A inconstitucionalidade das restrições às liminares no mandado de segurança; consequências do julgado do STF
Referidas restrições à concessão de liminares têm origem em antigas legislações pátrias.
quarta-feira, 16 de junho de 2021
Atualizado às 15:12
Assim como o habeas corpus, instrumento jurídico utilizado, precipuamente, no âmbito criminal, (art.5º, LXVII, CF) e o habeas data (art.5º, LXXII, CF), o mandado de segurança (art.5º, LXIX, CF) é ação de natureza constitucional, normalmente de natureza cível, em que pessoas físicas e jurídicas, além de determinados 'órgãos despersonalizados', preenchidos os requisitos de direito líquido e certo - individual (direito subjetivo próprio), ou coletivo (art.5º, LXX,CF), demonstrados mediante provas documentais - , solicitam ao magistrado a ordem, na maior parte das vezes imediata, para evitar lesão (ameaça) ou cessá-la, em virtude de atos jurídicos (leis, decisões judiciais, atos e contratos administrativos) e comportamentos (ações e omissões), inconstitucionais, ilegais, ou abusivos, provenientes de autoridades ou de particulares no exercício de funções públicas.
Trata-se de importante meio de proteção jurídica, consagrado constitucionalmente, nos direitos e garantias individuais e coletivos, cuja ação tem os seguintes caracteres, referidos por Seabra Fagundes: "a natureza das situações jurídicas a cujo amparo ele se destina, a maneira por que atua no sentido de realizar essa proteção, e a rapidez do rito processual que o rege."(O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, p. 245, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 1984).
Por conta dessa disciplina jurídica, a liminar é da essência da Ação de Mandado de Segurança, pois decorre da própria natureza do ato a ser desfeito, ou a ser evitado, a fim de proporcionar, de pronto, a tutela adequada à proteção do direito (Heraldo Garcia Vitta, Mandado de Segurança, p.108, 3ªed., Saraiva, 2010).
Com efeito, a liminar do magistrado tanto poderá antecipar a tutela solicitada pelo impetrante (exemplo da determinação à autoridade para expedir certidão negativa de débito tributário), quanto ter efeitos meramente acautelatórios, sobretudo nos casos de ameaça ao direito do impetrante [mandado de segurança preventivo], a fim de evitar danos às partes da relação processual (suspensão de procedimento licitatório; suspensão da exigibilidade do crédito tributário, enquanto se discute a pretensão propriamente dita).
Logo, preenchidos os requisitos legais, o juiz deverá conceder a liminar, mesmo sem pedido da parte. Basta relembrar, como explica J.M. Othon Sidou, "o caráter ex officio recomendado aos magistrados romanos para procederem na expedição dos interditos."(Do Mandado de Segurança, p.155, 2ªed., Freitas Bastos, 1959). [Migalhas 14.6.2021]
A atual Lei de Mandado de Segurança (12.016, 2009), no artigo 7º, estabelece a seguinte regra: ao despachar a inicial, o juiz ordenará: III - que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.
Percebe-se desse arcabouço jurídico a importância da liminar na Ação de Mandado de Segurança, a exigir imediata intervenção judicial na proteção do direito subjetivo do impetrante. A rigor, o magistrado expede ordens (não-fazer, fazer, tolerar), determinações dirigidas à autoridade coatora, visando à satisfação do direito violado, ou a ser violado (ameaça).
Apesar dessas características, o Mandado de Segurança deixou de ter proeminência de outros tempos, por conta de 'ingerências' legislativas e jurisdicionais: normas legais e decisões dos Tribunais passaram a impedir a concessão de liminares, em dadas hipóteses; tratava-se de barreira intransponível, impedimento absoluto à livre apreciação judicial, mitigando o acesso à jurisdição, princípio basilar no regime Democrático de Direito (art.1º, "caput", c.c. o art.5º, XXX, CF).
A vedação está expressa no artigo 7º, §2º, da atual Lei de Mandado de Segurança '§ 2o Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza'
Referidas restrições à concessão de liminares têm origem em antigas legislações pátrias (leis 2.770/56; 4.348/64; 5.021/66), editadas sob a égide da anterior Lei de Mandado de Segurança (lei 1.533/51), as quais foram revogadas pela atual Lei de Mandado de Segurança (lei 12.016/19, art.29).
Essas regras, assim como outras, de natureza semelhante, contidas em leis afetam diretamente o acesso à ampla jurisdição, além do devido processo legal (art.5º, LIV, CF), da igualdade (art.5º, "caput" e inciso I) e da moralidade (art.37, "caput") (Heraldo Garcia Vitta, ob.cit., p.117)
Entendíamos perfeitamente possível, em que pesem as vedações legislativas e o beneplácito dos Tribunais, a concessão de liminares, em mandado de segurança, nas hipóteses de força maior ou estado de necessidade; logo, em face da dignidade da pessoa humana, nas ações de natureza previdenciária as vedações legais seriam írritas, 'nulas'; assim também na liberação de bens nas alfândegas, e nas compensações tributárias, presentes os requisitos legais. Outrora no exercício da magistratura federal, concedíamos mesmo liminares, a par das restrições legais.
Aliás, sob o regime da lei processual anterior (CPC/73), havia decisões que admitiam a concessão de tutela antecipada (art.273, CPC revogado) contra atos do Poder Público, 'em casos especialíssimos, presentes a força maior ou o estado de necessidade (STJ, Resp. 200.686-PR, Rel. min. Gilson Dipp).
Pois bem. Conforme o jargão, a Justiça tarda, mas não falha. Na ADI 4.296, em 9 do corrente, o Supremo Tribunal Federal acolheu a tese da Ordem dos Advogados do Brasil, e julgou procedente a ação, decretando a inconstitucionalidade dessas restrições pecaminosas [art. 7º, § 2º]; a mesma decisão também declarou inconstitucional o artigo 22, §2º, da Lei de Mandado de Segurança, quanto à exigência de que, no Mandado de Segurança Coletivo, há necessidade de prévia manifestação do representante judicial da pessoa jurídica de direito público.
Dessa forma, a parte final do artigo 1.059, CPC, está expungida da ordem jurídica [À tutela provisória requerida contra a Fazenda Pública aplica-se o disposto nos arts. 1º a 4º da lei 8.437, de 30 de junho de 1992, e no art.7º, §2º, da lei 12.016, de 7 de agosto de 2009].
Noutro dizer, devido à decisão do Supremo Tribunal Federal, referidas restrições às liminares (art.7º,§2º, LMS) não se aplicam nas tutelas provisórias. Isso porque, o artigo 1º, "caput", da lei 8.437/92, ao proibir tutela provisória contra atos do Poder Público, remete às situações de vedações de liminares em ações de mandado de segurança [art. 1°, "caput": 'Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal'].
Como não há mais vedação legal para a concessão de liminares em ações de mandado de segurança, nenhum óbice haverá para os juízes concederem tutelas provisórias contra atos do Poder Público.
A partir de agora, os magistrados poderão apreciar as liminares nas ações de mandado de segurança e as tutelas provisórias nas ações comuns contra atos do Poder Público com liberdade e sem as amarras legislativas! Demorou!