Sobre o julgamento antecipado parcial do mérito em sede recursal
Uma breve análise sob a perspectiva do REsp 1.845.542/PR - STJ.
terça-feira, 27 de julho de 2021
Atualizado às 09:05
Como bem se sabe a decisão que julga o mérito do processo normalmente dá-se ao fim da fase de conhecimento, que constituí a apresentação dos pleitos das partes em amplo contraditório, o saneamento e a fase instrutória.
Contudo, desde o ordenamento processual anterior (CPC/73), preenchidas hipóteses extraordinárias, permite-se o julgamento antecipado da lide, que, com a entrada em vigor do CPC/15, passou a ser tecnicamente denominado como julgamento antecipado do mérito.
Tal técnica encontra-se atualmente positivada no art. 355 do CPC/15 e aplica-se quando os pontos de fato relacionados com o mérito estejam maduros para julgamento e, portanto, seja desnecessária a dilação probatória, nas hipóteses em que: (a) incontroversos os fatos; (b) os fatos alegados na inicial forem impertinentes ou irrelevantes; (c) os fatos já estiverem suficientemente provados; e/ou (d) inadmissível a prova pretendida.1
Inovando a técnica, a fim de prestigiar os princípios da economia processual, da duração razoável do processo e da eficiência, o CPC/15 instituiu no ordenamento processual a figura do julgamento antecipado parcial do mérito, que, em suma, permite ao magistrado, observando determinados pressupostos e a possibilidade de cisão do pedido sem prejuízo dos remanescentes, julgar antecipadamente o mérito da causa, viabilizando, desde logo, a prestação da tutela jurisdicional.
Em decorrência desta inovação, que colocou fim à teoria da unicidade da sentença, surge a seguinte questão: tal técnica se aplica apenas em primeiro grau de jurisdição, dada a literalidade da norma, ou se estende aos tribunais em sede de recurso de apelação? É o que se buscará responder adiante sob a perspectiva do recente julgado do STJ2.
Julgamento antecipado parcial do mérito e o fim da teoria da unicidade da sentença
Sob a égide do CPC/73, por não haver hipótese expressa de possibilidade de cisão do julgamento do mérito, a doutrina majoritária adotava como prisma o princípio da unicidade da sentença. Ou seja, todos os pedidos deveriam ser julgados em conjunto.
Com a inclusão do §6º do art. 273 pela lei 10.444/023, parte da doutrina passou a defender que, muito embora o dispositivo tratasse de antecipação de tutela, a alteração legislativa autorizava o julgamento antecipado do mérito4. Contudo, tal entendimento não era aplicado pelos tribunais, de modo que, muito embora se reconhecesse que a decisão era proferida em sede de cognição exauriente, esta não era suscetível aos efeitos da coisa julgada material5.
O CPC/15 buscou pôr fim à essa controvérsia ao instituir na ordem processual civil brasileira a figura do julgamento antecipado parcial do mérito. Conforme redação do art. 356, o Código autoriza tal modalidade de julgamento quando um dos pedidos ou parte do pedido: (a) mostrar-se incontroverso (inc. I) ou (b) estiver em condições de imediato julgamento, seja por desnecessidade de dilação probatória ou por revelia (inc. II)6.
Em complemento, para aplicação da técnica de julgamento é imperativo que o pedido seja decomponível ou que os pedidos cumulados sejam autônomos e independentes.7
Neste sentido, estando o pedido dentro das hipóteses elencadas e, portanto, apto para julgamento imediato, poderá o magistrado aplicar a técnica de julgamento antecipado parcial do mérito, proferindo decisão de mérito com base em cognição exauriente, que será suscetível de imunidade pela coisa julgada após seu trânsito em julgado.
Vale destacar que o Código optou por tratar o julgamento como decisão e não como sentença, de modo que o recurso cabível é o agravo de instrumento (art. 356, §5º, do CPC/15). A opção do legislador rendeu críticas doutrinárias, pois, uma vez que o recurso de agravo de instrumento não possuí efeito suspensivo imediato, é muito mais vantajoso à parte que obtenha uma decisão antecipada parcial de mérito em detrimento de uma decisão final integral, posto que, desde que não acatado eventual pedido de efeito suspensivo do agravo de instrumento, a decisão poderá ser executada provisoriamente (art. 520 e ss. do CPC/15).
Com relação a parte do pedido ou demais pedidos cumulados que não foram julgados antecipadamente, o processo prosseguirá ordinariamente, com o devido saneamento e instrução probatória para o julgamento do mérito remanescente.
De tal forma, não só na prática como também na teoria, abandonou-se o princípio da unicidade da sentença, permitindo-se, destarte, que o mérito seja cindido e examinado em decisões proferidas no curso do processo.
A sistemática adotada visa evitar a morosidade do processo e garantir a economia, celeridade e efetividade, em consonância ao que dispõe do art. 4º do CPC/15, vez que, por se tratar de questão que prescinde de produção de prova, não há porque obrigar à parte que aguarde pelo julgamento do pedido remanescente que reclama dilação probatória.
