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CVM, prescrição e aplicação do princípio da "separação das pretensões"

A autarquia federal não pode deixar de observar o princípio pontiano da separação das pretensões para sustentar a interrupção da fluência de prazo prescricional por força do artigo 2º da lei 9.873/99.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Atualizado às 16:59

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 6.385, de 7 de dezembro de 76 ("Lei do Mercado de Capitais"), deu à Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") o inegável protagonismo no mercado de capitais brasileiro, ao outorgar-lhe a competência para regulamentar o mercado de capitais brasileiro e, principalmente para o que se tratará à continuidade, fiscalizar permanentemente as atividades e serviços de mercado, as pessoas que dele participem e a companhias abertas, conforme seu artigo 8º.

Assim, diversas são as interlocuções da CVM com os agentes e participantes do mercado, bem como com quem presta serviços a esses agentes e participantes, em especial no que diz respeito à fiscalização do cumprimento do complexo regramento normativo do mercado de capitais no Brasil1.

Não por acaso, o art. 9º, V e VI da Lei do Mercado de Capitais prevê que cabe à CVM apurar, mediante processo administrativo, atos ilegais e práticas não equitativas de participantes do mercado e, logicamente, aplicar aos autores de eventuais infrações as penalidades previstas em seu artigo 11, quais sejam: advertência, multa, inabilitação temporária, suspensão de autorização e proibição temporária de atividades e/ou operações determinadas, inclusive de atuar, direta ou indiretamente, em uma ou mais modalidades de operação no mercado de valores mobiliários.

Como não poderia deixar de ser, essa atribuição da CVM (fiscalização e sancionamento) encontra limites2, dentre outros, no que diz respeito à prescrição da pretensão punitiva. Nesse ponto, inegavelmente é aplicável a lei 9.873, de 23 de novembro de 1999, que estabelece prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta.

Assim, é indiscutível que a CVM também terá de observar que o prazo de 5 (cinco) anos, objetivando apurar infração ao seu regramento, para exercer sua ação punitiva. Esse prazo deverá ser contado da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tive cessado a conduta, conforme o art. 1º da lei 9.873/99.

No mercado de capitais, tem-se a participação dos auditores independentes, a quem compete auditar as demonstrações financeiras de capital aberto e das instituições, sociedades ou empresas que integram o sistema de distribuição e intermediação de valores mobiliários, pelos artigos 1º e 26 da Lei do Mercado de Capitais.

Consequentemente, a atividade desenvolvida pelos auditores independentes está sujeita à fiscalização e sancionamento da CVM, também no prazo de 5 (cinco) anos, contado a partir da data da prática do ato. Em se tratando da entrega da opinião anual sobre demonstrações financeiras, por exemplo, o prazo para a pretensão punitiva pela CVM se iniciará com a entrega da opinião do auditor à companhia e se encerrará após o decurso de 5 (cinco) anos.

Considerando as extensas obrigações destinadas aos auditores independentes, não é de surpreender que a CVM, no exercício de sua competência fiscalizatória, venha a identificar descumprimento aos diversos normativos relacionados ao trabalho de asseguração, que se relacionem a momentos distintos à entrega da opinião do auditor independente. Essa situação que pode gerar dúvidas e discussões acerca do termo inicial para contagem da prescrição da pretensão punitiva da CVM quanto a determinado fato ou conduta e, portanto, da ocorrência ou não de prescrição em determinado caso concreto.

De acordo com o art. 2º da lei 9.873/99, a prescrição da ação punitiva é interrompida pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital (inciso I), por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato (inciso II), pela decisão condenatória irrecorrível (inciso III) e por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal (inciso IV).

A notificação ou citação do indiciado (inciso I) e a decisão condenatória recorrível (inciso III) são fatos objetivamente aferíveis, mediante simples consulta aos autos do procedimento fiscalizatório para verificação de sua ocorrência. Por sua vez, a questão da tentativa conciliatória (inciso IV) também pode ser aferida a partir de manifestação expressa do investigado em âmbito administrativo para fins de tentativa de solução conciliatória.

Dessa forma, o cerne da questão da interrupção da prescrição reside na verificação do que seria entendido por "ato inequívoco, que importe apuração do fato", previsto no inciso II do dispositivo. É justamente isso que o presente artigo pretende elucidar: a exata compreensão do "ato inequívoco que importe em apuração do fato".

Em termos conceituais, o ato inequívoco que importe em apuração do fato é justamente o ato jurídico "praticado de modo claro e que se mostra perfeitamente indicativo do desejo efetivo do agente. Não está sujeito à impugnação por ser certo o seu objeto e pela insofismável manifestação de vontade nele expressa. Distinção Pontiana - Ato jurídico/fato jurídico"3.

