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Consumo porque existo ou existo porque consumo?

Lei 14.181/2021: o que o legislador tem a nos dizer sobre relações de consumo no século XXI? A lei veio para reafirmar a fragilidade dos consumidores perante grandes fornecedores de produtos e serviços.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 13:49

(Imagem: Arte Migalhas)

Consumir é sinônimo de prazer. É quase como uma droga, que altera substâncias químicas no cérebro. Comprar, à vista ou a prazo, satisfaz. O consumidor, ignorando tudo ao seu redor - e até mesmo a lógica-, não reflete sobre consequências de médio e longo prazo. O importante é adquirir, ainda que fatos negativos venham a surgir. Quase como Belsazar em sua fatídica "Festa de Belsazar" em que, embora o próprio Deus tenha escrito na parede e, por intermédio do Profeta Daniel, tenha alertado o Rei da iminente destruição de seu império, a festa continuou. Não importa o tamanho do rombo na sua carteira, desde que aquele Honda do ano ou aquele apartamento esteja devidamente em sua posse.

São produtos da intensa necessidade de existência através de práticas consumeristas que, nos dias de hoje, reflete o consumo desenfreado. O filósofo Zygmunt Bauman já havia retratado que, nos dias de hoje, o amor é líquido e escorre pelas mãos, como uma água. Por que não dizer que o consumo também é líquido e, no caso, escorre pelas faturas de cartão de crédito com parcelamentos à perder de vistas?

Gilles Deleuze, em sua filosofia das sociedades de controle, atribui à sociedade moderna a divisão entre espaços fechados e sem fim, no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto.

Deleuze sugere, portanto, que nas sociedades de controle, os indivíduos se distinguem ou se comunicam através de "cifras" ou, em outras palavras, senhas. E isto é notório. Quantas vezes você já ouviu aquela frase que diz que "você é a média das 05 pessoas que estão ao seu redor"...? Isto demonstra, claramente, que você representa, em uma sociedade de controle, nada menos que uma cifra.

Partindo desta premissa, grandes fornecedores enxergam, no mercado de consumo, cifras e senhas, desesperadas para fazerem a "autenticação em dois fatores", ou seja, desesperados para consumirem coisas das quais lhes tornem dignos daquela senha.

Chamadas telefônicas, compras de passagem aérea, transferência financeira, uso de cartão de crédito, etc. O que se pretenderia obter através da análise de um tal conjunto de informações? É seu conteúdo que interessa ou a análise de um padrão de comportamento?

Ora, por que acham que a LGPD foi criada senão para uma tentativa de resistência ao controle exercido por grandes corporações que controlam a sociedade através da emissão de senhas e cifras geradas com base em análises de comportamento?

Grandes fornecedores conhecem as cifras e senhas espalhadas pela sociedade. Eles conhecem você e sua família, e sabem muito bem como te vender aquilo que você tanta deseja, ainda que isto te custe o mínimo existencial ou, simplificando, todo o seu salário do mês.

Especificamente ao assunto aqui tratado, é de conhecimento geral que o Código de Defesa do Consumidor tem por bases a proteção de consumidores em relações de consumo, considerando a notável hipossuficiência que impera entre as partes.

Não obstante os dispositivos previstos na norma consumerista, especificamente sobre a "ignorância" do consumidor, o legislador precisou reafirmar essa condição através da recente lei 14.181/2021.

O legislador, desta vez, resolveu dar outra chance e, ao invés de "escrever na parede" uma iminente destruição, escreveu no papel a lei que parece proteger consumidores de "superendividamentos".

Recentemente, foi publicada a lei 14.181/21, a qual trata sobre superendividamentos. O conteúdo desta lei, ao que parece, tenta criar um cenário mais positivo para aqueles que se envolvem em créditos, mas que, de alguma maneira, não conseguem cumprir seus compromissos.

