Cláusulas de take or pay em contratos de fornecimento de energia elétrica durante a pandemia do covid-19
A obrigação de take or pay, portanto, insere-se em contexto de bilateralidade, impondo a obrigatoriedade de disponibilização de bens ou serviços.
terça-feira, 8 de junho de 2021
Atualizado às 08:01
A previsão contratual de certo volume mínimo de energia a ser adquirido por determinados períodos parte do pressuposto de que a parte possa fazer uso da energia elétrica contratada. Entretanto, o fechamento dos shopping centers e a restrição de seus funcionamentos frustram a própria finalidade que orienta os contratos de fornecimento de energia elétrica. Assim, os contratantes encontram-se numa situação de involuntária impossibilidade de utilização dos níveis de energia contratados. Nesse contexto, a previsão de cláusula de take or pay pode ampliar o prejuízo do empresário que, além de não poder atuar em razão das medidas restritivas, ainda deverá manter o pagamento pela energia contratada - e não utilizada. Dessa forma, cabe analisar o que se ponde ponderar para mitigar os impactos da impossibilidade de cumprimento dessa previsão contratual, em atenção à origem e à finalidade desse tipo específico de cláusula em contratos de fornecimento de energia elétrica.
Segundo VIEIRA é na "(...) acepção da obrigação de garantia que se enquadra a cláusula de take or pay. Recorrendo-se à finalidade da cláusula de take or pay, verificamos que, ao prevê-la, o escopo almejado é assegurar remuneração mínima de todo o investimento efetuado,de modo a se alinhar perfeitamente com a ratio das cláusulas de garantia".¹ Sendo assim, é por meio dessa cláusula que um dos contratantes assegura o pagamento por quantidade mínima de bens ou serviços a serem disponibilizados pela contraparte, classificando-se como cláusula de garantias sob a ótica da intensidade do vínculo obrigacional.
A obrigação de take or pay, portanto, insere-se em contexto de bilateralidade, impondo a obrigatoriedade de disponibilização de bens ou serviços. Caso não disponibilizados, pode a outra parte cessar o pagamento. Do mesmo modo, se não houver o pagamento pelos bens ou serviços, a respectiva oferta pode cessar. Assim, a cláusula impõe ao adquirente dos bens e serviços não somente obrigação de pagar quantia pela disponibilização de determinada quantidade mínima do objeto do contrato, mas também de efetuar esse pagamento independentemente do efetivo consumo desse bem ou serviço. Como consequência, o adquirente da prestação assume os riscos da não utilização.
Entretanto, na cláusula de take or pay, diferentemente da cláusula de garantia, a assunção de riscos não é total. Os riscos assumidos na cláusula de take or pay restringem-se àqueles específicos da utilização dos bens ou serviços. Desse modo, a obrigação de pagamento deve ser garantida mesmo diante não utilização, não persistindo nos casos de não disponibilização da prestação pelo contratante.
Observa-se que, no contexto da pandemia do covid -19, os atos estatais que impedem ou restringem o funcionamento dos shopping centers não poderiam ser evitados pelos contratantes, visto que refletem as recomendações sanitárias nacionais e internacionais de medidas que evitem a propagação da doença. Assim, com a interrupção ou restrição das atividades desses estabelecimentos, causa e destino da contratação de energia, os contratantes ficaram proibidos de consumir energia elétrica como previsto. Essa situação, absolutamente incontornável, torna impossível o cumprimento da obrigação de utilizar o volume mínimo de energia adquirido e, muitas vezes, de pagar por uma energia que os shopping centers estão impedidos de consumir.
Como uma possibilidade de socorro ao tomador do serviço ou ao adquirente do serviço nesse caso, o ordenamento jurídico consagra a obrigação de garantia no art. 393 do Código Civil, que atribui ao devedor a responsabilidade pelos prejuízos resultantes do caso fortuito e da força maior somente nos casos de expressa previsão entre as partes,
A pandemia do covid-19 poderia ser enquadrada na hipótese do parágrafo único do art. 393 do Código Civil, que define o evento de caso fortuito e força maior como aquele "cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". Isso porque os pressupostos para a configuração do caso fortuito ou força maior e fato do príncipe estariam presentes, tendo em vista que a impossibilidade de consumir o volume mínimo de energia elétrica contratado é consequência direta da paralisação e da restrição das atividades dos estabelecimentos. Essas, por sua vez, decorrem exclusivamente das medidas estatais e sociais de combate à disseminação do covid-19, que não poderia ter sido prevista nem evitada.
Como o do referido artigo estabelece que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado", estaria o adquirente exonerado da responsabilidade pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior.
Ressalta-se que não se trata de postergar o cumprimento da obrigação para momento posterior à circunstância que causa a paralisação dos estabelecimentos, mas sim se não incidência da obrigação durante o período do evento.
A própria ABRACEEL, associação representante das comercializadoras de energia, reconheceu a pandemia do covid-19 como evento de força maior, em razão de os shopping centers terem "sofrido fechamento físico de seus estabelecimentos ou percebido efeito equivalente ao provocado pelo fechamento - como pode ocorrer com a redução da demanda provocada por medidas oficiais de confinamento, as quais, por impedirem a circulação de pessoas, inviabilizam o consumo e o comércio".², o que afetou os consumidores.
Outrossim, o STJ também se posicionou no sentido de que o "fato do príncipe", muito embora tenha nascido para relações de direito público, é aplicável aos contratos entre particulares, pois as imposições feitas por autoridade pública podem ocasionar resultados desfavoráveis aos negócios jurídicos particulares.³
Desse modo, devido ao isolamento social e ao fechamento dos shoppings centers em decorrência de atos governamentais, os contratantes não podem ser responsabilizados pela não utilização do volume mínimo de energia elétrica previsto contratualmente em cláusulas de take or pay, afastando-se, assim, qualquer obrigação de pagamento da contraprestação por essa prestação ao fornecedor e/ou gerador.
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1. VIEIRA, Vitor Silveira. A Cláusula de take or pay no Direito Privado Brasileiro: Qualificação, Regime e Aplicação. Revista de Direito Privado. Vol. 106. Out./dez. 2020. p.101-150.
2. Disponível aqui.
3. REsp 1.280.218/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, Julgado em 21/06/2016, DJE 12/8/16.
Carolina Kayat Avvad Velloso
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Colaboradora no escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini em Curitiba. Membro do Grupo de Direito Societário Aplicado da UFPR. Membro do Grupo de Arbitragem e Direito Comercial da UFPR.