Coalização ou corrupção?
O problema da aplicação do artigo 317 do CPB em contexto político.
segunda-feira, 24 de maio de 2021
Atualizado às 17:29
O jornal Estado de São Paulo, no último dia 09/05, revelou suposto esquema de "compra" de apoio político pelo governo federal. A reportagem repercutiu em outros veículos de imprensa e há notícia de representação para investigação dos fatos perante o TCU e PGR - clique aqui. Em nota oficial, o governo federal nega qualquer irregularidade (clique aqui).
Segundo a reportagem, pouco antes das eleições dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e Senado Federal, três bilhões de reais de emenda do relator do orçamento federal foram destinados para execução de projetos indicados por alguns parlamentares, boa parte para compra de tratores e obras de desenvolvimento urbano em suas bases eleitorais, em troca de apoio político ao governo (voto dos parlamentares em favor de candidatos de interesse do governo). Em razão a destinação da verba, a prática noticiada ganhou o nome de "tratoraço".
A hipótese é de que a escolha dos locais e projetos contemplados para a execução do orçamento público foi determinada exclusivamente com base no apoio do parlamentar ao governo, não levando em conta outros critérios de conveniência e oportunidade. A notícia serve para ilustrar sensível problema dogmático dos crimes de corrupção: qual a relação entre trocas recíprocas de atos políticos e o delito de corrupção descrito no art. 317 do CPB? A conduta de aceitar apoio político em troca de editar ato para a execução orçamentária se equipara àquela definida como delito de corrupção?
Curiosamente, a literalidade da lei penal é insuficiente para responder essa simples questão. O artigo 317 do CPB prevê como crime a conduta de "solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem". Essa fórmula legal costuma ser traduzida como relação entre vantagem indevida e exercício da função pública.
O problema é que esse contorno formal parece incluir no campo abrangido pela proibição penal diversas práticas políticas que intuitivamente soam legítimas. É o caso, por exemplo, do parlamentar X que promete votar no projeto legislativo de interesse do parlamentar Y se esse, por sua vez, votar no projeto de interesse de X ("logrolling" legislativo). O termo "vantagem", previsto no enunciado legal, costuma ser definido de forma ampla, a abranger qualquer prestação material ou imaterial que melhore de forma objetiva e mensurável a situação econômica, jurídica ou apenas pessoal de um sujeito1. Poderia se incluir nesse conceito, por exemplo, (i) a nomeação de parlamentar ou de pessoa por ele indicada para ocupar cargo relevante em algum Ministério ou (ii) voto parlamentar em favor de determinado projeto legislativo ou em eleição para presidente da Câmara ou Senado.
Mas alguém pode apontar que há uma diferença substancial entre esse tipo de vantagem (cargo ou voto parlamentar) e o recebimento de dinheiro ou benefício privado. Um caso da realidade norte americana ilustra essa percepção. O antigo governador de Illionois, Rod Blagojevich, foi acusado de corrupção por tentar "vender" cargo de senador vago após a eleição de Barack Obama para presidente. Pela lei local, o governador é responsável pela escolha do substituto se a vaga do Estado no Senado ficar vaga. Blagojevich solicitou diferentes tipos de vantagens de diversos interessados para a vaga: dinheiro para alguns e nomeação para ocupar cargo no alto escalão do então governo eleito, para outros. O juiz do caso entendeu que houve corrupção em razão da solicitação de benefício privado, mas não em relação a conduta de solicitar cargo para o governo.
Aqui já é possível verificar a necessidade de critérios - apontados pela dogmática penal - para a compreensão do conteúdo material e objeto de proteção do injusto penal de corrupção, sob pena de se considerar corrupção qualquer troca política. Para alguns autores2, o agente político possui um dever de lealdade de atuar no melhor interesse de seus representados e de acordo com os princípios do cargo. Se no exercício da função o agente deixa de lado os interesses de seus constituintes, em razão da vantagem pessoal aceita e oferecida pelo corruptor, viola o dever de lealdade que emerge de sua função e, com isso, comete corrupção. Isso está presente ainda que o agente público tome a "decisão correta", mas em razão de um benefício pessoal (motivos errados). A dificuldade prática dessa abordagem, a nosso ver, é definir os interesses em jogo e atribuir ao juiz penal essa tarefa. No denominado "tratoraço", por exemplo, o acordo para obtenção de apoio político pelo governo pode ser visto como de interesse de seus representados, a depender da maneira como esse interesse é entendido.
