Reequilíbrio contratual: As novas regras da ANTT
As disposições constitucionais e legais aplicáveis aos contratos administrativos asseguram a intangibilidade da equação econômico-financeira da contratação.
sexta-feira, 21 de maio de 2021
Atualizado às 08:17
1. Introdução
Em 185/21, a diretoria da ANTT editou Resolução (de 5.940) que altera as regras para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de rodovias e estabelece novos procedimentos para o aperfeiçoamento de mecanismos de governança.
O ato normativo destina-se a disciplinar o reequilíbrio contratual em caso de inclusão ou alteração de novas obras e serviços, com vistas a facilitar a realização de investimentos e mitigar possíveis discussões quanto ao momento de implementação da recomposição devida.
A solução adotada confere maior margem de previsibilidade aos concessionários, contribuindo para a ampliação de investimentos, ainda que não represente uma ruptura absoluta em relação à sistemática que vinha sendo empregada anteriormente.
2. O direito à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos
As disposições constitucionais e legais aplicáveis aos contratos administrativos (CF, art. 37, XXI; lei 14.133/21, arts. 104, §§ 1º e 2º, 124, II, "d" e 130; e lei 8.987/97, art. 9º, §§ 3º e 4º, dentre outras) asseguram a intangibilidade da equação econômico-financeira da contratação. Significa que o particular tem direito a uma remuneração sempre compatível com o conjunto de encargos e vantagens consagrado por ocasião do aceite de sua proposta e da consequente assinatura do respectivo contrato.
Evidentemente, em se tratando de contratos de longo prazo (como os contratos de concessão), é natural que haja a necessidade de realização de investimentos ou atividades não previstos - tanto para melhor atender aos interesses coletivos envolvidos como para contemplar necessidades que surgem com o passar do tempo, no curso da execução contratual.
No entanto, uma vez verificado o rompimento do equilíbrio originalmente estabelecido, o particular contratado tem o direito de exigir a sua integral recomposição. Cabe à Administração Pública o dever de ampliar as vantagens previstas, proporcionalmente à majoração dos encargos, de modo a garantir a manutenção dos parâmetros econômico-financeiros (ônus e bônus) pactuados entre as partes.
O art. 130 da lei 14.133/21 estabelece que, em caso de aumento ou diminuição dos encargos do particular contratado, "a Administração deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial". Ou seja, a alteração promovida deve ser acompanhada das providências necessárias à recomposição da equação contratual, a fim de formalizá-las no aditivo a ser assinado.
Nesse mesmo sentido, a lei 8.987/95 prevê que, "havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração" (§ 4º do art. 9º).
2. O tratamento do reequilíbrio contratual pela ANTT
Não bastassem as disposições legais e contratuais, a ANTT tem exercido suas competências regulatórias com o objetivo de estabelecer regras e procedimentos a serem observados no que diz respeito ao reequilíbrio econômico-financeiros dos contratos submetidos à sua esfera de atribuições.
2.1. As regras da ANTT sobre reequilíbrio contratual
O regramento anteriormente vigente previa que a recomposição do equilíbrio contratual decorrente da inclusão de novas obras ou serviços somente poderia se dar após a conclusão de tais atividades. Isto é: cabia ao particular contratado assumir de imediato tais encargos, que não haviam sido previstos no Programa de Exploração de Rodovia, para, somente após a revisão ordinária subsequente, ser devidamente remunerado por sua execução.
A propósito, confira-se o parágrafo único do art. 2º da Resolução 3.651/11 (com a redação que lhe foi dada pela Resolução 5.859/19):
Parágrafo único. A recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, relativa à inclusão de obras e serviços no âmbito de revisão extraordinária, inclusive os custos relacionados, somente poderá ser realizada na revisão ordinária subsequente à conclusão da obra ou serviço (sem grifos no original).
Tal sistemática foi severamente criticada pelos concessionários ao longo dos últimos anos.
O regramento estabelecido pela ANTT não só desconsiderava o dever legal de concomitante recomposição da equação contratual (nos termos do art. 9º, § 4º da lei 8.987/95), como também dificultava a realização de investimentos, na medida em que o reequilíbrio a posteriori prejudicava a captação de recursos e impedia que as obras e serviços fossem custeados com os valores a serem pagos em decorrência dos novos encargos assumidos pelo contratado (com o incremento do valor das tarifas, por exemplo). Some-se a isso a situação de incerteza e insegurança suportada gerada por possíveis divergências relacionadas à quantificação do desequilíbrio a ser futuramente recomposto.
Em última análise: o particular contratado ficava incumbido de financiar os investimentos com recursos próprios, vindo a ser remunerado por eles (mediante o reequilíbrio econômico-financeiro da outorga) somente após a conclusão das respectivas obras e serviços.
As potenciais dificuldades desse cenário são ainda mais evidentes no âmbito dos contratos de concessão, que envolvem investimentos de grande magnitude econômica.
2.2. O entendimento manifestado pelo TCU acerca da matéria
A questão chegou a ser enfrentada pelo TCU ainda em 2020, no âmbito da Representação de 026.406/2020-09.
