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Um passaporte exclusivo

Passaporte sanitário: é possível conciliar a proteção à saúde coletiva com os Direitos Humanos em um sistema de civil law em tempos de pandemia?

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Atualizado em 30 de julho de 2021 13:36

"Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad

Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel"

 

(Clandestino, Manu Chao)

Diplomático, comum, oficial, para estrangeiros e de emergência. São cinco os tipos de passaporte hoje emitidos pelas autoridades brasileiras, todos com base legal no decreto 5.978/2006. Por enquanto.

De lege ferenda, um novo tipo, exclusivíssimo, está sendo criado: o sanitário. Exclusivo porque não-inclusivo. Porque distinguirá os vacinados contra covid dos não-vacinados, que, como na música de Chao, terão suas vidas na prática proibidas simplesmente por no llevar papel. Aliás, nem de papel e nem passaporte é a nova nota distintiva apta a criar duas castas entre brasileiros; será moderna, digital, conectada, descomplicada e rápida. 

Trata-se do certificado digital de imunização, vulgarmente apelidado como "passaporte covid" ou "passaporte vacinal" ou "sanitário" criado pelo Governo Federal, através do Ministério da Saúde, pelo uso da plataforma ConecteSUS, a ser implementado para fins de apartamento humano pelos nossos distintos lawmakers por projeto de lei do Senado, apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS)1 e vários periódicos científicos, como o British Medical Journal (BMJ)2, não apoiarem a ferramenta por violar liberdades individuais; de mais de 45 Estados norte-americanos3 o rejeitarem e de a Casa Branca4 já ter oficialmente declarado que "não apoia e nem apoiará um sistema que requeira que americanos carreguem uma credencial" e que "a privacidade e os direitos dos americanos devem ser protegidos, de modo a que esses sistemas não sejam usados injustamente contra o povo" e asseverado que "não haverá banco de dados federal de vacinas e nenhum decreto federal exigindo que todas as pessoas obtenham um certificado de vacinação". No Reino Unido, mais de 70 parlamentares de todos os espectros políticos se posicionaram contra a implementação mandatória da ideia, que classificaram de "separatista e discriminatória"5. Tudo isso apesar de mais de haver fármacos à base de mais de 10 moléculas diferentes que a ciência6 tem mostrado serem de grande eficácia e segurança para o tratamento da moléstia.

A implementação da desastrosa medida em alguns países da União Europeia (UE) de perfil mais controlador onde esses pensamentos já ambularam nos períodos de dominação nazista, fascista e comunista criou um meteórico mercado ascendente de passaportes vacinais falsificados vendidos a preço de banana na internet7. Imagine-se então a tragédia de mercado clandestino que ver-se-ia no Brasil, terra infinitamente mais combalida em termos de segurança da informação e não menos cheia de aproveitadores.

Passaportes nos são exigidos nas fronteiras soberanias, quando estrangeiros somos. Mas este novo, tão exclusivo, tão típico do Polizeistaat - o Estado policialesco - nos será bizarramente exigido em nosso próprio território, pelos nossos próprios compatriotas, e teremos nossas vidas praticamente "proibidas" caso não queiramos nos inserir no novo regime de liberdade vigiada que esse passaporte cria e que pode facilmente descambar para outros tipos de controle, ainda mais perversos, invasivos e exclusivos, por um renovado Leviatã ávido de acesso à nossa vida privada e dados de saúde protegidos por sigilo constitucional. A exigência do certificado digital de imunização para que o indivíduo tenha acesso a recintos, serviços, transportes e atividades públicas e privadas simplesmente fulmina o respeito ao indivíduo e inverte a ordem da democracia: torna a liberdade exceção e o controle regra. E tudo "para o seu próprio bem", é claro. Cabe aqui então rogar que "Deus nos livre da bondade dos bons"...

Em descompasso com a universal e eterna Lei de Causas e Efeitos, a velha máxima aristotélica de que não há ônus sem bônus está sendo mais uma vez desafiada no plano das normas positivadas no Brasil pelos ancestrais pensamentos de autoritarismo, separatismo e soberba, flagelos milenários da miséria moral entranhados em quase todas as pessoas desde seus primeiros anos de vida. Essa maranha de mazelas humanas não é privilégio de legisladores nem ministros de cortes constitucionais (onde aqui surgiu a infeliz ideia de penalizar quem não concorda em se vacinar) compostas à base de courtpacking.