Isso significa que, para fins de se aferir a ocorrência de "ato inequívoco" por parte da CVM - que ensejaria a interrupção da prescrição da pretensão punitiva -, o primeiro aspecto a ser analisado é o escopo do procedimento administrativo fiscalizatório. Em outras palavras, deve haver relação intrínseca entre aquilo que se investiga - o fato - e a respectiva imputação, como, por exemplo, se pode inferir da aplicação por analogia do artigo 29 da lei 9.874/99.

Dessa forma, se determinado procedimento pretende apurar a infração "A" (por exemplo, eventual descumprimento ao art. 31 da Instrução CVM 308/98 no que tange à rotatividade dos auditores independentes), não se pode admitir que atos da CVM ocorridos naquele procedimento sejam considerados "inequívocos" no que tange à apuração de fatos relacionados à infração B (por exemplo, eventualmente relacionados a papéis de trabalho).

Ou seja, todos os atos da CVM que ocorrerem em determinado procedimento administrativo estão necessariamente adstritos à apuração dessa infração específica e não podem ser entendidos como "inequívocos" para apuração de outras infrações independentes. Portanto, ao analisar os atos inequívocos da CVM, deve-se necessariamente respeitar o âmbito de delimitação da apuração da infração no procedimento em questão.

A referendar esse entendimento, Cassiano Monteoliva Peinado, ao comentar o inciso II do artigo 2º da lei 9.873/99 sob a ótica de decisões do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, expôs que o ato inequívoco, para fins de interrupção da prescrição, deve importar apuração do fato, nos seguintes termos:

O ato inequívoco também tem que importar apuração do fato. Não é qualquer ato que, ainda que seja inequívoco, é apto a interromper a prescrição. O ato tem que visar a apuração do fato, visar a instrução do feito. [...]. O mais importante aqui é que a apuração tem que ser do ato, o que vale dizer que não pode ser uma investigação genérica, tem que ter o foco de apurar dados relativos à infração, tem que ter como objeto 'dados necessários à tomada de decisão'. Portanto, atividades investigativas genéricas, sem foco específico, ainda que venham a resultar em identificação de materialidade e autoria, não serão aptas a interromper a prescrição.4 

O CRSFN adota o entendimento de que os atos, para serem considerados inequívocos, precisam se referir a fatos determinados, que visem apurar fatos específicos e que estejam presentes no respectivo processo administrativo. Destarte, atos com objetos genéricos ou que, apesar de apresentarem objetos específicos, não sejam objeto do processo administrativo em questão, não são considerados aptos a interromper a prescrição.5

No mesmo sentido, a própria Advocacia Geral da União (AGU), no Parecer AGU 991-2009/PGF/PFE-Anatel, de 3 de julho de 20096, reconheceu que, na hipótese de infrações independentes, deve haver aplicação distinta do prazo prescricional:

Dessarte, se após iniciado o Pado, a administração incluir fatos novos que prevejam punições autônomas, não sendo o caso de continuidade e permanência da infração, os prazos prescricionais (quinquenal e intercorrente) serão independentes para cada fato.

Depreende-se, daí, que a prescrição desenrola-se em função do fato e dos atos do processo. Assim, se pendente a prescrição intercorrente para um fato, pretender a administração incluir nova infração no Pado este ato de inclusão não será apto a interromper a prescrição quinquenal e trienal do primeiro ato. Conclui-se, portanto, que os atos praticados no processo para cada infração são independentes.

Como dito, o primeiro aspecto a ser analisado para fins de aferição do ato inequívoco apto a interromper a prescrição é o escopo do procedimento administrativo fiscalizatório: a prescrição apenas é interrompida para infrações que sejam objeto de fiscalização - não se interrompe a prescrição relativa a infrações independentes, cujas imputações não sejam relacionadas.

Isso decorre diretamente do princípio da separação das pretensões, consagrado por Pontes de Miranda7, referendado pela CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM 05/16, nos seguintes termos:

Embora a área técnica possa, no processo de apuração, avançar para temas não previstos na portaria da instauração do inquérito, a contagem do prazo prescricional relacionada a cada conjunto de fatos somente é interrompida por atos inequívocos de apuração daqueles fatos. Nesse sentido, o Colegiado já reconheceu a ocorrência de prescrição quando novos fatos passam a ser apurados depois do prazo prescricional aplicável. Nesse sentido, vale mencionar o voto do Diretor Relator Marcos Pinto no julgamento do PAS CVM 23/05, j. em 2.10.7, e, também, o voto que proferi no julgamento do PAS CVM 05/12, j. em 27.8.19 [...].