Naquele caso, a ANTT e o concessionário apontaram dificuldades quanto à financiabilidade das novas obras que se faziam necessárias. Destacaram que a ampliação dos custos e das necessidades de investimento repercutiria de forma significativa nos riscos da concessão e no prazo inicialmente considerado para fins de retorno do capital, prejudicando os índices financeiros mínimos aceitos pelo mercado - circunstância esta que apenas poderia ser afastada mediante a criação de um reflexo imediato no faturamento (i.e., pela revisão tarifária imediata). Além disso, a Agência indicou que o pronto reequilíbrio, antes mesmo da execução das obras, seria mais vantajoso à Administração porque contemplaria um desconto pactuado com o concessionário.
O TCU embasou-se nos termos das Resoluções 3.651/11 e 5.859/19 da ANTT para afastar a possibilidade de "recomposição do equilíbrio do valor dos investimentos e custos operacionais de forma integral na tarifa", previamente à realização das obras ou serviços (Acórdão 2.957/2020-Plenário). Nos termos do voto do Relator, Ministro Raimundo Carreiro:
Ocorre que, mesmo se reconhecendo o grau de discricionariedade maior dos acordos bilaterais, não se pode afastar do administrador público sua obrigação de observar o que dispõe a lei e seus regulamentos, sob pena de, numa ginástica hermenêutica, serem considerados legítimos os atos administrativos praticados ao arrepio das normas.
(...) no caso em concreto, a discricionariedade do gestor se torna limitada, diante da existência de norma elaborada pela própria agência reguladora que impõe: "A recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, relativa à inclusão de obras e serviços no âmbito de revisão extraordinária, inclusive os custos relacionados, somente poderá ser realizada na revisão ordinária subsequente à conclusão da obra ou serviço.
Em contrapartida, admitiu-se o escalonamento dos incrementos tarifários, proporcionalmente ao avanço do cronograma físico-financeiro das obras.
2.3. A Resolução 5.940/21: modificação das regras para a recomposição da equação econômico-financeira dos contratos
Ao que se infere, a Resolução 5.940/21 pretendeu aperfeiçoar o regramento normativo até então existente. Ao invés de uma solução padronizada (que condiciona, em todo e qualquer caso, o reequilíbrio contratual à conclusão das obras e serviços), buscou-se o estabelecimento de diferentes mecanismos de recomposição, mediante a definição de hipóteses que consideram a magnitude dos investimentos e o histórico de desempenho do concessionário.
Por meio de suas disposições, o art. 2º da Resolução 3.651/11 foi alterado para contemplar as seguintes hipóteses:
Art. 2º (...)
§ 1º O impacto decorrente da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, relativo à inclusão ou alteração de obras e serviços, inclusive os custos relacionados, deverá ser considerado na revisão subsequente à conclusão da obra ou serviço, ressalvadas as hipóteses previstas nos parágrafos subsequentes.
§ 2º Quando o valor nominal das obras e serviços a serem incluídos ou alterados ultrapassar, em seu conjunto, R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), o impacto econômico-financeiro da recomposição do equilíbrio ocorrerá de forma escalonada e gradativa, após a conclusão de cada fase.
§ 3º A ANTT poderá implementar parte do total do impacto econômico-financeiro da recomposição do equilíbrio antes do início da primeira fase do cronograma anual simplificado das obras e serviços acordado entre as partes, na seguinte forma:
I - Quando o valor nominal das obras e serviços a serem incluídos ou alterados for, em seu conjunto, de até R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais) ou representar de 10% (dez por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento anual: 30% (trinta por cento) do total do impacto antes do início da primeira fase e o restante gradativamente após a conclusão de cada fase;
II - quando o valor nominal das obras e serviços a serem incluídos ou alterados for, em seu conjunto, entre R$ 30.000.000,01 (trinta milhões de reais e um centavo) e R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) ou representar de 20% (vinte por cento) a 30% (trinta por cento) do faturamento anual: 50% (cinquenta por cento) do total do impacto antes do início da primeira fase e o restante gradativamente após a conclusão de cada fase; e
III - quando o valor nominal das obras e serviços a serem incluídos ou alterados for, em seu conjunto, acima de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) ou representar mais de 30% (trinta por cento) do faturamento anual: 85% (oitenta e cinco por cento) do total do impacto antes do início da primeira fase e o restante gradativamente após a conclusão de cada fase.
§ 4º O concessionário deverá apresentar índice de execução acumulada de obras obrigatórias previstas no contrato de concessão, na forma do Anexo I a esta Resolução, superior a 80% (oitenta por cento), para que o impacto econômico-financeiro da recomposição do equilíbrio possa ser autorizado na forma do inciso III do § 3º, e, não atingido este percentual, será aplicada a regra prevista no inciso II do § 3º.
