A relação entre médico e paciente e a necessidade de um consentimento genuinamente informado, livre e esclarecido
É necessário tratar do dever de informação do médico e do correspondente direito de informação do paciente, perpassando, inicialmente, pela definição da natureza jurídica da relação firmada entre ambos.
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Atualizado às 09:00
É comum, na relação de prestação de serviços firmada entre os médicos e seus pacientes, que, para a realização de intervenções cirúrgicas ou mesmo de certos exames, seja entregue ao paciente um documento geralmente denominado de "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" (TCLE), no qual deverá anuir, mediante assinatura, ao procedimento indicado, após ser integralmente informado sobre os seus riscos e benefícios.
Tal documento tem, como propósitos básicos: (1) esclarecer o paciente acerca das possíveis consequências dos atos aos quais ele irá submeter-se; (2) informar o médico sobre os eventuais problemas de saúde do paciente que possam impactar nas intervenções a serem realizadas; e (3) atuar como um meio de prova hábil a excluir o nexo de causalidade entre a conduta do médico e os danos alegados pelo paciente, em uma eventual demanda judicial que venha a ser proposta.
Em suma, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - por vezes também referido como Termo de Consentimento Informado - é a forma documental escrita que serve para registrar o cumprimento dos deveres informativos dos médicos, além de possibilitar ao paciente uma oportunidade de aprendizado sobre sua saúde, sobre o tratamento e sobre as prescrições de condutas, e comprovar o respeito médico pela autodeterminação dos pacientes. Esse documento é imprescindível como instrumento probatório dos médicos, mas ele não pode jamais substituir informações orais e nem desonerar os médicos de informações aditivas ao longo de todo o tratamento.1
Nesse sentido, é necessário tratar do dever de informação do médico e do correspondente direito de informação do paciente, perpassando, inicialmente, pela definição da natureza jurídica da relação firmada entre ambos.
Há quem defenda que a relação estabelecida entre médico e paciente seria regulada pelo Código Civil, e não pelo Código de Defesa do Consumidor, na medida em que a atividade médica, além de ter uma regulação própria, não seria uma atividade econômica em sentido estrito, mas sim uma atividade voltada a cuidar da saúde das pessoas.2
No entanto, a doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem pela aplicação da legislação consumerista à relação entre médico e paciente. Inclusive, há muito o STJ assevera que "é de se aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos serviços prestados pelos profissionais liberais".3
Com efeito, a relação entre médico e paciente é manifestamente de consumo, posto que congrega: um paciente consumidor, que busca a promoção de sua saúde com o serviço adquirido; um médico fornecedor, que é detentor de um conhecimento técnico indispensável para exercer uma prestação de serviço à saúde de seus pacientes, por meio de um pagamento; e um serviço especializado de promoção da saúde.4 Nesta condição, reconhece-se o paciente como titular de um direito subjetivo básico à informação.5
O direito à informação tem matriz constitucional e sua irradiação para as relações jurídicas de um modo geral é extraível do artigo 5º, inciso XIV, da Carta Magna de 1988, que preconiza que "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Especificamente no âmbito das relações de consumo, o artigo 6º, inciso III, do Código Consumerista elenca como direito básico do consumidor "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem".
Sem destoar dessas previsões, o Código de Ética Médica, em seu artigo 34, elenca entre as vedações do médico "deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal".
