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Eleições 2022: o acesso à informação digital como instrumento para o exercício consciente do direito ao voto

Até um passado recente o acesso à informação era restrito, o que dificultava, também, o exercício consciente do direito ao voto. Entretanto, esse paradigma foi rompido pelo acesso à informação digital.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Atualizado às 10:44

 (Imagem: Imagem Migalhas)

(Imagem: Imagem Migalhas)

Até um passado recente a obtenção de informações instantâneas e completas, sobre os mais variados temas e seguimentos, mas especialmente sobre o exercício das atividades de políticos (nisso incluído as informações sobre exercício das funções em si, bem como sobre os gastos públicos no exercício da função, caso seja um eleito) e/ou sobre a gestão pública (gastos, orçamentos, propostas legislativas, entre outros); e a comunicação direta entre eleitor e eleito, eram dificultosas. Isso porque a vigilância, a fiscalização e a cobrança popular eram limitadas, basicamente, às mídias de massa e ao que por elas era divulgado (de acordo, por vezes, com os interesses delas), e a alguns privilegiados financeiramente (já que esse tipo de conduta demandava gastos e tempo) e/ou bravos cidadãos que se dispunham à peregrinação de se dirigirem aos órgãos estatais para solicitar informações, fiscalizar, criticar, cobrar a adoção de medidas voltadas ao atendimento dos anseios e necessidades da sociedade, fazer sugestões, entre outras hipóteses. Essas dificuldades eram benéficas e confortáveis aos políticos, já que, pela falta de acesso generalizado à informação, eles podiam construir e sustentar narrativas deturpadas e/ou inverídicas, com a finalidade de ludibriar a população para se manterem no poder. 

Esse paradigma foi rompido pela reconfiguração informacional decorrente da evolução e disseminação das tecnologias da informação e comunicação (TICs). Isso porque, atualmente, qualquer pessoa com acesso e educação para o acesso à informação digital pode buscar informações sobre candidatos e eleitos, bem como sobre a gestão pública - inclusive para apontar eventual irregularidade, excesso, desvio, etc., e propor e/ou cobrar a adoção de medidas por parte dos gestores públicos - e, consequentemente, fazer uso dessas informações para formar a sua convicção no momento de escolher os candidatos em eleições futuras.

Entretanto, conforme aponta Pedro Demo, essa nova configuração social (denominada de Sociedade da Informação), decorrente da reconfiguração informacional, é ambivalente. Isso porque, ao mesmo tempo em que ela tem a possibilidade de permitir a emergência de processos criativos, inovativos e emancipadores por meio do acesso à informação e do conhecimento, é possível que essas mesmas ferramentas sejam utilizadas para construir um processo de imbecilização1, especialmente por meio da desinformação decorrente da manipulação da informação, gerando uma "[...] coerção muito bem construída, tão bem que nem se percebe como tal"2, muitas das vezes em prejuízo da cidadania e da supremacia do bem comum. 

Nesse sentido, pode-se dizer que, na atual conjuntura, as classes hegemônicas - consubstanciadas nas grandes corporações, especialmente indústrias e mídias de massa, e na classe política -, aproveitando-se do contexto informacional e do controle que (ainda) conseguem exercer sobre a produção e o acesso à informação, impõe aos subalternos (a população, no caso), um discurso interpretativo dominante pela constante e reiterada transmissão e divulgação de desinformação, que geralmente tem a carga de dominação inflada e incrementada por políticos, jornalistas, editores, professores, estudantes, influenciadores digitais, entre outros, que o disseminam e o corroboram como um discurso (dominante) verdadeiro. 

É no nível do discurso interpretativo dominante, segundo Alain Touraine, que se impõem as regras, que se concedem privilégios de escuta a alguns e não a outros, a ponto, inclusive, de estes, por vezes, até considerarem "[...] como natural e objetivo aquilo que não é senão o resultado de uma construção de uma realidade social repousando exclusivamente sobre ela mesma e sobre a importância de seu papel"3, já que "[...] ele levanta barreiras que não têm qualquer existência oficial, mas difíceis de serem superadas; ele restringe o conhecimento dos fatos ao lhes dar uma interpretação a priori"4. 

