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A ressocialização de presos pela produção literária

Além de permitir a ressocialização do preso, a produção textual revela-se importante medida de política criminal no que diz respeito à recuperação do preso à convivência social.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Atualizado às 08:57

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Ao se analisar o contexto histórico do sistema repressivo penal pode-se observar a evolução do tratamento dado pelas civilizações ao preso. No começo da formação das sociedades civis a mutilação e a morte eram tidas como principais penas aplicadas pelo Estado. Cita-se neste exemplo as civilizações que se desenvolveram ao longo dos rios Tigres e Eufrates nos anos 3000 A. C - onde originou-se o famoso Código de Hamurábi.

Com a evolução do comércio, e a necessidade da mão-de-obra abundante, o trabalho forçado passou a figurar no centro das sanções penais, à medida que as civilizações da Idade Média progrediam. Foi, no entanto, na idade moderna (séculos XVII e XVIII) que as grandes nações do mundo - cansadas das práticas de tantas barbáries sob a égide do império da lei - começaram a migrar para um sistema mais humano de aplicação da lei penal.

Em meados do século XVIII, Cesar Bonesana - também conhecido como "o Marquês de Beccaria" - publicou a sua obra mais famosa (Dei Delliti e Delle Pene) a qual viria a ser o maior baluarte da luta contra as arbitrariedades promovidas no sistema penal da época. Segundo sua obra o magistrado poderia aplicar apenas as penas previstas em lei. Indo além, se referia às penas cruéis como "odiosas e contrárias à justiça", e concluía sobre as prisões da época que eram "horrível mansão do desespero e da fome, faltando dentro delas muitas coisas, mas principalmente piedade e a humanidade".

No direito contemporâneo, principalmente após o advento da publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o exercício da punição penal pelo Estado ganhou outro enfoque: a ressocialização do preso à comunidade. Muito mais que evitar o acometimento de penas graves e odiosas ao sujeito judicialmente condenado, o Direito Moderno passou a resguardar a busca pela recuperação deste através de práticas que lhe permitam - após o cumprimento da pena - conviver serenamente em sociedade.

Atualmente a tentativa do Estado brasileiro em promover a ressocialização do apenado possui dois frontes principais de batalha: a capacitação do preso para exercício de trabalhos técnicos e, ainda, a promoção da educação formal dele. Sob o enfoque desse novo tratamento dado à figura da pessoa recolhida ao cárcere privado há de se destacar que em meados de 1950 foram escritas as Normas Gerais do Regime Penitenciário - lei 3.274/57, que são o ponto de partida para a opção do nosso regime legal pela implantação da educação formal do apenado como corolário para ressocialização deste.

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a população carcerária do Brasil chegou, em 2019, à incrível marca de 773 mil presos, considerando todos os regimes de aplicação da pena. São pessoas que, a despeito de terem cometido crimes de todas as naturezas, ainda assim são humanos, e, portanto, pessoas com sentimentos, tristezas e problemas.

A pesquisa promovida pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) - denominada Projeto Sistema Prisional em Números - trouxe dados alarmantes quanto às condições das instalações carcerárias do Brasil. Os números mostram que a taxa de ocupação dos presídios está em incríveis 175%. Segundo o levantamento feito, 58% dos estabelecimentos prisionais não dispõe de assistência médica aos internos e 44% dos presídios não possuem qualquer tipo de assistência educacional.

Conforme os dados colhidos no estudo do CNMP é possível observar que 55% dos detentos brasileiros estão na faixa etária dos 18 aos 29 anos, ou sejam, são pessoas que têm uma longa vida pela frente. No entanto, o relatório Reentradas e reiterações infracionais produzido pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça, atestam que 42,5% das pessoas maiores de 18 anos que possuíam passagem pelo sistema prisional em 2015 retornaram ao recolhimento em cárcere até o ano de 2019. Os números impressionam ao mesmo tempo que enunciam o fracasso nacional na tentativa de ressocializar a população carcerária.

Outro dado que merece destaque, visível na pesquisa realizada pelo CNMP, é de que a população carcerária multiplicou por 8 desde o início do catálogo dos dados por aquele órgão em 1990. A manter esse ritmo, é devastador o futuro que se apresenta para a nossa sociedade.

Se seguirmos com a tendência de alta tanto do número da população carcerária, quanto do número de reincidentes, chegaremos indiscutivelmente à uma situação insustentável - a qual, a bem da verdade, já estamos.

Os dados colhidos pelos diversos órgãos componentes do judiciário brasileiro demonstram que o Direito Penal, mais especificamente a reclusão do condenado aos estabelecimentos prisionais, tem se demonstrado cada vez mais a prima ratio para o enfrentado às questões relacionadas à violência e segurança pública.

Há, ou pelo menos deveria existir, uma preocupação com a dignidade da pessoa humana privada de sua liberdade desde o advento da Declaração Universal dos Direitos dos Homens.

O Estado tem o dever legal de adotar medidas que possibilitem aos apenados o futuro retorno ao harmônico convívio social. Por reintegrar uma pessoa podemos entender que é a oferta, ao condenado a cumprir pena em regime privativo de liberdade, de condições para que ele possa se reorganizar, não necessitando encontrar mais na delinquência um modo de vida.

Apesar de conhecer o caminho, e de haver inclusive legislação apontado para ele, o nosso sistema carcerário falha em ressocializar os seus presos, o que pode ser visto nos números apresentados no início deste trabalho. Ao não agir para recuperar aqueles que pelos mais diversos motivos descaminharam-se para o mundo do crime, o Estado Brasileiro colabora para as taxas cada vez maiores de pessoas reincidentes na criminalidade.

São poucos os estímulos que o sistema penitenciário brasileiro dá ao apenado para que possa promover a ressocialização deste por meio da produção literária. No entanto, despontam, inclusive na jurisprudência pátria, decisões e teses que fortemente embasam essa possibilidade. A escrita de textos autorais corresponde ao último estágio de desenvolvimento das habilidades psicossociais de interação humana à medida que exige grau máximo de envolvimento do autor em sua confecção.

O estímulo aos presos para que produzam textos, expressando suas ideias, pensamentos, ambições e planos demonstra-se como verdadeiro objetivo a ser perseguido pela sociedade como meta para ressocialização deste. O desenvolvimento literário dos apenados possui o condão de dar voz a estes para que possam expressar-se e se fazer serem entendidos pela sociedade como um todo. Encontra-se, na produção literária, portanto, um importante mecanismo hábil a promover a ressocialização de presos, principalmente pelo alto grau de desenvolvimento de habilidades cognitivo-sociais que esta atividade promove.

Sendo a produção literária uma faceta da atividade intelectual inerente aos estudos, é imperioso concluir que a realização deste tipo de atividade pelos apenados, importará, sem sombra de dúvidas, em hipótese legal de remição da pena. É crível concluir que a produção de textos e artigos acadêmicos, pelo preso, denotam o envolvimento do autor com o tema abordado na produção textual, o que implica necessariamente na atividade pensante, no desenvolvimento de ideias, e, portanto, aptas à promoção da remissão da pena.

Além de permitir a ressocialização do preso, a produção textual revela-se importante medida de política criminal no que diz respeito à recuperação do preso à convivência social. Sem sombra de dúvidas, a pena aplicada deverá ser diminuída à medida em que a pessoa reclusa ao cárcere produza cada vez mais textos, demonstrando assim o seu interesse cada vez maior no próprio desenvolvimento intelectual.

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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