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ANPP em crime culposo com resultado violento: é cabível?

A violência capaz de obstar o ANPP por ausência de requisito objetivo (art. 28-A, caput, CPP) é aquela contida na conduta (dolosa, portanto), não no resultado (involuntário) dos crimes culposos.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 16:55

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Imagine a situação de um homicídio culposo, apenado, em nosso Código Penal, com pena de detenção, de um a três anos (art. 121, § 3º). Ou, ainda, um homicídio culposo na direção de veículo automotor, com pena de detenção, de dois a quatro anos, segundo o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Tenha em conta que não é cabível, nestas hipóteses ilustrativas, a transação penal, tampouco o arquivamento da investigação. Agregue o fato de que o autor do crime confessou, formal e circunstancialmente, a prática do crime, não é reincidente e não foi beneficiado com institutos despenalizadores nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração. Ainda, não estamos no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha.

Agora, diante de tal cenário, indague-se: é possível a não persecução penal mediante celebração de acordo com o Ministério Público?

A resposta afirmativa parece óbvia. Afinal, restam preenchidos, ao menos em tese, todos os requisitos objetivos previstos na legislação (art. 28-A, caput e § 2º, do Código de Processo Penal).

Na prática, porém, - como quase em tudo no direito, e na vida - a teoria é outra e não tão simples quanto deveria. Merece atenção o movimento que desafia a racionalidade legal e intenta obstar objetivamente o acordo de não persecução penal em hipóteses de "resultado violento" (como nos crimes de homicídio culposo, por exemplo).

Sabe-se que a vigência da lei 13.964/2019 (conhecida como "Lei Anti-Crime") regulamentou o acordo de não persecução penal - introduzindo o art. 28-A e seus catorze parágrafos no Código de Processo Penal -, instrumento de justiça consensual trazido ao ordenamento jurídico brasileiro pelo titular da ação penal pública e originariamente tratado somente por resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público (181/2017 e 183/2018) - o que colocava em cheque a própria constitucionalidade do acordo, hoje superada.

Sabe-se, também, que o instituto - importado de países com tradição common law - revela uma opção político criminal de mínima intervenção e subsidiariedade, ancorada nos princípios da oportunidade e da eficiência, o que acaba por conferir ao Ministério Público certa margem de discricionariedade na persecução penal, usualmente não tolerada à luz fria do princípio da obrigatoriedade, mas certamente fomentada no âmbito da justiça negocial, a exemplo do que já ocorria, no Brasil, com os institutos despenalizadores da lei 9.099/95.

Busca-se, em resumo, em nome da tal efetividade - e também em vista da inoperabilidade (ou, muitas vezes, do fracasso) do sistema de justiça criminal -, conferir uma resposta 'imediata' e 'consensual' à infração penal, a partir da "eleição inteligente de prioridades, levando para julgamento plenário (é dizer, processo penal com instrução e julgamento perante o juiz) somente aqueles casos mais graves1".

Para tanto, e a despeito da discricionariedade (mitigada) conferida ao Ministério Público quanto ao juízo de oportunidade do acordo2, a legislação cuidou de estabelecer os requisitos objetivos cuja presença é indispensável à transação, a saber: (i) não ser caso de arquivamento (da investigação); (ii) confissão formal e circunstanciada do fato pelo agente; (iii) infração penal não cometida com violência ou grave ameaça; (iv) pena mínima inferior a 4 (quatro) anos - esses todos são previstos no caput, do art. 28-A, do CPP -; (v) não ser cabível transação penal; (vi) não ser o investigado reincidente; (vii) não ter sido o agente beneficiado com ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo nos últimos cinco anos e (viii) não se tratar de crime praticado em âmbito de violência doméstica ou familiar ou contra mulher por razões da condição o sexo feminino - esses são os previstos no § 2º, do art. 28-A, do CPP.

Importa, aqui, em especial, a análise do terceiro requisito objetivo acima citado (ausência de violência ou grave ameaça). Dele decorre controvérsia relevante atualmente instaurada dentro dos próprios órgãos de persecução criminal: o cabimento do ANPP em crimes culposos com resultado violento (a exemplo do crime de homicídio culposo, aqui utilizado para ilustração do foco da discussão).

Quem se pronuncia contrariamente à incidência do ANPP nessa hipótese, como é caso do Ministério Público do Paraná, o faz sob o argumento central de que o legislador não especificou tratar-se de violência/ameaça relacionadas à ação, sendo que a presença de violência no resultado (chamada, pelo órgão, de "violência culposa") seria suficiente para obstar, de modo geral e abstrato, a realização do acordo ante o não preenchimento do requisito objetivo acima destacado3.

Quem defende a possibilidade do acordo de não persecução mesmo em se tratando de crimes culposos com resultado violento utiliza o argumento - mais coerente e acertado, a nosso aviso - de que a violência/grave ameaça inibidoras do ANPP devem residir na conduta, é dizer: deve haver dolo em relação à prática da infração penal mediante violência ou grave ameaça. Esse é o posicionamento oficial do Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União4, bem como do Ministério Público dos Estados de São Paulo5, Mato Grosso do Sul6 e Goiás7, por exemplo.