Para outro ponto de vista3, a esfera de liberdade dos cidadãos é ameaçada quando o agente político - que exerce uma atividade fiducial, no interesse de terceiros - converte o exercício da função pública em um benefício privado. Como consequência prática, vantagens que permanecem na esfera pública ou política não constituem corrupção. Por outro lado, o abuso de poder e o risco à esfera de liberdade dos indivíduos está presente se o agente político exerce sua atividade em violação de seu dever funcional - em desrespeito à legalidade - condicionado por vantagem, ainda que não se trate de benefício privado. Ou seja, o agente político que solicita voto de parlamentares em seu favor poderia cometer corrupção se o ato político que oferece em contrapartida for ilegal, como, por exemplo, direcionamento em determinado procedimento licitatório.
A diferenciação entre vantagem pública e privada pode ser complementada e explicada, a nosso ver, com base na fórmula de Hellman do "cruzamento de fronteira entre distintas esferas de valor"4. Corrupção política é a troca de ato político por algo de valor de fora da esfera política. A autora chama atenção para o fato de que essa abordagem suscita relevantes questões normativas sobre o delito de corrupção: qual a fonte e quem deve definir o que está inserido em cada esfera de valor? O juiz penal deve definir se determinada vantagem está inserida na esfera política levando em conta a visão dos legisladores ou de acordo com aquilo que ele acha que deve ser? Nessa última hipótese, baseado em qual fonte? Outro ponto relevante, a nosso ver, é saber se atos praticados com desvio de finalidade ou com violação ao princípio da impessoalidade também podem ser admitidos como pertencentes à esfera política.
De todo modo, a partir dessas últimas abordagens, poderíamos considerar, em síntese, que exercer função política em troca de outros atos políticos não constitui corrupção. O conhecido "caso mensalão", por exemplo, teve como pano de fundo a formação de base de apoio político ao governo, mas se apontou que determinados parlamentares, em troca desse apoio, receberam dinheiro (benefício privado), a configurar o injusto penal de corrupção. No entanto, se o agente público solicita vantagem - ainda que política - em troca de exercer sua função em violação de seu dever funcional - violação à legalidade - parece ser possível a configuração do delito de corrupção. Esse desvio funcional é de mais fácil constatação no desempenho de atividades vinculadas, o que não se verifica no contexto das atividades políticas, exercidas com ampla margem de discricionariedade. Por exemplo, há algum dever de impessoalidade na seleção de projetos a serem contemplados para a execução das emendas do relator do orçamento?
Em conclusão, por exigência da legalidade penal, para a legitimidade das decisões judiciais e considerando, ainda, a possível repercussão prática na dinâmica da relação entre os poderes, nos parece relevante levarmos em conta a contribuição da dogmática penal na definição do delito de corrupção para, a partir daí, traçarmos as linhas que separam o campo abrangido pela proibição penal das práticas políticas legítimas, ao menos à luz do artigo 317 do CPB.
1 LEITE, Alaor. TEIXEIRA, Adriano. Financiamento de partidos políticos, caixa dois eleitoral e corrupção. Pág. 141, na obra Crime e Política, organização Alaor Leite e Adriano Teixeira. FGV Editora. 2017.
2 GREEN, Stuart P. What's wrong with bribery, in DEFINING CRIMES: ESSAYS ON THE CRIMINAL LAW'S SPECIAL PART, R.A. Duff & Stuart P. Green, eds., Oxford University Press, 2005. Disponível clicando aqui.
3 GRECO, Luís. TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção, na obra Crime e Política, organização Alaor Leite e Adriano Teixeira. Pág. 29. FGV Editora.
4 Hellman, Deborah. A Theory of Bribery. Cardozo Law Review, Vol. 38, No. 6, August 2017, Virginia Public Law and Legal Theory Research Paper No. 2016-47, Available at SSRN: clique aqui.