são pessoal e diretamente responsáveis pelo pagamento dos serviços que usufruírem durante a vigência do contrato de locação.
1 Art. 23. O locatário é obrigado a: [...]
VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e esgoto; [...].
2 Art. 42 [...] Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
3 Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.
4 TJPR - 12ª C. Cível - AC - 1338245-7 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA IVANISE MARIA TRATZ MARTINS - Unânime - J. 14.10.2015.
5 Art. 23. O locatário é obrigado a: [...]
VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e esgoto; [...].
Mayara Santin Ribeiro
Advogada, membro do escritório Reis & Alberge Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UCM e pós-graduanda em Direito das Famílias e das Sucessões pela UTP.