De fato, analisando a questão, parece carecer de sentido - legal e racional - a vedação, absoluta e generalizada, do acordo de não persecução penal em crimes culposos com resultado violento a pretexto de desatendimento do requisito objetivo previsto no art. 28-A, caput, do CPP.

Em uma conduta culposa, como se sabe, o resultado (naturalístico) é sempre involuntário, o que significa que não é querido nem aceito/consentido pelo agente. Portanto, a violência, caso se apresente no resultado, decorrerá, sempre, de uma inobservância de um dever objetivo de cuidado8 - conduta que, por opção legislativa, merece sempre menor grau de reprovabilidade estatal.

A ausência (ou presença) de elemento de cunho volitivo na conduta (violenta/ameaçadora) é precisamente o que distingue o crime culposo do crime doloso (sobretudo na modalidade eventual). Afinal, o agente não pode querer ou aceitar ou ser indiferente (a) um resultado que é simplesmente involuntário. Até por isso, por exemplo, não se admite tentativa em crime culposo.  

Daí que um argumento que pretenda equiparar a violência contida na ação dolosa com a violência eventualmente apresentada no resultado - indesejado e involuntário - do delito culposo ("tudo é violência se o legislador não definiu o que é e que não é") acaba por negar a própria distinção conceitual entre crimes dolosos e culposos, desafiando a racionalidade estrutural da formação dos tipos de injusto segundo as normas contidas no art. 18 do Código Penal.

Ora, se as teorias da vontade e do consentimento distinguem (ou pretendem distinguir) dolo e culpa - como tradicionalmente se alega, mas não sem a relutância de vozes importantes, que aqui ressalvamos pela empatia com a ideia9 -, parece incoerente colocá-las de lado para atender a um específico e conveniente interesse do órgão acusador. 

Em essência, esse tipo de construção argumentativa pune a culpa como dolo10. Mais do que isso, ao pretender relacionar a culpa com o resultado, retorna ao velho e, há muito, superado problema das teorias causais, onde a mera modificação do mundo exterior (causa) é capaz de produzir o resultado naturalístico (efeito) e a tipicidade carece de elementos subjetivos (presentes apenas na culpabilidade).  

Expostos os (graves) problemas desta construção argumentativa com a brevidade que o momento permite, parece certo reconhecer que quando o legislador se refere, no art. 28-A do CPP, à prática de infração penal sem violência ou grave ameaça está a tratar da modalidade dolosa, que é a única que admite a seleção de tais meios (violência e/ou grave ameaça) ao alcance do resultado (violento) representado, querido, desejado, aceito ou consentido pelo agente. Tratam-se, pois, a violência e a grave ameaça, de elementos ínsitos ao tipo doloso, que não se verificam no tipo de injusto culposo.

Os tribunais superiores ainda não se manifestaram a respeito. Mas doutrinadores destacados já se posicionaram em defesa do raciocínio aqui exposto. Por todos, cita-se Renato Brasileiro de Lima11, para quem:

"Sem embargo do silêncio do art. 28-A, caput, parece-nos que a violência ou grave ameaça aí citada necessariamente deverá ter sido praticada a título doloso, daí por que há de se admitir a celebração do acordo na hipótese de eventual crime culposo com resultado violento (v.g., lesão corporal culposa), desde que presentes os demais requisitos. A violência que impede a celebração do acordo, portanto, é aquela presente na conduta, e não no resultado."

Para reforçar esta lógica, basta lembrar do artigo 44, inciso I, do Código Penal, norma que, ao tratar das hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, excepciona crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, bem como crimes culposos - notadamente excluindo os últimos da possibilidade de serem cometidos 'mediante violência ou grave ameaça'.

Portanto, o silêncio no caput do art. 28-A do CPP quanto aos crimes culposos encontra norte interpretativo na própria legislação penal substantiva, que, além de distinguir, em termos de conformação típica, as condutas culposas e dolosas, também o faz (explicitamente) ao eleger o grau de reprovabilidade de uma e outra conduta para escolha das sanções e dos benefícios aplicáveis em cada caso, sempre à luz do princípio da culpabilidade.

De se notar, ainda, que, dentre as exceções ao cabimento do ANPP, expressamente previstas no art. 28-A, §2º, do CPP, não há qualquer menção a crimes culposos com resultado violento, o que nos faz lembrar do comezinho princípio geral de direito segundo o qual onde o legislador não restringe, não cabe ao intérprete fazê-lo - muito menos quando esse esforço interpretativo acaba por prejudicar o sujeito que o preceito normativo visa proteger (no caso, o investigado da conduta eleita menos reprovável pelo legislador). 

Não se pode perder de vista, no mais, que o ANPP não ostenta somente natureza processual, já que pode implicar a extinção da punibilidade do agente (conforme artigo 28-A, §13, do CPP). Logo, a intepretação da norma (de caráter híbrido que é) deve tanto limitar o poder punitivo, quanto beneficiar o agente.

