A morte digna de Bruno Covas, a ortotanásia e o instrumento das diretivas antecipadas de vontade (também chamado "testamento vital")
Conforme noticiado em alguns sites jornalísticos, há informações de que Bruno Covas havia acordado com a equipe médica que o assistia sobre não querer ser mantido vivo artificialmente.
sexta-feira, 21 de maio de 2021
Atualizado às 11:21
Na manhã do último domingo, dia 16/5/21, faleceu, aos 41 anos, o ex-prefeito de São Paulo, Bruno Covas, em decorrência de complicações provenientes de câncer que iniciou no aparelho digestivo. Apesar de o seu estado de saúde ser constantemente divulgado por ele mesmo e por sua equipe, a notícia de sua morte surpreendeu muitos brasileiros.
Além de Bruno Covas ter permanecido no exercício de suas atividades profissionais e cotidianas o maior tempo possível, se afastando delas e se licenciando do seu cargo na prefeitura apenas no dia 2 deste mês, ou seja, apenas 14 dias antes de sua morte, o que mais chocou foi o curto espaço temporal entre a notícia da irreversibilidade do seu quadro de saúde (de acordo com o boletim médico emitido na data de 14 de maio de 2021, às 19:30, e publicado no mesmo dia em sua conta do instagram) e o seu falecimento, ocorrido menos de 48 horas depois.
Conforme noticiado em alguns sites jornalísticos, há informações de que Bruno Covas havia acordado com a equipe médica que o assistia sobre não querer ser mantido vivo artificialmente. Na hipótese de tal informação ser realmente verídica, é possível concluir que o ex-prefeito de São Paulo pediu aos seus médicos assistentes, portanto, a adoção da ortotanásia.
Se recorrermos à sua etimologia (estudo da origem da palavra), verificamos que o radical "orto" em grego significa justo, correto, exato, enquanto que "thánatos" em grego se refere a morte, concluindo-se, assim, que ortotanásia significaria uma "morte correta".
Apesar de ainda haver grande tabu quanto à tal medida, ela é bastante comum e usualmente adotada por médicos que tratam de pacientes terminais em unidades de terapias intensivas, dando-lhes a oportunidade de viver seus últimos dias, meses ou anos com maior conforto físico e emocional, cercado de familiares e amigos, dispensando-os de tratamentos agressivos e de pouca ou nenhuma efetividade diante da irreversibilidade de seus quadros.
Dessa forma, a ortotanásia consiste no não prolongamento do processo da morte, que não pode mais ser evitada, deixando que ela aconteça naturalmente, adotando-se, entretanto, todos os meios possíveis de alívio de desconforto e dor do paciente, como foi o caso de Covas, que recebeu sedativos em suas últimas horas de vida.
Mas como se dá a regulamentação dessa prática no direito brasileiro?
O Conselho Federal de Medicina, considerando o teor do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que traz o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, considerando também que o art. 5º, III, da Constituição Federal determina que ninguém deve ser submetido a tortura nem tratamento desumano ou degradante e, considerando, por fim, que incumbe ao médico diagnosticar o doente como portador de enfermidade em fase terminal, cabendo sempre ao médico zelar pelo bem estar do paciente, trouxe na Resolução CFM 1.805/06¹, de forma bem clara, a possibilidade de adoção de ortotanásia pelos médicos brasileiros. Vejamos:
Art. 1º. É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
(...)
Art. 2º. O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Diante do teor acima transcrito de parte da resolução do Conselho Federal de Medicina, percebe-se que a possibilidade de limitação e suspensão de tratamentos desproporcionais, ou seja, que tragam maior desgaste ao paciente do que benefícios a ela, que já se encontre em estado terminal e com enfermidade declaradamente incurável, tem o fim precípuo de assegurar o direito de uma morte abreviada, sem a imposição de sofrimentos muitas vezes desnecessários.
Por outro lado, é fundamental salientar que, como já dito - e conforme fora adotado no caso de Bruno Covas - todas as medidas úteis para redução de dores do paciente são utilizadas. Assim, ressalve-se aqui que a não manutenção artificial da vida se diferencia por completo da falta de assistência ou de cuidados paliativos de minimização de sofrimento do paciente terminal. Morrer de maneira digna e natural não significa, de jeito algum, morrer "à míngua".
