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Confiabilidade da urna eletrônica e a proposta de voto híbrido

A urna eletrônica tem protagonizado uma série de questionamentos acerca da sua inviolabilidade, o que motivou uma sucessão de propostas legislativas, com o fito de incluir a impressão dos votos como garantia da sua integridade.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 17:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos últimos anos, observa-se uma espécie de crise institucional, que instiga e incute a criação de levantes sociais de questionamento dos pilares democráticos, através de falas distorcidas que mesclam fatos autênticos a teorias conspiratórias, e o tema vigente é a forma de exercício do sufrágio, no caso do Brasil, o voto eletrônico.

A fortaleza dessa insurgência, encontrou solo fértil nas lacunas de superficialidade individuais, que passaram a reverberar no coletivo, através de conceitos rápidos, julgamentos instantâneos que comprometem as estruturas institucionais, como Bauman definiu:

"O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos "poderes de derretimento" da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolhas possíveis, como os estamentos hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance de apelação (Bauman,2001, pag.3)"

Assim, tem-se instaurado um movimento nacional em prol do voto híbrido, vulgarmente chamado de voto impresso e auditável, com prelúdio na lei 10.408/02 que determinava a impressão de votos em 3% das urnas de cada zona eleitoral, implementado nas eleições de 2002.

Em razão das incontáveis falhas ocorridas, dentre elas, eleitores deixando as cabines de votação sem confirmar a impressão dos votos, e mesários sem conseguir manusear a novidade do voto híbrido, a lei supracitada demonstrou inaptidão para o propósito a que fora criada, escolher um representante, sendo revogada pela lei 10.740/03.

Em 2009, a lei 12.034 ressuscitou a proposta do voto híbrido para 2% das urnas de cada zona eleitoral, com o mínimo de três urnas por município, mas fora objeto da ADI 4.543, que declarou sua inconstitucionalidade, por violação do sigilo do voto, previsto como cláusula pétrea, no artigo 14, caput, e artigo 60, §4º,II, da Constituição Federal.

Com a mini reforma eleitoral trazida pelo art.2º da lei 13.165/15, foi trazida novamente a previsão do voto híbrido para as eleições de 2018,  com a inclusão do art. 59-A, parágrafo único na lei 9.504/97, prevendo:

"No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado.

Parágrafo único. O processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica." (BRASIL, 1997, art.59)

 A referida alteração foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5889, que questionou a violação do sigilo do voto diante da possibilidade de falha no processo de impressão, expondo a risco o conhecimento dos votos já depositados, bem como limitação do exercício pelas pessoas com deficiência visual e analfabetas, pois não poderiam conferir o voto impresso sem o auxílio de terceiros, tendo sido julgada em 16/09/2020, procedente, declarando a inconstitucionalidade do art. 59-A e parágrafo único da lei 9.504/97, incluído pela lei 13.165/15.

Atualmente, seguindo o mesmo mote, agora com afinco de garantir a materialização do ideal frustrado nos dois últimos projetos legislativos, foi proposta a emenda constitucional 135/19 que possui a seguinte redação:

"O artigo 14 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 12: Artigo 14

(.)

§12. No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria". (BRASIL,2019, art.14)

A justificativa apresentada para este incessante anseio pela impressão do voto é o questionamento da integridade dos sistemas eleitorais, e o entendimento de que só existe auditoria através da conferência do voto registrado na urna, por meio de sua impressão.

Não se cogitando que a impressão pode gerar uma situação exatamente inversa a almejada, primeiro em razão da vasta área territorial do Brasil, em que a fiscalização de abusos é débil, haja vista a ausência de polícia federal nos municípios longínquos que já têm tradição negativa de compra e venda de votos.

Como bem asseverou a Ministra Cármen Lúcia em seu voto na ADI 5889:

"A necessidade de impressoras, softwares e equipamentos adicionais tornam os procedimentos mais complexos, vulneráveis e, conseguintemente, menos expeditos, sendo relevante reconhecer o considerável incremento nos pontos passíveis de panes no sistema. A possibilidade de fraudes, cópias e trocas de votos, decorrentes de votação impressa, aumenta, sendo mister ter urnas preparadas para a sua guarda, forma de transporte específico, garantia de sua integridade, tudo mais dificultado e sem garantia de eficiência do resultado incólume do sistema" (ADI 5889, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-242  DIVULG 02-10-2020  PUBLIC 05-10-2020)

A proposta de emenda é fundamentada também nas decisões tomadas pela Corte Alemã e pela Corte da Índia, que entenderam pela inconstitucionalidade do voto eletrônico, argumentando que só o voto impresso ofereceria segurança para as eleições, contudo, ao absorver essa realidade, foi ignorado em absoluto as disparidades entre as referidas nações e o Brasil, e que nas citadas localidades não existe urna eletrônica, a votação é manual (BRASIL, PEC 135/19).