Considerando essas circunstâncias e, guardadas as devidas proporções, pode-se falar da importância da informação e do acesso a ela, especialmente em eleições, fazendo um paralelo com relação à importância numa guerra.

A guerra é travada somente no campo de batalha? Não! Por detrás dos soldados que combatem no campo de batalha há dezenas, centenas, milhares de pessoas que trabalham com informação e contrainformação e/ou que têm a tarefa de obter informações e estratégias do inimigo, de modo a traçar as próprias estratégias de defesa e de ataque. Situação parecida ocorre nas eleições. Enquanto os políticos vão às ruas, participam de comícios e eventos para discursarem e apresentarem as suas narrativas e propostas, diversas pessoas, direta ou indiretamente ligadas ao político e/ou à campanha, trabalham com informação e contrainformação com os mais variados fins (especialmente para auxiliar ou prejudicar a campanha). 

Nesse contexto de informação e contrainformação em tempos de guerra, Andrew Roberts apresentou a visão geral secreta do propósito da PWE (Political Warfare Executive)5 e a importância que se dava a esses aspectos informacionais por meio da transcrição de um trecho de uma carta escrita pelo tenente-coronel R. L. Sedgwick: "O quarto braço de combate, a Guerra Política, ataca a mente. As principais forças que emprega são os elementos insatisfeitos em países inimigos ou ocupados por inimigos. Engane seu inimigo, solape seu esforço de guerra, ganhe a guerra das ideias"6. Essa estratégia de guerra, ainda segundo o disposto na carta de Sedgwick, deveria ser feita por meio de "[...] suborno de jornais, intriga por meio de mulheres, lisonjas pessoais, disseminação de dissensões internas; o pobre devia ser lançado contra o rico, o jovem contra o velho, o soldado contra o general"7. Na guerra era necessário desinformar para "[...] enganar e intimidar o inimigo"8. 

No Brasil, ao longo dos últimos anos, uma guerra política-ideológica - na qual há o uso de informação, contrainformação, desinformação e notícias falsas -, tem sido travada e tende a se intensificar nos próximos meses em decorrência da corrida eleitoral de 2022. No momento, o principal e mais preocupante ponto nesta "guerra" é o ataque - especialmente por meio de desinformação e notícias falsas - que políticos têm feito ao sistema eleitoral brasileiro - e, consequentemente, à democracia -, mais especificamente com relação à segurança, integridade e transparência das urnas eletrônicas. É nesse contexto que se evidencia o acesso à informação digital como instrumento para o exercício consciente do direito ao voto.

O atual paradigma de acesso à informação (digital) abre um leque de "mundos possíveis" à sociedade num todo, mas, especialmente, a uma população eventualmente subjugada por alguma forma de controle (poder, dominação legítima e/ou hegemonia). Nessa perspectiva vislumbra-se a possibilidade do autoconhecimento - apontado por Maria Tereza Uribe de Hincapie como pressuposto para a emancipação social9. Isso porque, o indivíduo com acesso à informação digital passa a ter a possibilidade de não mais circunscrever o seu ponto de vista ao que é transmitido pela esfera pública das mídias de massa, pelos políticos e/ou por terceiros envolvidos/interessados. Há a possibilidade de ele se livrar das amarras informacionais, das narrativas e dos discursos interpretativos dominantes10 (especialmente difundidos pelas mídias de massa, grupos dominantes e políticos), que por vezes estão carregados de parcialidade e ideologias voltadas a deturpar a realidade e a atender aos interesses políticos e econômicos próprios e/ou de terceiros, em prejuízo dos interesses da população, da supremacia do bem comum. 

Nesse sentido, vislumbra-se a possibilidade do rompimento da "[...] hegemonia de um único discurso sobre o que é público, oferecendo como contraponto uma miríade de vozes (opiniões) emergentes"11, para que a pessoa, conjugando a sua experiência pessoal e social com as informações digitais acessadas, recebidas, buscadas e verificadas, possa perceber e compreender determinadas situações e o contexto em que elas estão inseridas, especialmente no sentido de compreender os fins que são buscados pelos agentes/servidores públicos, de modo a verificar se eventualmente são prejudiciais à coletividade, opressoras, discriminatórias, excludentes, etc., ou benéficas à coletividade, ao bem-comum, ao bem estar-social. 