Pelo que fora noticiado, supõe-se que, por estar ciente e capaz de responder por seus atos até seus últimos dias, a decisão do político provavelmente foi comunicada verbalmente por ele mesmo à equipe que o tratava. Ocorre que, em muitos casos, o agravamento da doença se dá de forma que impede a manifestação consciente do paciente sobre suas vontades.
E é justamente nesse contexto que é importante trazer para debate o instrumento das Diretivas Antecipadas de Vontade ou Testamento Vital.
Muito embora possam também receber o nome de "testamento", as Diretivas Antecipadas de Vontade não se confundem com o documento comumente usado para disciplinar as vontades de uma pessoa após a morte que são os testamentos públicos ou particulares com disposições, principalmente, sobre a destinação dos bens. Isso porque no Testamento Vital ou na Diretiva Antecipada de Vontade são expostos anseios de alguém a serem cumpridos antes da sua morte sobre interferências na sua saúde.
Dessa forma, disposições de vontade a serem cumpridas antes da morte não devem ser dispostas em testamento público ou particular porque, no direito sucessório, esse documento só terá validade após o falecimento. Isto é, as disposições não serão úteis para o fim a que se propõem.
No Brasil, ainda não há legislação sobre o assunto, mas o instrumento vem ganhando cada vez mais espaço e o Enunciado n. 528 da Jornada de Direito Civil sinaliza o aceite do instrumento pela comunidade jurídica:
É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado "testamento vital", em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.
Além disso, há Resolução do Conselho Federal de Medicina que levanta a necessidade de disciplinar a conduta do médico em situações que envolvam terminalidade da vida, a relevância da autonomia da vontade do paciente, bem como a existência de recursos tecnológicos que permitem prolongar a vida do paciente em estado terminal, mas que, por vezes, trazem mais sofrimento do que benefícios a eles, podendo, assim, tais medidas, serem antecipadamente rejeitadas.
A Resolução 1.995/12² do CFM define as Diretivas Antecipadas de Vontade da seguinte forma:
Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Assim, nas decisões sobre os cuidados e tratamentos em pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se ou de expressar de forma livre a sua vontade, o médico levará em conta as Diretivas Antecipadas de Vontade (Testamento Vital) e elas prevalecerão, até mesmo, sobre os desejos dos familiares.
Podem ser levadas em consideração, também, informações de um representante que o paciente tenha designado para este fim.
Ponto importante da Resolução 1.995/2012 do CFM a ser levado em conta é que as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) comunicadas diretamente ao médico pelo paciente deverão ser registradas no prontuário - como parece ter ocorrido no caso de Bruno Covas - e, seja de que forma forem apresentadas, não prevalecerão se estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica.
Não há uma uniformização sobre como deve ser formalizado o Testamento Vital, mas é preciso levar em conta que ele trará disposições a respeito das interferências na integridade física e na saúde do Testador/Declarante e que pode definir, em certa medida, o prolongamento da sua vida ou não. Assim, via de regra, é recomendado que as Diretivas de Últimas Vontades estejam dispostas e formalizadas em Escritura Pública Declaratória. Ademais, recomenda-se que haja auxílio de um médico na sua elaboração para orientação quanto a termos técnicos, desde que o profissional não emita opinião sobre as escolhas do declarante.
Dessa forma, em que pese o desconforto que o tema possa causar aos entes queridos quando o paciente o traz à tona, é sempre importante lembrar que o cumprimento de suas vontades mais íntimas é um direito que lhe assiste e que inegavelmente tornará o processo da morte menos traumática e sofrida.
Assim, conclui-se que, em respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, deve-se proteger não apenas o direito à vida como direito personalíssimo, mas, também, o direito à morte de forma digna como direito de valor supremo e irrenunciável.
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Idalina Cecília Fonseca da Cunha
Advogada especialista em Direito Médico e da Saúde, sócia do Costa Mendonça, Brito & Cunha Sociedade de Advogadas, mestre em direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora universitária.