A pandemia do coronavírus revelou-nos uma outra pandemia: a do autoritarismo, do separatismo, da desigualdade e da exclusão, embalada pelo amálgama psicológico de todos esses pensamentos a nível mundial não só em mentes juridicamente graduadas, como nas de muitas pessoas afins com os traços despóticos dessa terrível pandemia; é dizer: das que não tenham sido defendidas pela sensatez, pela brandura da compaixão, e nem tenham sido instruídas quanto aos altos desígnios que a liberdade representa para cada indivíduo e para toda a humanidade.

Sim, existe um pequeno ditador dentro de cada um de nós, intolerante, impiedoso, e em alguns - talvez o caso dos que, paralisados pelo medo, ou cegos de ódio e ansiedade, já estão desesperados para saírem do isolamento (forçado ou voluntário) depois de mais de ano e meio de dita pandemia - esse ditador responde com vivas alvíssaras a cada vez que ronda algum parlamento, tribunal ou potentado tirano do orbe alguma pretensão de regramento inspirada por algum bem camuflado pensamento autoritário, segregacionista e que quer lhe fazer sentir superior aos que, a seus olhos, são uma escória humana insensível porque decidiram não tomar as vacinas experimentais - sim, caro leitor, todas elas são ainda experimentais, autorizadas apenas para uso emergencial, excepcional - que eles decidiram tomar.

Não pode o dileto leitor admitir que uma tal intolerância e soberba existam nas mentes dos pequenos tiranos que nos habitam? Peço então vênia para remetê-lo, como mero exemplo a recente publicação por sesquicentenário periódico francês8 do chocante discurso de ódio de um conhecido jornalista (Emmanuel Lechypre) que bem representa o que muitos mundo afora gostariam de dizer: "Os não vacinados, eu faria qualquer coisa para torná-los párias sociais. Estou esperando por eles, você será vacinado à força. Vou mandar dois policiais te levarem ao centro de vacinação. Você tem que ir buscá-los com seus dentes e algemas!". São palavras como essas as acariciadas mas não ditas por muitos brasileiros que, infelizmente, aplaudem o tal passaporte.

Ocorre que as tais vacinas têm - lamenta-se muito dizer - apresentado diversas reações adversas graves9, já registradas às centenas de milhares em todo o mundo, dentre as quais trombose, miocardite, pericardite, acidentes vasculares cerebrais, síndrome de Guillain-Barré e mortes10.

De justiça aferível por qualquer criança maior de cinco anos, a lógica, musa fatal que deveria inspirar a mente de todos nesses tenebrosos tempos de barbárie legislativa e eclipse constitucional inaugurados pelos descalabros jurídicos da prematura e malformada lei 13.979/2020, e que - espera-se - ilumine a mente do legislador do PL 1674/2021, é bastante singela: se o Estado brasileiro deu às multibilionárias companhias farmacêuticas desenvolvedoras das tais vacinas contra covid, além do bônus de bilhões de dólares como pagamento das doses, isenção de quaisquer ônus ou responsabilização por eventuais reações adversas por elas causadas, por serem ainda experimentais e sujeitarem seus tomadores a risco de morte - o que nas circunstâncias é até compreensível -, não pode esse mesmo Estado impor ônus aos cidadãos que, pelos mesmos exatos motivos, não se sentem seguros para tomá-las enquanto elas lhes sujeitarem a tais riscos. Mais ainda quando, ao se submeterem à vacinação, não sejam nem sequer oficialmente esclarecidos acerca de suas indicações e efeitos colaterais, com ausência de qualquer "consentimento informado", tão comentado e não posto em prática num caso de saúde coletiva. Àquelas companhias, um bônus sem qualquer ônus .

O art. 15 do Código Civil criou um direito individual: o de não se submeter a tratamento que lhe sujeite a risco de morte.