Vê-se, portanto, que o médico tem o dever de informar o paciente acerca do tratamento a que deverá ser submetido, explicando em uma linguagem palatável os potenciais riscos dos procedimentos e tratamentos, não bastando que o consentimento seja meramente informado, mas também esclarecido, na medida em que seja possível ao paciente entender as informações que lhe são prestadas.6
Esse dever, que exige a transmissão de uma informação completa, verdadeira e adequada, decorre do princípio da boa-fé objetiva e, nesse sentido, se traduz na cooperação, na lealdade, na transparência, na correção, na probidade e na confiança que devem existir nas relações entre médico e paciente.7
Para ser válido, o consentimento esclarecido não pode ser genérico e deve ser individualizado ao caso concreto do paciente. Nesse sentido, já assentou o STJ: "Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica."8
Igualmente, o paciente deve ser competente para decidir autonomamente, receber a informação completa, compreender essa mesma informação, decidir voluntariamente e, finalmente, consentir com a intervenção médica. E apenas em circunstâncias excepcionais que se autoriza ao médico invocar o privilégio terapêutico para se eximir da responsabilidade de informar e esclarecer, como quando há a existência de uma elevada e iminente probabilidade de dano físico ou mental no paciente que impeça a formação de sua vontade.9
Quanto ao conteúdo propriamente dito da informação, o médico deve informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento a ser feito, além de aconselhá-lo com a prescrição dos cuidados pós-procedimentais a serem adotados.10
A questão mais controversa relativa ao conteúdo da informação a ser prestada pelo médico ao paciente reside no âmbito dos riscos a serem esclarecidos. Deve o médico informar ao paciente todos os riscos decorrentes de uma intervenção cirúrgica, de um tratamento ou mesmo de um exame mais complexo, mesmo aqueles riscos cuja concretização seja remota? Caso o médico seja obrigado a informar todos os riscos dos atos a serem feitos, mesmo aqueles raros, podem emanar algumas consequências negativas.
Entre tais consequências, estão: 1) uma intensificação da angústia do paciente, por riscos que dificilmente se concretizarão; 2) um aumento do volume de litígios médicos, por quebra do dever de informação e, por conseguinte, pela formação inválida do consentimento; 3) um estímulo ao fenômeno da "medicina defensiva" e, por consequência, à visão de que os pacientes são potenciais inimigos, prontos para processar seus médicos a qualquer momento; 4) um acréscimo no volume de exames complementares (hábeis a servirem como meios de prova aos médicos) que, por vezes, são inúteis e que apenas encarecem os custos a serem suportados pelos próprios pacientes; 5) uma inibição de uma atitude mais ousada por parte do médico em termos de escolha do tratamento escolhido, por receio de demandas judiciais.11
Assim, há a necessidade de delimitação dos riscos a serem informados pelo médico ao paciente.
O razoável é que o médico informe ao paciente os riscos frequentes e os riscos graves normalmente previsíveis, isto é, os riscos significativos, deixando os riscos excepcionais para fora da órbita do dever de informar. Os riscos significativos são aqueles que são ou deveriam ser conhecidos pelo médico e que são importantes e pertinentes para uma pessoa colocada nas mesmas circunstâncias do paciente que é chamado a consentir.12
Em síntese, o âmbito do dever do médico de esclarecimento estende-se aos efeitos das terapias prescritas e não a todos os efeitos possíveis que estas possam acarretar, devendo a profundidade do esclarecimento, ainda, variar de acordo com a inteligência e os conhecimentos do paciente, bem como conforme o caso concreto.13
Feitas tais considerações, é preciso reiterar que o consentimento esclarecido não se trata de um mero protocolo, mas sim de um processo dialógico entre o paciente e o médico, por meio do qual ambas as partes trocam perguntas e informações, culminando com o acordo expresso do paciente para a intervenção cirúrgica, ou para um determinado e específico tratamento. Em um polo dessa relação, o paciente necessita de certos detalhes básicos a fim de decidir se ele aceita ou não o tratamento. Em outro polo, o médico também necessita de informações do paciente para programar sua conduta, no que diz respeito aos riscos e benefícios relativos ao caso. Tal processo dialógico, para ser efetivo, requer a participação ativa de ambas as partes.14
E esse processo dialógico, como não poderia deixar de ser, varia de acordo com cada caso concreto, o que é, inclusive, reconhecido pelas distintas respostas dadas pela jurisprudência.