A PEC sustenta que somente o voto Impresso garante o princípio da publicidade, uma vez que o cidadão comum não precisaria de conhecimento técnico especializado para visualizar sua escolha, e argui ainda a violabilidade do RDV - Registro Digital do Voto, porque é controlado somente pela Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE (STI/TSE), por isso vulnerável a ataques internos e externos (BRASIL, PEC 135/19).

Há um desprezo pelo fato da STI/TSE ser formada por servidores públicos com conhecimento comprovado através de concurso público, e submetidos ética e moralmente aos direitos e deveres constitucionais, possuindo fé pública, outorgada pelo Estado democrático de direito.

O parecer juntado pela secretaria de tecnologia e informática do Tribunal Superior Eleitoral, por ocasião do julgamento da ADI 5889, refuta de forma racional e precisa, os argumentos da PEC 135, quando aponta, por exemplo, os riscos de perda do voto impresso, a impossibilidade do eleitor ter certeza que o voto impresso é o mesmo recontado pela Junta Eleitoral, além da alta probabilidade do candidato perdedor se insurgir contra o resultado (BRASIL, ADI 5889).

Esses fatos supramencionados podem gerar uma pulverização de impugnações e recursos à votação e apuração, conturbando de tal forma a votação, que acaso seja concluída, poderá desembocar em anulação da eleição, tornando a recontagem de votos como regra, constituindo retrocesso ao sistema antigo de votação manual.

O mais interessante que todo esse cabedal de inconvenientes do voto híbrido, está ancorado em uma fictícia possibilidade de auditoria não existente, mas que ocorrendo, certamente será a mais precária, pois já existem inúmeras formas fidedignas e mais certeiras de auditoria, como a coleta do voto através do Registro Digital de Voto (RDV), obtido em cada urna offline (desconectada da internet), a assinatura digital, a zerésima, a votação paralela e principalmente, o resultado impresso antecipadamente, antes da transmissão de dados para apuração, podendo ser conferido através dos Boletins de Urna fornecidos aos partidos políticos.

Somando-se a essas premissas, o legítimo argumento proferido pelo Ministro Barroso, em sessão temática no Plenário do Senado, no qual aponta que o voto impresso sairia da mesma urna eletrônica que está sob suspeita, induzindo, por sequência lógica, a dedução de que a fraude eletrônica se estenderá ao voto o impresso. (BRASIL, 2021)

De forma simplificada, o itinerário percorrido, concebe a impressão do voto digitado, como solução de comprovação de confiabilidade do sistema eleitoral que o registra, mas ignora o relevante fato de que se o sistema pode alterar os dados inseridos digitalmente, poderá alterar o que for impresso.

Por ilação, se questiona o real propósito dessa renovação do arcaico, de alto custo financeiro para o povo, e com possibilidade real de frustrar a realização da eleição, em razão dos tumultos que poderão ser gerados, sendo mais inteligível, em virtude dessa soberana desconfiança, o retorno ao declínio do voto manual, com todos os riscos que esse oferece, sendo mais inteligível um debate aprofundado sobre possibilidade de aprimoramento da urna e do sistema democrático no Brasil.

Percebe-se assim, um padrão comportamental de retrocesso a velhas experiências não validadas, o que traz sérios prejuízos para a estrutura democrática, com o evidente conflito estabelecido entre os poderes, por meio do menosprezo ao princípio republicano.

Conclui-se que essa busca incansável a padrões superados, faz parte de uma crise democrática, que agora questiona a idoneidade de seu maior pilar, o voto, em adendo a contestação da legitimidade das instituições e veículos que a sustentam, a fim de intuir dentro da massa popular o desejo suicida de autofagia dos seus próprios direitos. (Avritzer, pag.276)

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AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Editora 34, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 135, de 2019. Acrescenta o § 12 ao art. 14, da Constituição Federal, dispondo que, na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria". Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2019a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2220292. Acesso em: 16 de julho de 2021.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 5889 MC /DF. Relator: Gilmar Mendes. Disponível aqui, Acesso em: 16 de julho de 2021.

Lígia Vieira

Lígia Vieira

Analista judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará desde 2006. Especialista em Direito Eleitoral, Processos Educacionais e Direito Processual.

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