É princípio jurídico básico que ninguém pode ser penalizado pelo exercício regular de um direito. Isso se torna ainda mais rígido quando se trata de direitos inseridos na Constituição, como as liberdades de ir, vir, permanecer e ter igualdade de tratamento (proibição de discriminação), que não podem ser restringidas nem condicionadas por normas inseridas em textos legais inferiores à Constituição, como as leis ordinárias.

Essas liberdades, pensadas e inseridas na Constituição como cláusulas pétreas exatamente porque são garantias do indivíduo contra o Estado em suas muitas facetas autoritárias, são uma conquista da cidadania e da civilização, lograda com lutas de sangue e honra.

Logo, a pessoa que recusa vacinas que sujeitam a risco de morte não pode ser obrigada pelo Estado a tomá-las, porque tem direito a manter sua vida e sua saúde incólumes; muito menos pode ser direta ou indiretamente penalizada ou privada de direitos e oportunidades e nem ser excluída de nenhuma situação ou atividade da vida social por exercer esse direito legal seu.

Além disso, o uso registro digital de imunização da forma como previsto no PL quebrará a igualdade que o legislador de tempos mais lúcidos insculpiu no inciso IX do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, que tem como abusiva a recusa a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, por qualquer fornecedor de produtos ou serviços. Portanto, hoje, nenhum empresário pode impedir que uma pessoa, pelo simples fato de não ter querido se vacinar, entre, permaneça ou saia de seu estabelecimento e ali consuma seus produtos ou serviços, desde que esta esteja disposta a pagar por eles. Tudo isso poderá virar apenas relato histórico de um tempo feliz caso a exigência do famigerado passaporte venha a ser aprovada pelo parlamento.

O exclusivíssimo passaporte ainda tangencia o Direito Penal, porque, malgrado tenhamos aprendido que ninguém poderá ser punido com pena restritiva de direitos ou privativa de liberdade sem que tenha cometido um crime e recebido uma pena imposta por sentença penal condenatória individualizada, transitada em julgado e resultante da instauração e regular desenvolvimento do devido processo legal, todos os párias que por qualquer motivo tenham regularmente exercido o seu direito de não se vacinarem com risco de morte serão sumária, coletiva e perpetuamente apenados em caráter geral e abstrato com restrições a seus mais constitucionais e básicos direitos, perpetuamente, ferindo o decantado nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, e o devido processo legal, sem qualquer sentença condenatória concreta e individualizada imposta por juízo criminal.

Apesar de toda essa obviedade, acessível ao entendimento de qualquer neófito de primeiro ano de graduação jurídica, o autoritário PL 1674/2021, que tramita no Congresso Nacional, perversamente permite que se faça uso do certificado digital de vacinação - o que poderia, em temível exercício de cerceamento e controle da vida privada, ensejar uma imensa gama de situações discriminatórias indevidas entre os cidadãos, além de ferir as liberdades constitucionais de ir, vir e permanecer, que são incondicionadas e por isso não podem encontrar barreiras, bem como à igualdade de tratamento entre os que se vacinaram e os que não quiseram nem querem se vacinar contra o novel vírus que, conquanto politizado e mistificado, nenhum mal causa a cerca de 98% das pessoas a quem infecta.

É sabido no meio médico, e ademais common sense, que cada organismo responde de forma diferente a cada tratamento, com maiores ou menores diferenças. Essa é sem dúvidas uma das razões de ter sido instituída a regra do art. 15 do Código Civil. As atuais vacinas contra a covid são vistas por milhões como um grande bônus - a panaceia dessa pandemia - por nelas verem seu passaporte para fora do autoisolamento (e do inconstitucional isolamento forçado usado por alguns tiranetes mundo afora). Assumem - legitimamente, é bom ressaltar - de forma voluntária o risco de tomá-las, na esperança de que não se deparem com qualquer ônus; em verdade, a maioria nem sequer é capaz de ver os potenciais ônus. Muitos dos que as tomaram infelizmente encontraram nada menos que o ônus da morte ou de prováveis sequelas e reações adversas, e nenhum bônus.

