Os impactos da pandemia de Covid-19 no contrato de engineering
É de suma importância que os contratos de engineering ou EPC sejam preservados, tendo em vista sua capacidade de promover bens e serviços importantíssimos ao desenvolvimento econômico e social do país.
terça-feira, 3 de agosto de 2021
Atualizado às 13:51
É inequívoco que os impactos causados pela pandemia de Covid-19 são extremamente abrangentes, atingindo as mais diversas relações nos mais diversos segmentos. O presente artigo, todavia, restringe-se aos impactos do coronavírus sobre o contrato de engineering ou EPC.
Entende-se por engineering o contrato que abrange a execução do empreendimento em sua totalidade. Nesse sentido, contempla a elaboração/apresentação de projetos de arquitetura e engenharia, fornecimento de mão de obra, montagem de equipamentos e a construção civil de uma determinada obra, de modo que seja colocada em funcionamento e entregue ao contratante uma indústria pronta e acabada.
Por abarcar no mesmo instrumento a elaboração do projeto, a montagem de uma indústria, com seus respectivos equipamentos e a construção civil de uma obra, é também conhecido como EPC (engineering, procurement e construction) ou contrato na modalidade turn key.
Como é sabido, a pandemia de Covid-19 levou muitos estados e municípios a adotar restrições, objetivando minimizar o avanço e disseminação do vírus. Além de grande impacto na contratação/movimentação de mão de obra, diante das restrições de acesso, e de dificuldades de obtenção de licenças para o desenvolvimento de projetos, a suspensão de atividades voltadas à indústria, comércio e transporte impactaram diretamente na disponibilidade de materiais e aquisição de equipamentos, o que levou em muitos casos à necessidade de reprogramação de fases/atividades e até mesmo suspensão dos trabalhos.
Tais questões geraram reflexos na execução das obras de modo geral e demais atividades compreendidas pelo contrato de engineering, principalmente no que diz respeito aos preços pactuados entre as partes e aos cronogramas para entrega de uma indústria concluída.
De acordo com José Carlos Martins, Presidente da CBIC, tendo como base dados disponibilizados pela Fundação Getúlio Vargas, "os preços do material de construção subiram no último ano 19,60%, enquanto alguns insumos tiveram aumentos acima de 50% no mesmo período. Ademais, observou-se grande impacto sentido em números no programa Casa Verde e Amarela (antigo Minha Casa Minha Vida), segmento extremamente afetado pelos aumentos" 1.
Ainda, nos termos de pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) quanto à dificuldade na aquisição de insumos, observa-se:
"Ao todo, 68% das empresas pesquisadas relataram dificuldades para comprar insumos no mercado doméstico. Ou seja, cerca de dois terços das indústrias. Pouco mais de 55%, que usam insumos importados, estão com dificuldades de compra-los no mercado internacional. E, para piorar, mais de 80% das indústrias perceberam que os preços subiram. Cerca de 30%, inclusive, disseram que a alta foi acentuada [...]. A sondagem especial da CNI mostrou ainda que 44% das empresas estão com dificuldades de atender aos pedidos dos clientes e as principais razões apontadas são a falta de estoque (47%), demanda maior que a capacidade (41%) e incapacidade de aumentar a produção (38%). Sendo que a incapacidade de produzir mais decorre da falta de insumo e a falta de insumo decorre do fato de que ninguém tem estoque, e assim segue-se em um círculo vicioso" 2.
Trata-se, assim, de intempéries ocasionadas por evento de força maior, o qual, assim como no caso de grandes desastres naturais, não poderia ser controlado ou previsto pelo ser humano, ao menos com as proporções e capacidade de trazer impactos em diversas áreas, como vem sendo observado.
Deste modo, que a pandemia de Covid-19 é um fato imprevisível e extraordinário, parece não restar dúvidas.
Diante deste cenário, inequívoco que tal fato configura causa para a revisão dos contratos de engineering ou EPC, objetivando-se, principalmente, que o desequilíbrio contratual e eventual enriquecimento indevido de uma das partes em flagrante detrimento da outra sejam devidamente afastados.
No caso concreto, todavia, é essencial que seja realizada, a princípio, análise detalhada sobre o contrato de engineering ou EPC, objetivando-se verificar a existência de cláusulas que disponham sobre caso fortuito e força maior, ou quanto a hipóteses de onerosidade excessiva. Inexistindo cláusula nesse sentido, aplicar-se-ão os instrumentos jurídicos dispostos no Código Civil Brasileiro, voltados à revisão contratual.
Nesse sentido, havendo impossibilidade de execução de quaisquer das fases dispostas no contrato de engineering ou EPC, no todo ou em parte, em razão da pandemia, as consequências do inadimplemento poderão ser mitigadas pelo caso fortuito ou força maior, o que proporcionará o afastamento da mora e seus efeitos, como por exemplo juros, multa, lucros cessantes etc.
Ademais, como é sabido, o contrato de engineering ou EPC é extremamente abrangente, de modo que envolve, nas palavras de Orlando Gomes, "a execução de um projeto, a montagem de unidades industriais e até mesmo assistência técnica nos primeiros tempos de funcionamento" 3. Diante disso, em contratos desta espécie entende-se, em regra, que a empresa de engenharia assume tanto os riscos atinentes ao projeto quanto ao fornecimento de insumos para a construção do empreendimento. Assim, tanto os riscos inerentes a dificuldades na execução do projeto inicial quanto os riscos de variação de preço serão a ela atribuídos.