Não se está a sustentar, absolutamente, que o ANPP é cabível em toda e qualquer hipótese de delito culposo com resultado violento. Mesmo porque não é suficiente à incidência do acordo a mera presença dos requisitos objetivos. A própria lei traz pressupostos de ordem subjetiva (a exemplo da necessidade e suficiência do acordo para reprovação e prevenção do crime, conforme dita o art. 28-A, caput, do CPP) a serem observados em análise do caso concreto.

Portanto, casos há em que pode não se revelar cabível a oferta de ANPP em delitos culposos por se entender insuficiente a adoção da justiça consensual para fins de reprovação e prevenção do crime, por exemplo. Tal análise, porém, deve ser sempre casuística e fundamentada em circunstâncias concretas.

O que não se pode admitir, com todo respeito aos pronunciamentos em sentido contrário, é a pretensão de interpretar restritivamente a norma processual penal para dela extrair uma (inexistente) "determinação por omissão", ex ante, geral e abstrata, que implique a vedação da oferta de ANPP indiscriminadamente em todos os crimes culposos com resultado violento a pretexto do não atendimento de requisito objetivo previsto no caput do art. 28-A do CPP.

Se a ideia é inviabilizar a celebração de ANPP em crimes culposos com resultado violento, como o homicídio culposo - o que não foi feito pelo legislador -, parece evidente que o esforço argumentativo terá que suplantar, em muito, a (falha) linha retórica de que "a violência da ação não difere da violência do resultado", a qual se distancia, absolutamente, da correta intepretação da norma de natureza híbrida, das teorias que distinguem crimes dolosos e culposos na dogmática penal brasileira e da própria finalidade do acordo de não persecução penal enquanto instrumento alinhado a um direito penal de intervenção mínima e a uma política criminal de vertente funcional.

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1 CABRAL, Rodrigo Ferreira Leite. Um panorama sobre o acordo de não persecução penal (Art. 18 da Resolução 181/17 do CNMP). In: CUNHA, Rogério Sanches; BARROS, José Dirceu; DO Ó SOUZA, Renne; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira (Coords.). Acordo de não persecução penal. Resolução 181/2017 do CNMP. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 22.

2 Posicionamentos recentes do STJ e do STF definiram que o acordo de não persecução penal não constitui direito subjetivo do investigado/acusado. Vide, por exemplo, no STF, HC 191124 AgR e, no STJ, AgRg no RHC 130.587/SP.

3 "Em suma, com relação ao requisito objetivo, em que se nega a possibilidade da celebração do acordo de não persecução quando o delito for cometido com violência ou grave ameaça, a interpretação deve, a nosso sentir, abarcar todas as hipóteses que se adéquem a esses conceitos (é dizer, não se deve delimitá-los quando a lei os não delimitou), inclusive como forma de evitar que injustos mais graves possam ser resolvidos sem passar pelo crivo de um julgamento plenário, mesmo porque deles muitas vezes resulta, em caso de condenação, a aplicação de pena privativa de liberdade". Vide parecer completo do CAOP Criminal do Ministério Público do Paraná em: clique aqui. Acesso em 4/7/2021. 

4 ENUNCIADO 23 CNPG - É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

5 ENUNCIADO 74 CAO-CRIM MPSP - É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, pois, nesses delitos, a violência não está na conduta, mas no resultado não querido ou não aceito pelo agente, incumbindo ao órgão de execução analisar as particularidades do caso concreto.

6 Recomendação nº 1/2020-PGJ, art. 1º, §5º - Caberá o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que, nos delitos desta natureza, a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pelo(a) agente, apesar de previsível.

7 ENUNCIADO 32 GNCCRIM MPGO - É cabível o ANPP nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

8 "Não basta, assim, à configuração do tipo de delito culposo, que o resultado se tenha produzido apenas pela ação do agente. É imprescindível que a causalidade se desenvolva mediante infração dos deveres de cuidado". (TAVARES, JUAREZ. Teoria do crime culposo. 5. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 309.

9 Por todos, cita-se GRECO, Luís. Dolo sem vontade. In: D'ALMEIDA, Luís Duarte; DIAS Augusto Silva; MENDES, Paulo de Sousa; ALVES, João Lopes; RAPOSO, João Antônio (orgs.). Liber amicorum de José de Souza Brito em comemoração do 70º aniversário: estudos de direito e filosofia. Coimbra: Almedina, 2009. Ver também VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2017.

10 LUCCHESI, Guilherme Brener. Punindo a culpa como dolo. O uso da cegueira de liberada no Brasil. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018.

11 BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 8 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Jus Podvim, 2020. p. 280. No mesmo sentido orientam-se CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime: Lei 13.964/19: Comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 135 e também GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de processo penal comentado [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

Bárbara Mostachio Ferrassioli

Bárbara Mostachio Ferrassioli

Advogada criminalista em Curitiba/PR (OAB-PR 63.446), especialista em Ministério Público e Estado Democrático de Direito pela FEMPAR e pós-graduanda em Direito Penal Processual Penal pelo IDP.

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