A lei 14.181/2021, publicada em 1º de julho de 2021, veio para reafirmar a fragilidade dos consumidores perante grandes fornecedores. Quando o assunto é "dívida", é fato que alguém estará em posição confortável e, por outro lado, alguém estará em posição crítica. Não precisa ser gênio em matemática financeira para saber que pagar juros pode, com o tempo, causar uma verdadeira desestabilização na previsibilidade do cumprimento de uma obrigação.

Segundo dados do Serasa, em 2021, quase 62 milhões de pessoas estão inadimplentes, e metade tem a renda inteira comprometida. A necessidade de pertencer e ostentar determinada cifra tem causados sérios problemas aos cidadãos brasileiros.

Em resumo, a lei 14.181/2021 determina que grandes fornecedores de produtos e serviços, como bancos, financiadoras, incorporações imobiliárias e empresas no geral avaliem de forma responsável se o consumidor tem condições de assumir aquela dívida.

A norma citada altera diversos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, em especial reafirmando a necessidade da transparência e prestação de informações nas relações de consumo.

Ao que parece, o próprio legislador reconhece a condição de "vítima" a qual se encontra o consumidor moderno, que se submete a negociações e aquisições das quais não correspondem com sua realidade financeira, tudo produto de uma construção social de controle de massas.

É o que se observa ipsis litteris:

"Art. 4º [...]

IX - fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores;

X - prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor." (NR)

"Art. 5º [...]

VI - instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural;

VII - instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.

O que pretende o legislador é que, através da coibição a fornecedores no oferecimento de facilidades em contratações, consumidores não se submetam a obrigações das quais não podem cumprir. 

Soa um tanto atípico a interferência do legislador na esfera privada, das quais o direito é potestativo, para proibir consumidores de boa-fé de se auto enganarem.

Mais adiante, diz a norma:

"Art. 6º [...]

XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;

XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;

XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.

'Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.

§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.

§ 2º As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.

Cita o legislador, na norma, que é preciso preservação ao "mínimo existencial", no entanto, não se sabe, ainda, o que isto significa. Não há conceito de tal expressão da norma, o qual ficará a encargo da jurisprudência e doutrina. No entanto, percebe-se que há conceituação de "superendividamento", que significa na impossibilidade manifesta de o consumidor, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo.

"Quando a esmola é demais, o santo desconfia".

Exatamente este provérbio que traduz o espírito normativo da lei 14.181/2021. O legislador quer que o consumidor, se não desconfiar de tantas facilidades, seja proibido de adentrar, cegamente e instintivamente, em obrigações das quais não pode cumprir. A norma traz ainda diversas hipóteses de repactuação forçada de dívidas, como aquelas citadas no artigo 104-A e 104-B.

Em resumo, embora haja aparência de benefícios, a lei 14.181/2021 vem reparar um erro histórico nas relações de consumo, erro do qual o próprio Estado permitiu, em governos pretéritos, oferecendo facilidades de créditos para população que não tinha condições de cumprir com suas obrigações e, muito embora o fato possa ser interpretado como avanço social através de econômica popular, por outro lado, acarreta em verdade retrocesso aos trabalhadores e endividados que deixam seus salários na integralidade para pagamento de coisas das quais representam, em essência, nada menos que uma cifra, oriunda de um controle populacional através da economia e ânsia pelo poder através de objetos.

Isto não significa dizer que consumidores não devem ser punidos por inadimplementos e descumprimentos de suas obrigações, mas significa que grandes fornecedores, através de práticas abusivas, sejam coibidos se oferecem e venderem ilusões em forma de produtos e serviços dos quais consumidores não consigam pagar.

Há que se concluir, ao final, que o espirito normativo tem boas intenções diante da inconsequente conduta de consumidores nas relações travadas com fornecedores. De se ressaltar, também, que a lei 14.181/2021 traz um cenário que contribui para reorganização de dívidas do sujeito superendividado, mostrando, novamente, que o consumidor é a parte frágil da relação, conforme dito há 30 anos, quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor.

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1 Disponível aqui.
2  DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226. Disponível aqui.

Vinicius Brogiato Pereira

Vinicius Brogiato Pereira

advogado do escritório Brogiato & Aquilera Advogados.

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