Doutrina e ensino jurídico: Pensar o caso fortuito e força maior enquanto obrigação civil degenerada associada ao capítulo sobre inadimplemento
Na obrigação natural, como a dívida em jogo ilegal ou um título vencido, as características para a ação judicial são imperfeitamente semelhantes à um pedido jurisdicionalmente válido, pois as partes existem, a causa de pedir existe e, por fim, o pedido resta comprometido pela falta do poder garantidor.
quarta-feira, 26 de maio de 2021
Atualizado às 15:09
Desde o início da pandemia do covid-19, a força dos artigos 393 e 399 do Código Civil se configura como tema cível de alta relevância. É questão central saber se no caso fortuito e força maior há a extinção da obrigação, ou não. Para além da legalidade, importa considerar o desafio frente ao caso concreto. Assim, a prestação ao credor tem permanecido sempre a critério da consideração in casu quando se observa que variadas decisões que não permitem falar em extinção, embora outras sejam de resposta positiva, pelo fator da superveniência.
Vê-se que o inadimplemento pode ser a simples mora com juros e atualizações, ou ser o inadimplemento absoluto, quando se sabe que o prejuízo é qualquer grau de perda, passível ainda de cumprimento útil ou de atingir o grau maior do descumprimento definitivo, i.e., a extinção. Faz-se aqui a resenha de dois autores, Daniel Carnacchioni e Cristiano Vieira S. Pinto que alocam a discussão sobre o assunto em partes diferentes nos seus livros.
Cristiano Pinto abre um subtópico específico para tratar dos "outros casos da extinção da obrigação sem pagamento". Já Daniel Carnacchioni insere o tema como subtópico de espécies de inadimplemento que está vinculado a uma categoria maior, a teoria do inadimplemento. Essas são apenas exemplificações de como abordar o tema na sequência de um curso de Direito Civil. Elas também refletem a postura de organização dos conteúdos em sala de aula pelos professores civilistas, que seguem um ou outro caminho de abordagem. Essa diferença não é vista aqui como irrelevante, mas como elemento de repercussões no entendimento correto da matéria.
ESCOPO DO PROBLEMA
Os juros moratórios, as perdas e danos, a correção do valor nominal e os honorários advocatícios podem alterar a prestação por decorrência da inadimplência. Temos no artigo 389, CC, que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado". Neste sentido, é importante observar que não se opera aqui a distinção entre inadimplemento absoluto ou relativo, este último sendo a própria mora, posto que a previsão legal não retira a utilidade da prestação, ainda que feita de forma imperfeita. Lembro ainda a opinião doutrinária de Cristiano Vieira S. Pinto: "Mas o inadimplemento relativo pode se tornar absoluto, por causa superveniente, como, por exemplo, a morte do credor". (PINTO, 2020, p. 359).
Bem diz Micaela B. B. Fernandes:
Dependendo da extensão e da importância deste descumprimento para a relação jurídica, para o programa contratual que foi estabelecido pelas partes, ele pode se caracterizar como um inadimplemento relativo, também conhecido como mora (palavra cuja raiz é a mesma da expressão demora, que remete ao atraso, mas que juridicamente se conecta não apenas com a imperfeição do cumprimento quanto ao tempo, mas também ao modo ou ao lugar de execução) ou como um inadimplemento absoluto. (FERNANDES, 2020)
Embora haja preleções que abordam o assunto em outras formas de extinção, o Código Civil trata do assunto em disposições gerais sobre o inadimplemento, capítulo que abriga tanto o artigo 389 quanto o 393, o qual isenta o devedor de prejuízos: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior". Seja o inadimplemento absoluto ou relativo, havendo comprovação de que o descumprimento obrigacional decorreu de caso fortuito ou força maior, o devedor poderá estar eximido de prejuízos. Bem define Daniel Carnacchioni: "o efeito principal do fortuito e da força maior é a exclusão de qualquer obrigação de indenizar por parte do devedor". (CARNACCHIONI, 2020: p. 818.) Nos casos em concreto, nasce apenas uma expectativa legal.
HAVERIA SIMILARIDADES COM A OBRIGAÇÃO NATURAL?
É importante também não confundir doutrinariamente o assunto com a obrigação natural, que poderia trazer características análogas. Se porventura tivéssemos que racionar em busca de uma analogia, a obrigação natural teria de ser levada em conta. Guardadas as similitudes, não parece plausível que se possa aventar haver conversão de obrigação civil para obrigação natural. Sem dúvida, o poder de garantia é faltante e o credor não tem como efetivar a responsabilidade do devedor de forma plena. Entretanto, não houve perda do direito de ação. Assim, a melhor classificação aqui proposta é a obrigação civil degenerada por fato superveniente. É uma caracterização atípica do inadimplemento e não uma situação própria de liberação do devedor. Na obrigação civil degenerada, o objeto da prestação é uma dívida efetiva e executável, mas em que a responsabilidade pode ser mitigada em diferentes níveis pelo juízo competente.
Na obrigação natural, como a dívida em jogo ilegal ou um título vencido, as características para a ação judicial são imperfeitamente semelhantes à um pedido jurisdicionalmente válido, pois as partes existem, a causa de pedir existe e, por fim, o pedido resta comprometido pela falta do poder garantidor. Sob o crivo das características do direito das obrigações, também vamos encontrar muitos elementos importantes: há sujeito passivo e objeto, mas não há o vínculo. O débito na obrigação natural foi constituído, assim como na alegação de caso fortuito e força maior, mas em ambas as situações não temos a obligatio: "apenas o credor não tem o poder de efetivar a responsabilidade do devedor" (PINTO, 2020, p. 301).
