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Entre expressões, totens e tabus: derrubando estátuas ou histórias?

O Ocidente tem lidado, em diversas de suas principais cidades, com uma nova espécie de manifestação pública: a derrubada de estátuas e monumentos, sob o fundamento de que representariam protagonistas de atitudes moralmente injustas, ilícitas ou ilegítimas.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Atualizado às 14:27

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 3 de julho deste ano, o Winnipeg Free Press e o Winnipeg Sun, principais matutinos da cidade canadense que lhes dá o nome, estamparam a depredação e derrubada da estátua da Rainha Elizabeth II, antes situada em frente ao edifício da Assembleia da Província de Manitoba, pela força de cordas e braços de cidadãos locais. Um dos protagonistas da manifestação clamava, em um misto de alívio e destemor: "Ela (a Rainha Elizabeth) não significa nada para mim, exceto que sua política e seu colonialismo restringem nosso agir até este instante, no qual falamos".

Em Boston, Minnesota, Richmond, Londres, e São Paulo, estátuas de personagens tão distintos quanto militares Confederados, o ex-presidente estadunidense Andrew Jackson, o explorador Cristóvão Colombo, o bandeirante Borba Gato, ou mesmo o ex-primeiro ministro inglês Winston Churchill e o ativista e nacionalista indiano Mahatma Gandhi, sofreram ou foram ameaçadas de destituição de seus pedestais em parques, avenidas e na entrada de prédios públicos, onde estiveram, frequentemente, por várias décadas.

O Ocidente, em especial aqueles países de origem anglo-saxã, têm lidado, assim, recentemente, com essa espécie de ato público de proporções inovadoras, ao menos em seu simbolismo. A derrubada de construções que vangloriam as conquistas de figuras de outrora ou atuais, frequentemente adjetivadas como escravagistas ou preconceituosas, tem insuflado manchetes, debates, prisões e um punhado de ações judiciais.

A questão parece não haver ainda alcançado os dockets das Cortes Supremas, quanto à possível proteção constitucional de referido comportamento, diante do alegado, por tais protagonistas, exercício da prerrogativa constitucional da liberdade de expressão. A questão é fustigante e novidadeira, merecendo, ao menos, um breve e seminal olhar.

A dúvida constitucional, que pode parecer simplória à primeira vista, em verdade propicia uma série de questionamentos. Nosso objetivo é apenas pontuá-los, sem exceder os limites desta Coluna.

A primeira interrogação parece dizer respeito ao próprio limite da liberdade de expressão enquanto direito fundamental em nações democráticas. Sua delimitação, sem sombra de dúvidas, é tarefa complexa e multifacetada.  Abrange, assim, diversos vieses e pensamentos. A sua simples evocação, como justificadora para os ataques, ainda que pautada em dispositivos constitucionais de ampla densidade, ou seja, plurívocos, não parece ser suficiente para a autorização que se procura.

Diante de uma Constituição principiológica e extensa como a brasileira, diversos grupos políticos e sociais poderiam pautar-se em trechos seus, para promover a derrubada de quase literalmente todo tipo de estátua, de personagens de ideologia comunista (afinal a livre concorrência e a propriedade privada estão protegidas no art.170, caput) a mercantilistas ou políticos conservadores. Qualquer sujeito, assim, que não pareça, ao juízo de alguns, ter sua imagem vinculada à redução de desigualdades, à defesa da paz, ou a tantos outros ideais republicanos e democráticos, poderia ser objeto de atos que adjetivados de "fomentadores de debates", resultariam - paradoxalmente sem diálogo prévio - na supressão de bens públicos, comumente acompanhada de fogo e destruição.

Nenhum matiz de pensamento passaria incólume, seria mais fácil banir estátuas, talvez até a cruz cristã precisasse sumir de pátios e igrejas. Enfim, não parece possível, prima facie, afirmar que estariam protegidas as ações pautadas em valores constitucionalmente assegurados simplesmente. O que não nos impede de afirmar, duplamente, que certas posturas - como a exaltação a torturadores, de forma alguma encontrariam guarida, e que, além disso "os elementos da paisagem urbana e sua visualidade permitem que os transeuntes interpretem, no campo simbólico ou cognitivo, imagens, memórias e histórias da cidade ou do país". 1 Razão pela qual se deve prezar pela construção de uma atmosfera que esteja distante de graves controvérsias.

