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Dever de lealdade e a participação em sociedades concorrentes

O vínculo social atribui aos sócios direitos e deveres, tornando especialmente relevante a análise quanto à sua extensão e às consequências de eventual descumprimento.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Atualizado às 10:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. INTRODUÇÃO

A utilização da estrutura societária como forma de organização empresarial tem como cerne a cumulação do interesse e do esforço dos participantes em prol de uma atividade comum, de forma a possibilitar que esses, conjuntamente, possam desempenhá-la em melhores condições que o fariam de forma individual. Portanto, em última análise, a estruturação societária se origina das limitações individuais daqueles que pretendem exercer a atividade comercial ou, ainda, da sua expectativa de otimização.

Na tentativa de suprir estas limitações - sejam técnicas ou financeiras - surge a figura da sociedade como forma organizar as diversas contribuições dos sócios e conciliar os seus interesses, que, muitas vezes, não coincidirão na integralidade.

Evidentemente, nada impede o exercício da atividade de forma singular, sendo certo que atualmente o ordenamento jurídico dispõe de diversas estruturas capazes de amoldar o interesse daquele indivíduo que pretende se aventurar no comercio de forma solitária. É fato, no entanto, que optando pela via societária, obrigar-se-á perante a sociedade e os demais sócios, de forma que deverá contribuir com a consecução do fim social, desprendendo, ao menos o aporte correspondente à subscrição. Assim, conforme aponta TAVARES BORBA1, "O dever básico e fundamental do sócio em relação à sociedade é o de integralizar suas cotas".

Neste contexto, o que se indaga, portanto, é se os deveres dos sócios, em especial nas sociedades limitadas (para fins de delimitação), se limitam à contribuição subscrita ao capital social ou se é possível a extração de deveres laterais inerentes à posição assumida? Portanto, se há efetivo dever de lealdade dos sócios ao desenvolvimento social?

Ainda, se haveria efetiva violação ao dever de lealdade pela participação do sócio em sociedade concorrente?

  1. DEVERES INERENTES À CONDIÇÃO DE SÓCIO DA SOCIEDADE LIMITADA E PARTICIPAÇÃO EM CONCORRENTES

Essencialmente, a estruturação social impõe aos sócios a obrigação correspondente à contribuição por eles ofertada à sociedade, conforme se denota do artigo 981 do Código Civil2 - também aferível pelo artigo 80, inciso I, da Lei das Sociedades por Ações3. Portanto, independentemente da estrutura societária, haverá naturalmente a obrigação dos sócios em contribuir da forma proposta, seja por bens ou serviços, a depender do caso, para possibilitar o exercício da atividade, sendo, na visão de CAMPINHO4 como "a mais relevante de todas as obrigações que o status socii estabelece".

Nas hipóteses de sociedades detentoras de personalidade jurídica (inclusive, naturalmente, a sociedade limitada), a obrigação de participação essencial refletira, também, a limitação da responsabilidade ordinária daquele sócio5, que, em regra, não será vinculado às obrigações firmadas pela sociedade. Conforme ensina TOMAZETTE6, "os sócios têm responsabilidade limitada, vale dizer, obrigam-se apenas até determinando montante, que pode ser o valor de sua contribuição ou o valor do capital social". Logo, a extensão da obrigação patrimonial oponível ao sócio, a priori, se limita à representação patrimonial da integralização.

Também é certo que poderá ser exigido dos sócios o cumprimento de obrigações eventualmente previstas no Contrato Social, conforme disposto pelo art. 1.004 do Código Civil7. Dessa forma, apesar da obviedade da afirmação - tendo em vista que, naturalmente, será o contrato social (ou estatuto) o instrumento que regulará a relação social - é verdade que eventuais obrigações assumidas neste instrumento serão, igualmente, oponíveis aos sócios.

Não obstante a discricionariedade dos envolvidos, impõe-se a análise abstrata acerca da existência de deveres outros do sócio para com a sociedade e/ou os demais sócios.

Apesar da ausência de referência expressa do Código Civil acerca da existência de obrigação positiva do sócio de empreender os melhores esforços no exercício da atividade social, percebe-se que o diploma rechaça eventuais atos do sócio que possam pôr em risco a continuidade da empresa, possibilitando no art. 1.0858, que estes poderão ensejar a exclusão do sócio do quadro social (se houver previsão).

Denota-se, pois, que é esperada do sócio conduta coerente à atividade social, de forma a, ao menos, impedir-lhe a assunção de postura contrária ao interesse da sociedade. Impõe-se, nesse contexto, pontuar que a natureza plurilateral e sinalagmática do contrato social conduz os sócios à finalidade comum, de forma que, conforme pontual LEÃES9:

"no contrato plurilateral, ao contrário do que ocorre nos demais contratos, os interesses contrastantes das várias partes convergem para uma finalidade única, exercendo o contrato uma função instrumental, visando à disciplina das sucessivas relações das partes nessa colaboração ou cooperação comum. Cada uma das partes obriga-se para com todas as outras, e para com todas adquire direitos, coordenados em torno de um fim"

Logo, a comunhão de interesses conduz os sócios a direcionamento comum, em prol do bom desempenho da atividade.

Reconhecendo a existência de outros deveres, ainda que de forma subjetiva, ALMEIDA10 sustenta que "Dentre os deveres fundamentais dos sócios, três se destacam pela relevância: a) cooperação recíproca; b) formação e administração do capital social; c) responsabilidade com terceiros". Em sentido semelhante, destaca, também, CAMPINHO que:

"Além da obrigação de integralizar o capital subscrito, impõe-se ao acionista, titular do direito de voto, a obrigação de que, ao exercê-lo, faça-o sempre e exclusivamente no interesse da sociedade.