§ 5º Caso a revisão adote uma das metodologias de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro previstas no § 3º, o termo aditivo que formalizar a revisão deverá prever, além do desconto de reequilíbrio, pelo menos uma das seguintes salvaguardas de incentivo à execução do contrato, sem prejuízo de outros mecanismos previstos em contrato:
I - Redução tarifária ou multa moratória; e
II - Renúncia ao prazo para correção de falhas e transgressões, previsto no § 3º do art. 38 da lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
Como se verifica a partir do § 3º, passou-se a admitir a parcial recomposição da equação econômico-financeira previamente à realização das obras e serviços, a depender do seu valor nominal ou representatividade em relação ao faturamento anual da concessão. Isso permite que uma parcela dos impactos (30%, 50% ou 85%) seja compensada antes mesmo do início da primeira fase das atividades e o restante deles de forma gradativa, mediante a evolução de cada etapa.
No entanto, a "antecipação" do reequilíbrio em seu percentual máximo (de 85% do total do impacto) apenas será admitida nos casos em que o concessionário demonstrar ter executado a grande maioria (pelo menos 80%) das obras obrigatórias originalmente previstas no contrato. Caso contrário, a recomposição imediata estará limitada a 50% do valor do impacto a ser suportado pelo concessionário em decorrência da realização de novas obras e serviços.
Além disso, o § 4º demonstra a preocupação da ANTT em incentivar a conclusão das atividades. Estabeleceu-se que o aditivo contratual que tratar da inclusão ou alteração dos investimentos, adotando a metodologia que permite o imediato reequilíbrio, deverá não só contemplar um desconto no valor a ser recomposto, mas também prever eventual redução tarifária ou multa moratória ou ainda formalizar a renúncia do particular contratado quanto ao prazo para correção de falhas e transgressões (previsto no § 3º do art. 38 da lei 8.987/95).
Em síntese, a Resolução 5.940/21 permite que o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de rodovias se dê antes mesmo da conclusão das obras e serviços não previstos, desde que: (i) os investimentos tenham determinada magnitude ou impacto sobre o faturamento; (ii) o particular tenha adimplido substancial parcela das obrigações contratualmente assumidas; e (iii) concorde em conceder um desconto à Administração e a reduzir tarifas ou pagar multas caso não conclua as atividades ou ainda assuma o compromisso de renunciar ao prazo de cura que lhe é concedido pela lei 8.987/95.
Não se pode negar que o referido ato normativo representa uma evolução em relação ao regramento anteriormente existente, que transferia ao particular a integralidade dos ônus pela execução dos novos investimentos sem lhe conferir a devida contrapartida - por vezes necessária para a própria execução das atividades -, postergando a recomposição da equação contratual para a revisão subsequente à conclusão da obra ou serviço.
A despeito disso, e sem prejuízo da louvável intenção manifestada por ocasião da sua edição, os aprimoramentos promovidos pela Resolução 5.940/21 podem não ser suficientes para assegurar a intangibilidade da equação econômico-financeira dos contratos.
Os particulares contratados pela Administração Pública têm o direito à manutenção das "condições efetivas da proposta" (CF, art. 37, XXI) e à recomposição do equilíbrio contratual "concomitantemente à alteração" (§ 4º do art. 9º da lei 8.987/95).
Embora tal sistemática venha sendo reiteradamente adotada nas concessões de rodovias federais, não há embasamento constitucional ou legal para a postergação do reequilíbrio ou para a sua implementação de forma parcial. Tampouco há justificativa para que se pretenda condicioná-lo ao cumprimento de obrigações contratuais anteriores. O eventual inadimplemento, deveria ensejar a instauração de regular processo administrativo (com a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa) e, se for o caso, a responsabilização do particular (nos termos da lei e do contrato) - mas jamais poderia servir de fundamento para o afastamento do reequilíbrio devido.
Também não parece razoável exigir que o contratado tenha de anuir com o "desconto de reequilíbrio" (previsto no § 5º da Resolução 5.940/21). As partes inegavelmente possuem certa autonomia para negociar questões atinentes à recomposição da equação econômico-financeira (Lei 14.133, art. 124, II), o que não significa que a Administração pode impor ao particular a concordância com eventual desconto.
Por fim, a renúncia à oportunidade de cura (§ 3º do art. 38 da lei 8.987/95), mesmo se limitada às obrigações específicas em questão, também pode ser um remédio inadequado para a finalidade buscada. A cura é um mecanismo de preservação da concessão para evitar sua extinção quando providência menos drástica for viável - muito em linha com as diretrizes da LINDB (v.g. arts. 20 e 21). O inc. II do § 5º prevê a sua supressão para mitigar o risco de o concessionário descumprir os novos compromissos de investimento por ele assumidos. Porém, tal alternativa pode revelar-se desproporcional e gerar impasses de difícil solução concreta.
Sem prejuízo dos avanços promovidos pela Resolução 5.940/21, da ANTT, há que se considerar que o regramento normativo aplicável à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão ainda comporta aprimoramentos.
É necessário buscar soluções que assegurem a consecução dos interesses coletivos e garantam a realização dos investimentos necessários, sem descuidar do direito do particular contratado de ver mantida a equação econômico-financeira nos exatos termos em que originalmente pactuada.
Mônica Bandeira de Mello Lefèvre
Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini