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Improbidade administrativa e o dano ao erário "in re ipsa"

A armadilha do Estado para enriquecer às custas do particular.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Atualizado às 17:29

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo intenta apresentar a discussão a respeito do paradigmático julgamento do RE 1.912.668 - GO, em especial no que tange ao tema 1.096, "Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)".

O tema ganha relevância, considerando a possibilidade de enquadramento da modalidade de dano ao erário em face simplesmente da frustração da licitude de licitações, sem que se adentre no dano objetivo ao tesouro, ou no dolo específico do particular, e/ou da indevida dispensa de licitação, o que resultaria em condenação do particular, que não tenha contribuído nem com o ato ilícito e nem com o dano presumido, e que estaria obrigado a ressarcir os cofres públicos, por todos os valores recebidos, em decorrência da sua correta e dispendiosa prestação de serviços.

Agindo deste modo, o Estado não estaria criando verdadeira arapuca jurídica, com intuito de promover seu enriquecimento ilícito e, consequentemente, afastando o interesse do particular de concorrer a contratações públicas, diminuindo a concorrência e elevando os valores de contratação?

Cabe, aprioristicamente, um breve introito de temáticas que se mostram basilares e relevantes à compreensão do tema debatido.

Os atos improbidade administrativa são regidos pela lei 8.429/92, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego, ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.

Os atos de improbidade administrativa podem ser divididos em três categorias, pelo enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário e que atentam Contra os Princípios da Administração Pública, conforme art. 9 °, art. 10° e art. 11 da lei 8.429/02

I. Dos atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário

O artigo 10, da referida lei, aduz que constitui o ato de improbidade administrativa qualquer ação omissão, dolosa ou culposa que cause lesão ao erário.

"Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:"

Na tentativa de conceituação do que seria prejuízo ao erário, Pazzaglini Filho tem um entendimento acerca do assunto, (2009, p. 61, apud BARBOSA e PINTO, 2012 p.68)

"Enquanto o conceito de patrimônio público é mais abrangente, pois compreende o complexo de bens e direitos públicos de valor econômico, artístico, estético, histórico e turístico, o de Erário, como parte integrante do patrimônio público, limita-se aos bens e direitos de valor econômico, ou seja, aos recursos financeiros do Estado, ao "Tesouro Público".

Na mesma esteira, lançamos mão da sintética conceituação de conteúdo econômico-financeiro do patrimônio público. (NEVES, OLIVEIRA, p.128, 2020)

Entendemos que a incidência do art. 10 da LIA depende necessariamente da efetiva comprovação da lesão ao patrimônio público econômico (erário), sendo certo que, nas hipóteses exemplificativamente arroladas nos incisos da referida norma, a lesividade é presumida.

A ausência de prejuízo econômico aos cofres públicos afasta a configuração da improbidade por dano ao erário, mas não impede a tipificação da improbidade por enriquecimento ilícito (art. 9.º), concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A) ou por violação aos princípios da Administração (art. 11), desde que preenchidos os respectivos pressupostos legais.

II. Essencialidade do prejuízo ao erário

Na busca de delimitar o efetivo dano como condição sine qua non para a configuração da espécie de improbidade, buscamos amparo na doutrina, que entende pela necessária ocorrência do dano ao patrimônio público. Conforme o entendimento de André Holanda Jr. e Ronny Charles L. Torres (2017, p. 229, apud GARCIA, 2013 p.382 e 398)

"O prejuízo ao erário é elemento essencial para a configuração do ato de improbidade administrativa descrito no art. 10 da LIA. Com efeito, "sempre será necessária a ocorrência de lesão ao patrimônio público para a incidência do art. 10 da Lei n. 8.429/1992, o que é constatado pelo teor do caput deste preceito e pelo disposto no art. 12, II, o qual fala em 'ressarcimento integral do dano' na hipótese do art. 10, enquanto que nos demais casos de improbidade tem-se o dever de 'ressarcimento integral do dano, quando houver"

"Diante disso, o art. 21, I da LIA (que estabelece que a efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público é desnecessária para a aplicação das sanções decorrentes de atos de improbidade administrativa) deve ser interpretado de forma lógico-sistemática, de modo que a se entender que a efetiva ocorrência de dano somente não é exigível para a configuração dos atos de improbidade administrativa descritos nos arts. 9° e 11 da LIA. Com isso, "o disposto no art. 21, I, deve ser interpretado em harmonia com os demais preceitos da Lei de Improbidade, em especial o art. 100, já que para a subsunção de determinada conduta às figuras previstas neste dispositivo é imprescindível a ocorrência de dano ao patrimônio público, o que por evidente, não poderia ser dispensado".

Superando o conceito de prejuízo ao erário, debruçamo-nos sobre o cerne, objeto do presente artigo, o paradigmático julgamento a ser realizado pelo STJ.

Analisando a casuística da temática enfrentada, em 26/5/2021 deu-se início a uma sessão virtual no Superior Tribunal de Justiça, para o julgamento do RE 1.912.668 - GO.

O MPF alega ter ocorrido irregularidades na execução do convênio 2.128/2001, firmado entre Município de Águas Lindas/GO com o Ministério da Integração Nacional, com o intuito de construir sistema de galerias pluviais e asfaltamento de vias em prol do Município, e objetiva a condenação do ex-gestor municipal e da pessoa jurídica contratada para execução do contrato 003/1997.

Na decisão prolatado pelo TRF - 1ª região, é alegado ausência de provas que comprovem o prejuízo ao erário, bem como ausência comprovação de qualquer irregularidade na prestação de serviço. Segue o teor da decisão:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA LEI 8.429/92. EX-PREFEITO. PRECEITOS LEGAIS QUE REGEM O PROCESSO LICITATÓRIO. CONVÊNIO EXECUTADO EM SUA INTEGRALIDADE. CONTAS APROVADAS SEM RESSALVAS. RECURSOS EMPREGADOS EM PROL DA MUNICIPALIDADE. FALTA DE COMPROVAÇÃO DO DANO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS INDICATIVOS DE DOLO. INEXISTÊNCIA DE ATO DE ÍMPROBO. SENTENÇA MANTIDA. APELAÇÃO DO MPF NÃO PROVIDA. 1. O Ministério Público Federal objetiva a condenação do ex-gestor municipal e da pessoa jurídica contratada para execução do contrato 003/1997, nas sanções previstas na lei 8.429/92, sob a alegação de que em tese teriam concorrido em irregularidades na execução do convênio. 2.128/2001, firmado entre o Município de Águas Lindas de Goiás/G0 com o Ministério da Integração Nacional, cujo objetivo era construir sistema de galerias pluviais e asfaltamento de vias em prol da municipalidade. 2. Das provas juntadas aos autos, extrai-se a ausência de comprovação do prejuízo ao erário, ou que o requerido tenha agido com o intuito deliberado de ocultar atos ardilosos praticados pela municipalidade, nem que tenha obtido qualquer proveito próprio ou em favor de terceiros, pelo contrário, se afigura que os serviços foram devidamente prestados, tendo o órgão convenente aprovado suas contas sem qualquer ressalva. 3. O ato ímprobo, além de ilegal, é pautado pela desonestidade, deslealdade funcional e má-fé. Não é o caso. 4. Não estando comprovada desonestidade, deslealdade funcional e má-fé, tão menos o dano ao erário, deve a sentença manter-se intacta. 5. Sentença mantida. 6. Apelação do IVIPF não provida. (grifou-se)

REsp 1912668 / GO (2020/0339077-8) autuado em 17/12/2020.

No referido recurso especial, o MPF refere que foram violadas as disposições do art. 10, inc, VIII, da lei 8.429/92, e dos arts. 89 e 90 da lei 8.666/93

"A legislação que orienta a instauração e o desenvolvimento dos procedimentos licitatórios, a exemplo da lei 8.666/1993 e da lei 10.520/2002, deve integrar o processo de adequação típica da improbidade administrativa, notadamente quanto ao tipo previsto no art. 10, VIII, da lei 8.429/1992, de modo que o seu descumprimento - com exceção de hipóteses de diminuta relevância caracterizada como mera irregularidade. - Implica não somente 'ofensa ao princípio da isonomia, mas verdadeiro dano in re ipsa ao erário, vez que a Administração Pública perde a oportunidade de escolha da proposta Mais vantajosa. (...). Sobreleva destacar que, em recente julgado (6/2/2018), ,o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar recurso extraordinário (RE 696533/SC, rel. min. Luiz Fux, red. p/ o ac. min. Roberto Barroso, (InforMativo 890), cuja matéria de fundo compreendia os crimes previstos nos arts. 89 e 90 da. lei 8.666/1993, 'que guarda estrita relação de similitude com a, improbidade administrativa prevista no art. 10, VIII,. da lei 8.429/1992, assentou na linha do quanto aqui explicitado, verbis: (...). Ora, se para a configuração dos crimes previstos nos arts. 89 e 90 da lei 8.666/1992 não se exige a demonstração de dano ao erário quantificado, com mais razão na seara da improbidade administrativa deve ser afastada tal exigência, vez que à bem jurídico tutelado, nas palavras do Pretório Excelso, é a própria "moralidade administrativa e o interesse público".

REsp 1912668 / GO (2020/0339077-8) autuado em 17/12/2020.

Conforme o voto do exmo. sr. ministro Og Fernandes (relator), no referido recurso especial, ficou sobre a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça, definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa).

Em sua análise, todos os pressupostos processuais de admissibilidade foram preenchidos bem como nítida relevância de abrangência do tema, entendeu que o presente recuso especial deve ser indicado como representativo de controvérsia, conforme e parágrafos 5º e 6º do artigo 1.036 do Código de Processo Civil c/c inciso II do artigo 256-E do regimento interno.

Segundo o referido ministro, em seu voto, foi necessário a determinação da suspensão do processamento de todos os processos pendentes que versem sobre a questão sob julgamento que tramitem no território nacional, logo a suspensão prevista no art. 1.037, II, do CPC deve alcançar a presente demanda.

Conforme explica a plataforma virtual do Superior Tribunal de Justiça, segundo a legislação processual, cabe ao presidente ou vice-presidente do tribunal de origem selecionar dois ou mais recursos que melhor representem a questão de direito repetitiva e encaminhá-los ao Superior Tribunal de Justiça para afetação (incidente no recurso para propiciar que se decida se a questão será julgada sob a sistemática dos repetitivos ou não), devendo os demais recursos sobre a mesma matéria ter a tramitação suspensa.

Após afetação, julgamento e publicação da decisão colegiada sobre o tema repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça a mesma solução será aplicada aos demais processos que estiverem suspensos na origem.

Nesse sentido, a egrégia PRIMEIRA SEÇÃO do Superior Tribunal de Justiça afetou o processo ao rito dos recursos repetitivos RISTJ, art. 257 - C) para delimitar questão que se segue, "Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário".

A referida questão possui uma extrema importância no que tange ao fato de definir se a frustação de licitude por si só já presume o dano ao erário ou se deve haver a comprovação efetiva de um dano ao erário para apenas dessa forma, ser comprovado o ato de improbidade administrativa.

É certo que o tema ainda vai ser julgado pelo órgão competente, entretanto, é possível realizar certas observações acerca do tema. O Ministério Público Federal tem a importante função jurisdicional do Estado, sua atuação no referido Recurso, tem como intuito punir o que alega ter sido uma violação de um ato administrativo.

Em sua defesa, alega que a Administração Pública teria perdido oportunidade de escolha de proposta mais vantajosa, e que isso seria um verdadeiro dano in re ipsa.

O dano in re ipsa, é um dano vinculado a própria existência do fato ilícito, sendo um dano presumido, desnecessita comprovação. É um dano, em regra utilizado por consumidores, por configurarem o polo mais vulnerável da relação de consumo, um exemplo comum é a inscrição indevida em cadastro de restrição de crédito por empresas. Em caso de aplicação do dano in re ipsa ao consumidor, trata-se de dano extrapatrimonial, cujo montante é aplicado considerando o caráter pedagógico e punitivo do dano, bem como a capacidade de pagamento do polo condenado, sendo impossível aferir o efetivo dano patrimonial causado.

No caso das licitações, a aplicação análoga do princípio acima citado, estaria resultando a devolução de todos os valores recebidos a título de prestação de serviços, cujos custos foram arcados pelo contratado, e este, sequer teve participação na ação ou omissão causadora do ilícito, não podendo ser punido em vias pedagógicas, pela simples participação em processo licitatório.

A questão merece reflexão, pairando dúvidas sob a legitimidade e cabimento de o MPF, em defesa do Estado, utilizar um dano presumido, que serve como meio de reparação para polos vulneráveis de uma relação jurídica.

Intrigante imaginar o Estado em uma posição desproporcional, vulnerável em face à pessoa física do gestor público, que pela teoria do órgão, representa o próprio estado, e, pior seria imaginar a figura do administrado/contratado, que sequer possui poder gestão ou ingerência sobre o processo licitatório. De qualquer forma, não é, em todo e qualquer caso, que pode ser utilizado o dano presumido, deve ser feito uma análise do órgão julgador para decidir que o caso concreto é dotado de dano in re ipsa.

Conforme a decisão do TRF - 1ª região, não foram demonstradas quaisquer provas que comprovem o ato ímprobo, bem como a lesão ao erário. Em sua defesa o MPF alega que em decisão do STF para a configuração dos crimes previstos nos arts. 89 e 90 da lei 8.666/1992, não se exige demonstração da quantificação do dano ao erário, logo, declara não deve demonstrar o dano ao erário, apenas a comprovação de ato ilícito, que por si só estaria demonstrado o dano ao erário.

O simples fato de haver um ilícito licitatório poderia ensejar de maneira automática a subsunção à improbidade administrativa por dano ao erário?

Nos diversos casos nos quais os tribunais de conta aprovam uma tomada de contas especial com ressalvas de conduta, lançando normas programáticas, de caráter pedagógico ao ente licitante, ou seja, entendendo que a licitação pode ser irregular, ou até mesmo ilegal, impossível raciocinar, que todos estes casos seriam passíveis de improbidade por lesão aos cofres públicos pelo simples fato de pairar uma irregularidade sanável.

O Superior Tribunal de Justiça, em futuro recente, irá decidir não somente pela aplicação presumida de um inciso da lei de improbidade administrativa, mas por entender se o Estado necessita presumir um dano causado por uma pessoa física por não ter instrumentos mínimos hábeis a provar a lesão causada a seus cofres.

O STJ decidirá se cabe presumir o dano, ou seja, se, na dúvida, cabe a condenação do réu que responde por improbidade administrativa. Em outras palavras o STJ decidirá pela aplicação presumida do princípio da culpabilidade, pois infelizmente o Estado, que não é munido de instrumentos capazes de demonstrar o dano causado (por sua suposta situação de hipossuficiência) tem que punir pelo dano que não conseguiu demonstrar.

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Direito Administrativo I. Holando Jr. André II. Torres, Ronny Charles Lopes de III.
Sobre recursos repetitivos.
Improbidade administrativa: direito material e processual / Daniel Amorim Assumpção Neves, Rafael Carvalho Rezende Oliveira. - 8. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020.
PINTO, Edras Maciel Fernandes; BARBOSA, Denio Dutra. Lesão ao erário derivada de ação ou omissão administrativa culposa: improbidade ou mero ilícito civil? Revista do curso de direito UNIFOR. Minas Gerais v. 3 n. 2 (2012) p. 68. (verificar citação)

Leonardo Maciel Marinho

Leonardo Maciel Marinho

Profissional com LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/SP, LLM em Direito Societário no Insper/SP e Mestrado em Ciência Jurídica Forense, na Universidade Portucalense. Autor de três livros: O Pregão - A Necessidade de Inversão Parcial das Fases (Editora Scortecci - 2008), Manual Prático de Licitações e Contratos Administrativos (Editora Scortecci - 2014), e Manual Jurídico das Startups (Editora Scortecci - 2019). Secretário Geral da Comissão de Assuntos Regulatórios da OAB/DF e Membro da Comissão de Direito Digital, Tecnologias Disruptivas e Startups da OAB/DF.

Ricardo Rodolfo Rios Bezerra

Ricardo Rodolfo Rios Bezerra

Profissional graduado em Direito no IDP, pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal no IDP, pós-graduando em Anticorrupção e Compliance no IDP e atualmente cursa, como aluno especial, mestrado na UNB. Possui artigo escolhido para publicação na coleção do IDP Grandes Temas da Graduação.

Vitória da Silva Castro

Vitória da Silva Castro

Profissional do escritório Maciel Marinho Advocacia.

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