A lei 9.873/99 qualifica o ato de apuração que é apto a interromper a prescrição: ele deve, necessariamente, ser inequívoco. Do mesmo modo que não se pode exigir que já no início da fase inquisitória a CVM especifique os autores e normas infringidas pelas condutas que serão apuradas - afinal de contas, busca-se nessa fase justamente coletar elementos de autoria e materialidade - é necessário que haja uma conexão inequívoca entre os fatos que se buscava apurar e outras condutas, sob pena de se alterar o conteúdo do inciso II do artigo 2º da lei 9.873/99. [...].

Não se pode admitir que a instauração de um processo com escopo genérico seja apta a interromper o curso do prazo prescricional de fatos específicos, que não se relacionam diretamente ao objeto inicial da apuração. Qualquer outra interpretação dá espaço para o arbítrio da Administração Pública, estimulando-a, ao menos nas fases iniciais de apuração, a delimitar o objeto da sua análise em termos cada vez mais vagos com o objetivo de preservar, ao máximo, sua pretensão punitiva e subvertendo a regra da prescritibilidade e o princípio da separação das pretensões.

'Princípio da separação das pretensões - A interrupção limita-se à pretensão que está em causa, e não se estende a qualquer outra que se irradie da mesma relação jurídica que é res reducta; nem se opera a respeito de outra pessoa que aquela que pratica o ato interruptivo.'".

Com base nessas premissas, para ocorrer a interrupção da prescrição da pretensão punitiva da CMV por "ato inequívoco" (art. 2º, II da lei 9.873/99), devem ser atendidos dois requisitos, quais sejam: (i) o ato, para ser considerado inequívoco, deve implicar apuração do suposto fato ilícito; e (ii) a prescrição apenas é interrompida para imputações que sejam estritamente relacionadas com os fatos e infrações que estão sob investigação.

Por conseguinte, o conceito de "ato inequívoco que importe em apuração do fato" não pode ser alargado indiscriminadamente - i.e., não se pode admitir que a prática de um ato, independente, isolado e relacionado à uma imputação específica seja suficiente para ser reputado como o "ato inequívoco" objeto do inciso II do artigo 2º da lei 9.873/99, em relação a fatos e imputações diversas.

_______________

1 Nesse ponto, vale lembrar a lição de José Cretella Junior de que diversamente da sanção penal (que atinge a vida, a liberdade, a honra ou os bens do cidadão) a sanção administrativa atinge o quantum de vinculação do agente à função pública, sendo fundamento dessa sanção o interesse do serviço público, sua marcha regular, seu bom funcionamento (CRETELLA JÚNIOR, José. Do ilícito administrativo in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 68, nº 1, jan/1973. São Paulo. 1973. p. 144.

2 "Assim, as garantias constitucionais [...] decorrentes dos princípios do Estado de Direito, protegem o particular que enfrenta o poder punitivo estatal, seja ele exercido por órgãos jurisdicionais, seja ele exercido pela Administração Pública" (MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. pp. 107-108).

3 Enciclopédia Saraiva de Direito, 1987. Apud Tessler, Marga Barth. O Exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo para a aplicação da sanção administrativa depois da lei nº 9.873/99. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 01, out. 2008. Disponível clicando aqui Acesso em: 15 mai. 21.

4 Peinado, Cassiano Monteoliva. O Processo Administrativo no Banco Central do Brasil: a Prescrição. Monografia apresentado ao Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa - como requisito parcial para obtenção de título de especialista em LLM - Master Law - Direito do Mercado Financeiro e de Capital. São Paulo, 2010. p. 75. Disponível clicando aqui Acesso em: 15 mai. 21.

5 Peinado, Cassiano Monteoliva. O Processo Administrativo no Banco Central do Brasil: a Prescrição. Monografia apresentado ao Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa - como requisito parcial para obtenção de título de especialista em LLM - Master Law - Direito do Mercado Financeiro e de Capital. São Paulo, 2010. pp. 97/99. Disponível clicando aqui Acesso em: 15 mai. 21.

6 Disponível clicando aqui. Acesso em: 15 mai. 21.

7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado Tomo 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. pp. 401/402.

Alexandre Paranhos Tacla Abbruzzini

Alexandre Paranhos Tacla Abbruzzini

Advogado. Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Sócio no escritório SIDC - Serpa, Donalisio & Chierighini Advogados, na área de Contencioso Estratégico.

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