A questão é que esses monumentos já foram erguidos, sua interpretação pode ser complexa e enfrentar forte dualidade, assim como, a amplitude demasiada do direito à manifestação poderá gerar um abate genérico e desagregador de ícones e outras construções. Basta imaginar a derrubada do Monumento à Independência, na Praça do Ipiranga, em São Paulo, por alegações fundamentadas de fomento à memória colonialista nacional.

O problema, porém, não está na extensão constitucional. Os Estados Unidos e sua constituição breve, com seus poucos artigos, que não totalizam mais de 4.400 palavras (a brasileira tem mais de 64 mil palavras), sofrem com igual dilema. A mentalidade no sistema jurídico da common law, baseada em precedentes que reconhecem ou restringem direitos fundamentais, também tem profundas dificuldades em manejar a liberdade de expressão.

Há franca tendência liberal da Suprema Corte daquele país, que admite manifestações de opinião tão extravagantes quanto a queima de cruzes em gramados e passeatas públicas exaltando movimentos arianos em áreas de colonização judaica. Bem como o reconhecimento em Pleasant Grove City v. Summum de que monumentos públicos representam expressão governamental e sua escolha estaria protegida, não sendo possível forçar um governo a erguê-los ou expô-los mediante solicitação particular, bem como a retirá-los por serem significantes de ideias únicas, em desatenção ao seu significado comumente plurívoco. 2

Já no âmbito de alguns estados-membros, manifestantes que promovem a derrubada de estátuas têm sido processados pela lesão ao patrimônio público, enquanto em outros, as assembleias têm discutido e aprovado leis estaduais que ora as protegem 3, enquanto monumentos históricos - seja qual for a história contada; ora determinam a pura e simples remoção, dando resposta, assim, às solicitações de certos grupos da sociedade melhor representados nos parlamentos locais.

Particularidades brasileiras precisam ser destacadas. Tem-se convivido hodiernamente com a mudança de nomes de ruas, praças e avenidas, que foram erguidas e nomeadas em homenagem ao passado autoritário, pré-88, com nomes de militares e outras personalidades da época. Tais mudanças foram bem recebidas, não havendo rejeição, salvo raras exceções, como no caso da Vereadora Marielle Franco, fruto, notadamente, do momento atual de forte divisão político-partidária.

A Constituição assegura ainda a proteção ao patrimônio cultural, ao afirmar, em seu art.216, que "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:" e em seu inciso IV "as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;". Logo,  "O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação." A proteção não se limita a um determinado grupo de monumentos e nem é privilégio de certas classes sociais 4.

À vista dessas breves considerações, talvez o melhor modelo constitucionalmente adequado para o Brasil seja, atualmente, a remoção apenas mediante aprovação de lei federal, estadual ou municipal, a depender da origem do monumento e a natureza do espaço público no qual esteja incluído. A Constituição nitidamente exige que trechos da memória nacional sejam preservados, devendo ao invés de serem destruídos, serem direcionados a museus ou outros pontos das municipalidades.

Desse modo a história permaneceria sendo contada, a destruição seria evitada, e a vontade pública poderia ser expressa pela aprovação, nos fóruns adequados para discussão e deliberação pública - os parlamentos, suas audiências públicas e comissões especiais -, mediante a proposta de qualquer um de seus membros, iniciativa do executivo ou popular, alcançando, assim, todas as parcelas da sociedade civil.

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1 BENEDITO, Reginaldo. Sentido político da toponímia urbana: ruas com nomes de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar brasileira. Patrimônio e memória, (São Paulo), (v.8, n.1), jan-jun. 2012. p. 161-162.

2 Op. Cit. "In sum, we hold that the City's decision to accept certain privately donated monuments while rejecting respondent's is best viewed as a form of government speech. As a result, the City's decision is not subject to the Free Speech Clause, and the Court of Appeals erred in holding otherwise. We therefore reverse. It is so ordered."

3 Há registros de leis aprovadas proibindo a remoção em Virginia (apenas aplicável a monumentos construídos posteriormente a 1997), Alabama, Georgia, Mississippi, Carolina do Norte e Carolina do Sul.

4 DVORÁK, Max. Catecismo da preservação de monumentos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 86-87

Hugo Moreira Lima Sauaia

Hugo Moreira Lima Sauaia

Doutor em Direito Constitucional - USP. Mestre em Direito Constitucional - IDP. Advogado com atuação em São Luís, Brasília e São Paulo. Professor, pesquisador e autor de livros e artigos.

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