Além do mais, a técnica prestigia o princípio da primazia do julgamento de mérito, consagrado nos arts. 6º e 488, ambos do CPC/15, segundo o qual o juiz, sempre quando possível, deverá dar preferência ao julgamento de mérito, em tempo razoável, em atenção, inclusive, à instrumentalidade das formas. O raciocínio teleológico, destarte, é muito claro, o magistrado deve optar por formar coisa julgada material e solucionar a controvérsia definitivamente em detrimento de adiar a resolução da demanda por motivos meramente formais.
Hipótese de julgamento antecipado parcial do mérito em sede recursal
Analisada sinteticamente a técnica de julgamento antecipado parcial do mérito consagrada pelo diploma processual, verifica-se agora a hipótese de extensão da técnica aos tribunais.
A priori, cumpre aclarar que, caso se interprete o tema exclusivamente sob o enfoque da literalidade da norma, concluir-se-ia que a técnica de julgamento antecipado parcial do mérito só poderia ser aplicada em primeiro grau de jurisdição. Isso porque a redação do art. 356 do CPC/15 cuida de sua aplicação no curso do processo de conhecimento.
No entanto, em recente acórdão da Terceira Turma do STJ, proferido nos autos do REsp 1.845.542/PR, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, fora afastada a aplicação literal da norma contida no art. 356 do CPC/15 para estender sua aplicação também aos tribunais, desde que presentes os requisitos para julgamento antecipado parcial.
Conforme o entendimento exarado pela Ministra relatora, "não se deve olhar para norma e ignorar os demais preceitos legais que compõem o digesto processual, bem como os princípios que orientam o processo civil brasileiro".
Por conseguinte, para que se garanta a aplicação da técnica em sede recursal, a norma do art. 356 deve ser interpretada de forma sistemática e finalística, por meio de uma análise teleológica do ordenamento processual, a fim de que se obtenha a reposta mais adequada e efetiva para o caso sub judice.
Em seu voto, a Ministra realizou uma correlação da técnica de julgamento antecipado parcial do mérito com a teoria da causa madura, positivada no art. 1.013, §3º, do CPC/15, que, em suma, autoriza o tribunal julgar prontamente o mérito quando da reforma de sentença prolatada sem exame de mérito, na hipótese de não haver mais o que se alegar ou provar a respeito da matéria e sendo o contido nos autos suficiente para cognição exauriente.
Neste sentido, para aplicação efetiva e integral do instituto da causa madura, perfeitamente coerente que se estenda a aplicação da técnica de julgamento antecipado parcial aos tribunais. Seria, inclusive, desarrazoado limitar a aplicação da técnica apenas ao primeiro grau sob uma perspectiva formalista. Como é cediço, em conformidade com a teoria da instrumentalidade defendida por Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover e diversos outros relevantes processualistas, o processo não deve ser um fim em si mesmo.
Destarte, o tribunal, ao cassar determinada sentença, verificando a existência de pedido cindível ou cumulado independe, e que esteja apto para julgamento, pode julgar de imediato a parcela "madura" e determinar o prosseguimento do pedido que reclama dilação probatória por meio de: (a) instrução complementar a ser realizada pelo próprio tribunal, conforme arts. 932, inc. I e 938 § 3º, ambos do CPC/15, ou (b) anulação do capítulo remanescente da sentença com o consequente retorno dos autos a origem a fim de que o juízo a quo retome a produção de provas.
A possibilidade de cisão do pedido para antecipação do julgamento pelas instâncias superiores, é uma forma de garantir a aplicação sistemática dos princípios prestigiados pelo CPC/15, vez que coloca como prioritária a decisão de mérito, e permite, desde logo, a prestação da tutela jurisdiciona.
Reflexões Finais
Notável, portanto, que a anulação do ato jurisdicional deve ser sempre a ultima ratio. E é isto que dispõe o art. 281 do CPC/15: "a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras que dela sejam independentes".
Sob tal prisma fora a conclusão exarada pela Terceira Turma do STJ: "aos tribunais também é dado aplicar a técnica do julgamento antecipado parcial do mérito". Ou seja, estando um dos capítulos viciados da sentença apto para imediato julgamento, e sendo ele cindível/independente, não há óbice legal que impeça o tribunal de julgar antecipadamente o pedido decomponível.
Destarte, ante tal possibilidade, reputa-se essencial a aplicação da técnica pelos tribunais, sempre a fim de garantir a devida prestação da tutela jurisdicional, em observância aos princípios constitucionais do processo civil supra destacados.
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1- DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. 3ª ed. São Paulo. Malheiros, 2018. p. 199.
2- REsp 1.845.542/PR. Terceira Turma. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. DJe 18/05/2021.
3- Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
§ 6 o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
4- NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 676.
5- REsp 1234887/RJ, Terceira Turma, DJe 02/10/2013
6- DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. 3ª ed. São Paulo. Malheiros, 2018. p. 199.
7- ARAÚJO, Luciano Vianna. O julgamento antecipado parcial sem ou com resolução de mérito. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Vol. 22, n. 1, jan.-mar/2020, p. 107
Bruno Caruso
Advogado no escritório Araújo e Policastro Advogados. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo - USP.