Essa obrigação destacada, em realidade, vem pautada no dever de lealdade que todo sócio deve nutrir para com a sociedade. Não é dado a nenhum sócio antepor seus interesses privados àqueles da sociedade. A lealdade, portanto, vem presente na dogmática das sociedades anônimas pelo instituto da boa-fé e da repressão dos votos abusivos"

O que se verifica, portanto, é muito mais a constituição de obrigações negativas impostas ao sócio, impedindo-o de assumir posturas conflitantes com a atividade social, do que a imposição de obrigações positivas em prol do desenvolvimento social.

Nesse contexto, tenho que a vedação direta e abstrata do sócio à participação simultânea em sociedades que eventualmente possam concorrer atribui ao quotista posição de excessiva pessoalidade - que não necessariamente se espera da posição assumida.

Vale relembrar que, conforme pontua FINKELSTEIN11, "Atualmente resta claro que a quebra da affectio societatis não mais justifica a exclusão de sócio", indo de encontro com o posicionamento da Min. Nancy Andrighi em seu voto no REsp nº 1.129.222/PR12. Parece razoável extrair da analogia que o referido elemento de natureza pessoal não é pressuposto essencial da sociedade limitada (independentemente da indicação de regência supletiva)13. Ainda abordando a exclusão de sócio, parece também razoável a conclusão de SOMER14, que pontua que "O descumprimento dos deveres pode impedir o preenchimento do fim social, o que pode implicar a dissolução parcial da sociedade".

Isso é, a análise casuística possibilita melhor verificação acerca dos impactos de eventual conduta dos sócios. Tenho, portanto, que o mesmo raciocínio pode ser aplicado à presente questão, indicando que, com base nos imposições negativas atribuíveis aos sócios em razão da natureza do contrato social, somente haveria violação ao dever se a participação em sociedade concorrente representou efetivo atentado ao desempenho do fim social.

Posição em sentido contrário, ao menos na análise abstrata, poderia representar obstáculo ao sócio que possui interesses meramente financeiros perante a sociedade e, talvez, em última análise, desincentivar o investimento e o empreendedorismo.

  1. CONCLUSÃO

Apesar da inexistência de previsão legal expressa impondo aos sócios de sociedades a observância de deveres laterais decorrentes da posição societária, para além da contribuição com o capital social, atribui-se a esses a obrigação negativa de não atentar contra o objeto social, direcionando-os, portanto, ao cumprimento do fim social.

Dessa forma, eventuais condutas de inegável gravidade que possam pôr em risco a continuidade da empresa, mesmo que consubstanciadas pela participação em sociedade concorrente, poderá, eventualmente, representar violação às obrigações sociais.

Contudo, não me parece razoável aferir de forma absolta a vedação aos sócios quanto à participação em empresas que compartilhem mercado comum, menosprezando as diversas razões que podem levar à constituição de sociedade e principalmente o caráter meramente patrimonialista que eventualmente poderá revestir a relação.

______________ 

1 TAVARES BORBA, José Edwaldo Direito Societário. São Paulo: Grupo GEN, 2020. 

2 Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

3 Art. 80. A constituição da companhia depende do cumprimento dos seguintes requisitos preliminares:

I - subscrição, pelo menos por 2 (duas) pessoas, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto;

4 CAMPINHO, Sergio. Curso de direito comercial: Sociedade Anônima. São Paulo: Saraiva, 2020.

5 Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.

6 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, v. 1: Teoria geral e direito societário. São Paulo: Saraiva, 2019.

7 Art. 1.004. Os sócios são obrigados, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora.

8 Art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa.

LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Exclusão judicial de sócio em sociedade por quotas. Doutrinas essenciais de direito empresarial, v. 2, pp. 539-555, São Paulo, 2010.

10 ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais. São Paulo: Saraiva, 2018.

11 FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Exclusão de sócio por justa causa: Necessidade de assembleia específica. Revista dos Tribunais, v. 920, pp. 531 - 545, São Paulo, 2012

12 REsp 1129222/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 01/08/2011

13 Conforme o Parágrafo único do art. 1.053 do Código Civil, a sociedade limitada poderá optar pela utilização supletiva das normas que regem as sociedades anônimas.

14 SOMER, Jonathas Lima. A quebra da affectio societatis na exclusão de sócios e dissolução parcial de sociedades. Revista dos Tribunais, v. 957, pp. 177 - 198, São Paulo, 2015.

______________ 

TAVARES BORBA, José Edwaldo Direito Societário. São Paulo: Grupo GEN, 2020 

CAMPINHO, Sergio. Curso de direito comercial: Sociedade Anônima. São Paulo: Saraiva, 2020. 

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, v. 1: Teoria geral e direito societário. São Paulo: Saraiva, 2019. 

LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Exclusão judicial de sócio em sociedade por quotas. Doutrinas essenciais de direito empresarial, v. 2, pp. 539-555, São Paulo, 2010. 

ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais. São Paulo: Saraiva, 2018. 

FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Exclusão de sócio por justa causa: Necessidade de assembleia específica. Revista dos Tribunais, v. 920, pp. 531 - 545, São Paulo, 2012. 

REsp 1129222/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 01/08/2011. 

SOMER, Jonathas Lima. A quebra da affectio societatis na exclusão de sócios e dissolução parcial de sociedades. Revista dos Tribunais, v. 957, pp. 177 - 198, São Paulo, 2015.

Alex Barreto Viana Rosito

Alex Barreto Viana Rosito

Advogado no escritório Laís Lucas Advogados Associados. Pós-graduando no curso de Especialização em Direito Empresarial da PUC/RS. Bacharel em Direito pela PUC/RS.

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