Crimes hediondos e progressão de regime
Após longo debate o Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8072/90 que previa o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado para os crimes hediondos ou a ele equiparados.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007
Atualizado em 19 de janeiro de 2007 13:02
Crimes hediondos e progressão de regime
Vladimir Brega Filho*
Após longo debate o Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8072/90 (clique aqui) que previa o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado para os crimes hediondos ou a ele equiparados1.
A decisão modifica entendimento já consolidado da corte constitucional2 e trará grande reflexo no sistema penitenciário brasileiro, pois mesmo tendo sido proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, indicará um entendimento aos juízes e tribunais, e mais, em caso de não acolhimento da orientação, permitirá que os sentenciados, através de habeas corpus, pleiteiem a progressão de regime junto ao Supremo Tribunal Federal.
Assim, não resta dúvida que o novo panorama é a admissão da progressão de regime para os crimes hediondos ou a ele equiparados, impondo-se aos operadores do direito a análise de qual o montante de pena que deve ser cumprido pelo condenado para poder pleitear a progressão. A Lei de Execuções Penais, para crimes não hediondos, exige o cumprimento de um sexto da pena em regime mais rigoroso e a solução mais cômoda seria a de aplicar esse montante para todas as espécies de crimes.
Ocorre que a Constituição Federal, no art. 5º, inciso XLIII estabeleceu que os apenados por crimes hediondos devem ser tratados de forma mais severa, de onde concluímos que o tratamento igual a situações diferentes também pode ser considerado descumprimento da diretriz constitucional. Parece claro, portanto, que a aplicação do montante de um sexto da pena para a progressão nos crimes hediondos, é inconstitucional por descumprimento do princípio constitucional que determina maior severidade no tratamento dos réus condenados por crimes hediondos.
A respeito do tema, colacionamos trecho do voto do Min. Carlos Ayres de Brito proferido no já citado HC 82959 (clique aqui).
"14. Acontece que essa utilização do parâmetro uniforme de pelo menos 1/6 da pena judicialmente aplicada redunda em tratamento jurídico igual para situações ontologicamente desiguais. Pois não se pode obscurecer o fato de que, pelo inciso XLIII do art. 5º da Magna Carta Federal, é sonegado às pessoas condenadas por crimes hediondos o acesso a determinados benefícios que ela, Constituição, deixou de interditar aos acusados por delitos comuns. São, especificamente, os benefícios da fiança, da graça e da anistia (inciso XLIII do art. 5º). Mais até, não se pode ignorar que a Magna Lei de 1988 exigiu que se levasse em conta a natureza do crime até mesmo para o efeito de segregação em estabelecimento penitenciário oficial (ainda o art. 5º, inciso XLVIII). A robustecer o juízo de que tanto o momento jurisdicional da cominação quanto o momento administrativo de execução da pena devem refletir aquela fundamental dicotomia entre os delitos timbrados pela hediondez e os crimes que não chegam a esse plus de lesividade social.
15. Daqui resulta que também tenho por inconstitucional a aplicação da regra geral de 1/6 aos condenados pelos delitos hediondos. (grifo nosso)
Salientamos que a norma constitucional, inserida no capítulo dos direitos individuais, cuida-se de uma norma-princípio que deve inspirar a elaboração e interpretação de toda e qualquer norma 3 e qualquer entendimento que não a observe, será tido como inconstitucional.
Frisamos, ainda, que não é possível discutirmos a constitucionalidade do inciso XLIII, do art. 5º da Constituição (clique aqui), pois o dispositivo é fruto do poder constituinte originário. Isso porque diante do princípio da unidade da Constituição não é possível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais). Nesses casos, segundo Luís Roberto Barroso, "há de encontrar o espaço adequado de incidência de cada uma das normas que potencialmente podem incidir sobre o caso concreto".4
A solução, então, é buscarmos no "sistema legislativo-penal-ordinário" dispositivo ou dispositivos dos quais se extraia o quantum da pena que deve ser cumprida no regime mais severo. Estaríamos utilizando o método de interpretação conhecido como sistemático ou lógico-sistemático.