No cenário excepcional da pandemia, entretanto, restando demonstrada a perda da equivalência (desequilíbrio) entre as prestações originalmente pactuadas, acarretando onerosidade excessiva para um dos contraentes, poderá a empresa de engenharia pleitear a revisão contratual. Assim, entendo que os custos com o aumento extraordinário do preço de materiais e insumos, diante do agravamento da doença, por exemplo, são plenamente aptos a permitir à empresa de engenharia contratada que pleiteie a revisão do preço global contratado em substituição à resolução contratual.
Importante salientar que tais institutos poderão ser invocados apenas no contexto dos contratos em que o cumprimento das obrigações ocorra posteriormente ao momento de sua constituição. Outrossim, é essencial que o vencimento da obrigação seja concomitante ou posterior à situação extraordinária e imprevisível.
Também é preciso esclarecer que a superveniência de uma situação excepcional, como a pandemia de Covid-19, não é, por si só, suficiente para justificar o inadimplemento das obrigações contratuais. Diante disso, é necessário que o requerimento seja sempre analisado caso a caso.
Ademais, tendo em vista que se trata de fato extraordinário que impacta e desequilibra os contratos em extensões diversas, não podendo ser aplicado de forma indiscriminada e sem a devida profundidade, é essencial que a parte prejudicada demonstre, de forma inequívoca, o grau dos efeitos da pandemia sobre o adimplemento das obrigações assumidas, os prejuízos sofridos, impossibilidades ou onerosidade gerados pela situação extraordinária. Outrossim, deve restar configurado o nexo causal, comprovando-se que o cumprimento da obrigação se tornou prejudicial, impossível ou mais oneroso justamente em decorrência dos efeitos da pandemia.
Quanto a este ponto, aduz Mariah Ferrari Pires:
É fundamental que donos de obra, construtoras e fornecedores tenham muito zelo e atenção na elaboração dos registros que comprovem os danos acarretados pelas medidas. Diários de obra, atas de reunião e relatórios mensais devem registrar os impactos, ou sua ausência no período de influência da pandemia. Esses registros passam a ter importância redobrada, pois vêm a ser uma das mais importantes provas que as partes podem produzir sobre a existência ou não de impactos causados pelo Covid-19 no cumprimento dos prazos contratualmente estabelecidos 4.
Destaca-se que diante das características das atividades que integram o contrato de engineering ou EPC, sua paralisação abrupta pode gerar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação às partes, uma vez que se trata de obras de grande porte, com longo prazo de planejamento e execução, além de envolver o dispêndio de valores significativos. Ademais, como é sabido, a interrupção da fase de construção civil pode gerar, inclusive, riscos de acidentes.
Outrossim, tendo em vista que o instituto é comumente utilizado para a construção de vultosas estruturas públicas no âmbito de construções habitacionais; tratamento de águas; desenvolvimento de grandes estabelecimentos industriais ou agrícolas; construção de hospitais, estradas etc, sua paralisação poderá gerar impactos relevantes à sociedade como um todo.
Deste modo, resta inequívoca a importância da revisão do contrato em espécie quando observados impactos em decorrência da pandemia, objetivando-se salvaguardar, além da saúde das pessoas, a saúde das sociedades empresárias, tendo em vista que o descumprimento maciço de tais contratos pode levar a uma crise sem precedentes em nossa economia.
Como bem salientado por Ana Frazão, "todos os esforços devem ser realizados para a manutenção do vínculo, ainda que com as devidas modificações. Embora não se observe incondicionalmente o princípio do pacta sunt servanda, há que se conter o oportunismo excessivo e se assegurar, dentro do possível, a continuidade do pacto, ainda que por meio da sua revisão ou adaptação" 5.
Por fim, salienta-se a importância da busca por uma renegociação voluntária do contrato, de modo que as partes alinhem seus interesses relativamente às consequências das limitações geradas pela pandemia, objetivando a mitigação de efeitos negativos, além de afastar a submissão à incerteza de uma revisão judicial.
Como é sabido, vivenciamos hoje em nosso país uma vultosa crise social e econômica, a qual, sem dúvidas, trará consigo conflitos em diversos âmbitos. É importante, assim, principalmente em decorrência do alto nível de judicialização observado em nosso país, que a empresa de engenharia contratada, a parte contratante, operadores do direito e o Poder Judiciário atuem em conjunto, objetivando a resolução de tais conflitos de forma célere, justa e eficaz, evitando-se um colapso ainda maior.
Ainda, essencial que as partes atuem com boa-fé, de forma flexível e com postura conciliadora e colaborativa, objetivando a conservação do contrato firmado e a consequente conclusão/entrega da indústria, perfeita e acabada, a qual, caso preservada, tendo em vista suas especificidades, promoverá bens e serviços importantíssimos ao desenvolvimento econômico e social do país.
---------
1 Agência Brasil. Aumento no preço de insumos para construção civil preocupa o setor. Disponível aqui. Acesso em 20.06.2021.
2 Revista Veja. Economia: Dois terços da indústria estão com dificuldade de comprar matéria-prima,2020. Disponível aqui. Acesso em 24.06.2021.
3 GOMES, Orlando. Contratos, 9. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 529.
4 PIRES,Mariah Ferrari. Os impactos legais da Covid-19 nos contratos de construção civil, 2020. Acesso em 20.06.2021.
5 FRAZÃO, Ana. Impactos da Covid-19 sobre os contratos, 2020. Acesso em 22.06.2021.