Além do autoconhecimento, vislumbra-se, também, a emergência do elemento do reconhecimento - também apontado por De Hincapie como pressuposto para a emancipação social12. Isso porque, a maior liberdade de acesso, produção, criação, compartilhamento e distribuição da informação digital, sobre os mais variados aspectos e setores da sociedade, permite a ampliação do uso da palavra pública para que a situação enxergada - por meio do autoconhecimento -, por exemplo, como discriminatória, opressiva, excludente e/ou maléfica aos interesses da coletividade, seja exposta na esfera pública, especialmente por meio digital - atingindo, consequentemente, a esfera geográfica - de modo que os demais indivíduos também tomem ciência dela e, por meio do uso da palavra pública (tanto digital como pessoalmente) organizem movimentos, atos e protestos; ocupem o espaço público (tanto no âmbito virtual como no geográfico), para se defrontarem com os grupos hegemônicos (não de forma violenta, mas sim como demonstração de poder democrático), de modo a buscarem e exigirem alternativas à situação apresentada; bem como para que exerçam um maior e mais efetivo controle e fiscalização das instituições públicas e dos governos, gerando, por consequência, dessa emancipação social, reflexos na política, na democracia e no desenvolvimento.  

Considerando a atual cenário de acesso à informação (digital) e o contexto pré-eleitoral no Brasil, vislumbra-se a possibilidade de a população brasileira - que, num passado não muito distante, estava limitada ao recebimento de informações parciais, deturpadas e/ou inverídicas - revitalizar o exercício da titularidade da soberania democrática por meio da emancipação social decorrente autoconhecimento e do reconhecimento propiciados pelo acesso à informação digital e, consequentemente, de proteger e fortalecer o regime democrático brasileiro por meio do exercício consciente do direito ao voto.

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1 DEMO, Pedro. Ambivalências da sociedade da informação. Ci. Inf., Brasília, v. 29, n. 2, p. 37-42, ago.  2000, p. 39. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-19652000000200005&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 02 nov. 2019.

2 Ibidem, p.40

3 TOURAINE, Alain. Pensar outramente o discurso interpretativo. Trad. Francisco Morás. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 25.

4 Ibidem, p. 27.

5 PWE (Political Warfare Executive), órgão responsável por mentir profissionalmente pela Grã-Bretanha e conduzir a guerra de propaganda secreta contra a Alemanha. O objetivo do órgão era abastecer os alemães de rumores desmoralizantes por quaisquer meios de comunicação, mas dando-se preferência à transmissão radiofônica para disseminar informações falsas e desinformações na Alemanha, como se tivessem origem nela própria[5]. ROBERTS, Andrew. Hitler & Churchill - Segredos da liderança. Trad. Maria Luíza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 138.

6 Ibidem, p. 139.

7 Ibidem p. 139.

8 ASSANGE, Julian. Cypherpunks - Liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Boitempo, 2013.

9 DE HINCAPIE, Maria Teresa Uribe. Emancipação social em um contexto de guerra prolongada: o caso da Comunidade de Paz de San José de Apartadó, Colômbia. Trad. Manuel Del Pino. In SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 223/224.

10 "É neste nível intermediário, aquele do discurso ideológico dominante, que se operam as escolhas intelectuais, que se forjam as condições de comunicação, as quais impõem as regras, concedem um privilégio de escuta a alguns e não a outros, e às vezes chegam até mesmo a fazer considerar como natural e objetivo aquele que não é senão o resultado de uma construção de uma realidade social repousando exclusivamente sobre ela mesma e sobre a importância de seu papel". TOURAINE, Alain. Pensar outramente o discurso interpretativo. Trad. Francisco Morás. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 25.

11 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 60.

12 DE HINCAPIE, Maria Teresa Uribe. Emancipação social em um contexto de guerra prolongada: o caso da Comunidade de Paz de San José de Apartadó, Colômbia. Trad. Manuel Del Pino. In SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 223/224.

João Felipe Oliveira Brito

VIP João Felipe Oliveira Brito

Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

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