Já por outros milhões, essas vacinas, exatamente por serem ainda experimentais e carrearem risco de morte, são (não menos legitimamente) vistas como um ônus impensável, um perigo em potencial, com compreensível receio e natural hesitação ou rejeição, e por isso mesmo rechaçadas, pois ninguém pode ser obrigado a submeter-se a tratamento que lhe sujeite a risco de morte (como bem dispôs o Código Civil, recordemos).

A instituição, pelo Congresso Nacional, da exigência doméstica de uma tal certificação acabaria por indiretamente forçar a todos os que nela veem um ônus a, em muito poucos meses, demandados pelas necessidades mais cotidianas da sobrevivência, como adquirir víveres, vestuário e remédios, terem vergada sua vontade e submeterem-se a fortiori a tal ônus, do qual suspeitam que bem lhes podem advir só os ônus - esses já conhecidos e outros que ainda nem imaginamos, que podem dar a conhecer-se só a longo prazo.

A exigência do famigerado passaporte acabará enfim por "proibir a vida" de quem não o tiver consigo. Por no llevar papel ou o QR Code do celular, que não sabe usar direito, Dona Maria, brasileira de 79 anos, analfabeta, pobre, aposentada do INSS, não poderá comprar pão e água no mercado porque não poderá nele adentrar; Seu Zé, que com óbvio pavor não quis tomar a vacina porque viu sua mulher Sebastiana morrer de infarte fulminante um dia depois - oh, fatal e já tão recorrente coincidência! - de ter tomado a vacina, não poderá tomar o ônibus para ir ao trabalho - isso se emprego ainda tiver, pela discricionária graça humana de um empregador que não lhe exija a exibição do comprovante vacinal para que possa trabalhar.

É isso que não preocupa os legisladores que, talvez matreiramente, graças à exigência do passaporte vacinal, impedirão que seu Zé e Dona Maria sequer possam adentrar uma zona eleitoral para neles não votarem, garantindo assim que só os que levam dentro de si o ditador os elejam e reelejam.

Vergar e anular vontades, quebrar livre-arbítrio e impor à força pelas simpáticas, práticas, modernas, convenientes e digitais vias indiretas de um aplicativo que é capaz de perversamente transformar um pacífico recepcionista ou porteiro, acossado pela soberba do pequeno déspota que traz dentro, numa "pequena autoridade", ao estilo "cara/crachá", com poderes para, num átimo, transformar os mais honrados e humanos cidadãos em párias excluídos do convívio social, apenas porque não quiseram se oferecer à experiência vacinal vivida a modo de panaceia - panaceia para os que a querem, mas absurdo ônus sem bônus para os que nela veem apenas um ônus, por enquanto desguarnecido de segurança médica e jurídica.

Se alguns direitos individuais encontram limite no direito da coletividade, alguns direitos da coletividade também encontram limites nos direitos do indivíduo que são intangíveis - os mais fundamentais, a saber: o direito à vida, à liberdade de pensamento, locomoção e ação. Não há direito coletivo absoluto. Logo, o suposto interesse público que protege o direito social da coletividade à saúde encontra limites no direito do indivíduo à própria vida e à liberdade.

Para uns, graças ao autoritarismo populista de alguns fazedores de leis que se consideram gênios impolutos defensores da vida e do bem, vive-se a era mágica dos bônus sem ônus; para outros, a era de trevas dos ônus sem bônus. E a velha lógica aristotélica mais uma vez é torcida pelos tiranetes, separatistas e néscios exclusivistas, públicos ou privados, de cada esquina e de todos os dias desses tempos estranhos e sombrios.

Ainda é tempo - e oxalá a sensatez dos homens e a equidade o permitam - de que a não imposição de ônus para os fabricantes de vacina se faça acompanhar da análoga não imposição de ônus para os que recusem seu produto experimental, que pode lhes oferecer risco de vida. É tempo também de rever-se, com urgência, as disposições inconstitucionais e autoritárias que a lei 13.979/20 contém. Com a palavra, nosso parlamento.

João Frederico Bertran Wirth Chaibub

João Frederico Bertran Wirth Chaibub

Defensor Público Federal. Mestre em Direitos Humanos pela FD-USP. Especialista em Direito Tributário pela PUC-GO. Graduado em Direito pela UFG.

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