Cezar Roberto Bitencourt explicando tal método de interpretação, escreve o seguinte:
"O critério lógico-sistemático de interpretação constitui valoroso instrumento de garantia da unidade conceitual de todo o ordenamento. Na verdade, somente se pode encontrar o verdadeiro sentido de uma norma se lhe for dada interpretação contextualizada. Com efeito, a ciência jurídico-penal constrói sistemas e microssistemas que auxiliam e facilitam a aplicação da lei penal".5
Escreve Arnold Wald que pela interpretação sistemática "se interpreta um artigo de lei por outro, pela situação dentro do sistema legislativo".6
Dessa forma, o intérprete pode e deve encontrar no sistema, normas que justifiquem a escolha do montante de pena a ser cumprida para a progressão de regime nos crimes hediondos.
Nessa busca, analisaremos o requisito objetivo estabelecido para a concessão do livramento condicional, já destacando que não se trata de fazer analogia, pois o livramento condicional e a progressão são benefícios completamente diferentes.
O sentenciado condenado à prática de crime não hediondo poderá ser beneficiado com o livramento condicional quando cumprir um terço da pena7. Sendo o crime hediondo, o mesmo benefício poderá ser concedido quando o réu cumprir dois terços da pena8, ou seja, para beneficiar-se do livramento condicional em crime hediondo, a lei exige que o condenado tenha cumprido o dobro do montante exigido para o crime comum.
Seguindo esse raciocínio e, portanto, realizando uma interpretação sistemática do direito, podemos dizer que nos crimes hediondos, a progressão só poderá ser concedida quando o sentenciado tiver cumprido o dobro do que se exige para o crime comum, ou seja, um terço da pena.
Esse mesmo patamar deve ser aplicado para os sentenciados reincidentes, já que a Lei de Execuções Penais, para o fim de fixar o montante de pena a ser cumprido no regime mais rigoroso, não faz distinção entre reincidentes e primários. Reincidente ou primário, o sentenciado deve ter cumprido um sexto da pena para progredir de regime. A reincidência deve ser analisada dentro dos requisitos subjetivos da progressão.
Dessa forma, tratando-se de crimes hediondos ou a ele equiparados, o preso, primário ou reincidente, poderá pleitear a progressão quando tiver cumprido mais de um terço da pena no regime fechado, e cumprindo mais um terço poderá requerer a progressão ao regime aberto. Poderia, a seguir, como último estágio do cumprimento da pena, pleitear o livramento condicional.
Notamos que a doutrina considera o livramento condicional o estágio final do cumprimento da pena, o que seria preservado com esse entendimento.
Nesse sentido é o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt:
"O livramento condicional, a última etapa do cumprimento de pena no sistema progressivo, abraçado em geral por todas as legislações penais modernas, é mais uma das tentativas de diminuir os efeitos negativos da prisão" (grifo nosso).9
Anotamos que não se trata de interpretação ampliativa, pois não estamos ampliando o alcance da norma, que por sinal, sequer existe. Anotamos ainda que, não estamos aplicando a analogia, pois como já foi dito, as situações não são semelhantes, são díspares, e o pressuposto da analogia é a congruência das situações.
Concluindo, acreditamos que, uma vez admitida a progressão de regime para crimes hediondos pelo Supremo Tribunal Federal, o preso deve cumprir ao menos um terço da pena no regime mais severo para pleitear a progressão de regime. Este é o requisito objetivo decorrente do sistema "legislativo penal-ordinário" que deve estar conjugado aos requisitos subjetivos previsto na Lei de Execuções Penais.
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Bibliografia:
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001.
__________. Tratado de direito penal, v. 1. 9ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2004.
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal, v. 1. 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. Curitiba: Juruá, 1999.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. (7ª tiragem), São Paulo: Malheiros, 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. v. 1, 15ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.
__________. Execução penal. 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2002.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.
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Notas:
1HC nº 82959/SP, rel. Min. Marco Aurélio, decisão proferida em 23 de fevereiro de 2006.
2Súmula nº 698 do STF: "Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução de pena aplicada ao crime de tortura".
3Walter Claudius Rothenburg, Princípios constitucionais, Porto Alegre: SAFE, p. 16.
4Interpretação e aplicação da Constituição, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p.192.
5Tratado de Direito Penal, v. 1, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 132.
6Curso de Direito Civil brasileiro, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 70.
7Art. 83, inciso I do Código Penal.
8Art. 83, inciso V do Código Penal.
9Tratado de direito penal, v. 1, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 698.
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*Promotor de Justiça
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