Há, contudo, diferença crucial entre o caso fortuito e força maior em relação à obrigação natural. A capacidade de ação inexiste nesta última enquanto a incidência de caso fortuito e a força maior decorrem da atividade jurisdicional que é provocada exatamente pela parte promovente ao recorrer ao juízo. Ora, no caso fortuito e força maior, a ação preenche seus elementos, há credor, há devedor e há objeto. O promovente deve provar os fatores supervenientes. Do contrário, não haverá nenhuma das situações previstas no Código Civil: repactuação (art. 479), a resolução contratual com a mitigação dos prejuízos (art. 478) ou a desobrigação plena equivalente à extinção do contrato quando se verifica o fato necessário (art. 393).
INADIMPLEMENTO
É importante lembrar aspectos mais amplos da questão. Lembra-se a "constitucionalização" do direito civil que se mostra particularmente presente no art. 421 do Código Civil brasileiro. Ali se apregoa que a liberdade contratual não é ilimitada. É o princípio que remete automaticamente à força dos direitos fundamentais a repercutir em diploma civil. Assim, o capítulo melhor para entender a função social do contrato e situações supervenientes é aquele do inadimplemento e não das formas extintivas da obrigação, sob pena de não compreendermos a natureza legítima das demandas a serem ajuizadas.
Uma parte da doutrina, que orienta as aulas ministradas na graduação em Direito, costuma ensinar o conteúdo como sendo extinção da obrigação. Não se pode trazer grande ênfase na extinção da obrigação, mas a exposição de fatores objetivamente incontroláveis, humanos ou advindos do mundo natural, extraordinário ou imprevisível. Sua característica principal é a inevitabilidade. É preferível abordar o conjunto das previsões de legalidade do que criar subtópico autônomo para o CC, art. 393.
É no sentido acima exposto que não há boa adequação em fazer do tema um subtópico de extinção da obrigação, uma vez que não há pressuposição prévia de resultado na extinção. A Legalidade não abrange todo o direito e a abstração afasta a inserção do estudante de pensar a situação real que irá enfrentar como operador do direito, como advogado, por exemplo. É o inadimplemento inevitável que conta.
As hipóteses de insuficiência para excluir a responsabilidade - que estão ausentes em Cristiano Pinto - se mostram claramente esmiuçadas e bem evidentes em Carnacchioni. São elas: a cláusula expressa em que o devedor assumiu o risco ou a responsabilidade; a mora anterior que faz o objeto da obrigação ser insuscetível de perecimento; por fim, a responsabilidade contratual civil objetiva. São essas as três hipóteses em que o "fato necessário e inevitável não será suficiente para a exclusão da obrigação de indenizar" (2020: 819).
(...) em quaisquer hipóteses em que não caracterizável a força maior ou o caso fortuito, inclusive, por exemplo, em todas em que há alocação específica de riscos por imposição legal ou pela própria natureza do negócio jurídico (portanto independente de previsão contratual expressa, ou, em alguns casos, até mesmo contra previsão contratual expressa), a responsabilidade por eventuais perdas e danos será sempre assumida pelo devedor. Incluem-se aí aquelas hipóteses construídas pela jurisprudência brasileira e designadas como ocorrências de "fortuito interno", aplicáveis em certas circunstâncias nas relações consumeristas, em que o risco de ocorrência de fatos incontroláveis que tragam prejuízo foi entendido como devendo ser absorvido pelo devedor (no caso o fornecedor) em função da própria natureza do negócio jurídico e de circunstâncias específicas do fornecimento de produtos e/ou serviços. (FERNANDES, 2020)
Assim sendo, o tema é afeito à discussão dos inadimplementos, i.e., dessas formas em que nem houve o pagamento, nem se configura meio claro de resolução do contrato. Daí o recurso à jurisdição: visa afirmar, por meio da ação, a necessidade de se encontrar uma saída que fuja ao princípio estrito dos pacta sunt servanda. Se impossível a conciliação ou mediação, deverá agir a cooperação processual das partes e do juiz, que irá impor decisão que viabilize uma solução jurídica cabível, agora na esfera judicial.
CONCLUSÃO
O artigo 393 prevê a desresponsabilização de prejuízos. Vê-se, pois, que o art. 393 se aplica de forma genérica a situações de inadimplemento relativo ou absoluto. Os tribunais assimilam a desobrigação completa como incomum, logo, não é regra genérica. Ao incidir eventual dispensa judicial, não há a extinção da obrigação como solução automática, tanto que temos a ação judicial como caminho de resolução do conflito. Pensar o tema no contexto do inadimplemento parece ser o caminho doutrinário e do ensino do Direito Civil que melhor faz o estudante compreender o art. 393 do Código Civil num contexto mais adequado.
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CARNACCHIONI, Daniel. Manual de Direito Civil. Volume Único. 3a ed. Salvador: Juspodium, 2020.
FERNANDES, Micaela B. B. Força maior e caso fortuito: o efeito de fatos incontroláveis pelas partes nos negócios jurídicos patrimoniais. Migalhas UOL, Internet, p. 1 - 7, 06 maio 2020. Disponível em: Força maior e caso fortuito: o efeito de fatos incontroláveis pelas partes nos negócios jurídicos patrimoniais - Migalhas (uol.com.br)
PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil Sistematizado. Salvador: Juspodium, 2020.