À guisa de exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul entendeu que não restou evidenciada a falha no dever de informação, em um caso no qual, a despeito de um procedimento de laqueadura tubária feita concomitantemente a um parto por cesárea, a autora teve uma gravidez indesejada, vindo a alegar a falta de aviso, por parte da médica, da necessidade do uso de um método contraceptivo. Ao apreciar o caso, a Corte Gaúcha reconheceu que os esclarecimentos ao paciente podem ser verbais e independentes de termo e observou, na hipótese, que a autora gravou a consulta com a médica, "deixando de informar estar grávida e também de indagar acerca da probabilidade de engravidar novamente a despeito da laqueadura".15
Em outro caso, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná entendeu pela vagueza de um Termo de Esclarecimento, Ciência e Consentimento Informado que dispôs de uma terminologia técnica para indicar o procedimento cirúrgico, sem, contudo, que tenha sido considerada a incapacidade técnica da genitora para a adequada identificação do tipo de cirurgia, pelo que foi reconhecida a falha na prestação do dever de informação.16
Assim, e ante todo o exposto, conclui-se que, para que o paciente possa manifestar um consentimento genuinamente informado, livre e esclarecido, não basta que o médico lhe forneça, para assinatura, um mero documento com vários termos técnicos e de difícil compreensão. Para além disso, é preciso que o médico estabeleça um verdadeiro diálogo com o paciente, a fim de prestar-lhe, conforme as necessidades do caso concreto, a informação mais completa, veraz e adequada sobre o diagnóstico, o prognóstico, os objetivos, os cuidados e os riscos do tratamento, sendo estes os riscos significativos e não excepcionais, a fim de não inviabilizar a atividade médica. Esse diálogo, mais que um ônus, é um eficiente reforço à autodeterminação do paciente e à segurança do próprio médico.
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1- PITHAN, Lívia Haygert. O consentimento informado na assistência médica: uma análise jurídica orientada pela Bioética. 2009. 213 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009, p. 184-188.
2- Nesse sentido: MELO, Getúlio Costa. Uso equivocado do Código de Defesa do Consumidor às relações entre médico e paciente. Migalhas, 04 mar. 2020.
3- REsp 731.078/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/12/2005, DJ 13/02/2006, p. 799.
4- CORRÊA, Daniel Marinho; AMARAL, Ana Cláudia Zuin Mattos do. Relação obrigacional entre médico-paciente: medicamentos "off-label" e responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, v. 6, n. 2, p. 98-114, jul./dez. 2020, p. 106.
5- CALADO, Vinicius de Negreiros. Responsabilidade civil do médico e consentimento informado na visão do Superior Tribunal de Justiça - STJ. UNICURITIBA, v. 3, n. 36, p. 262-289, dez. 2014, p. 284.
6- DADALTO, Luciana. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 64.
7- CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 440.
8- REsp 1540580/DF, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2018, DJe 04/09/2018.
9- NUNES, Rui. Testamento Vital. Nascer e Crescer, Porto, v. 21, n. 4, p. 250-255, dez. 2012, p. 251.
10- KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 7. ed., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 45.
11- BERGSTEIN, Gilberto. Os limites do dever de informação na relação médico-paciente e sua prova. 2012. 271 f. Tese (Doutorado em Direito) - Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 158.
12- MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 597.
13- CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 606.
14- GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade médica - As obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. 1. ed., 2. tir. Curitiba: Juruá, 2002, p. 83.
15- Apelação Cível, Nº 70082539818, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em: 28-11-2019.
16- TJPR - 2ª C. Cível - 0007621-70.2015.8.16.0044 - Apucarana - Rel.: DESEMBARGADOR JOSÉ JOAQUIM GUIMARAES DA COSTA - J. 08.02.2021.
Gabriel Alves Fonseca
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Colaborador do escritório Reis & Alberge Advogados.
Guilherme Alberge Reis
Advogado mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Sócio do escritório Reis & Alberge Advogados.