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Lei 14.151/21 como panaceia para as relações de emprego de trabalhadoras gestantes e o fomento à insegurança jurídica

O Congresso Nacional, cuja função constitucional essencial é legislar, de modo a fornecer meios para a boa convivência em sociedade, ao longo dos anos da jovem república brasileira, vem vacilando no seu mister com a edição de leis que pouca segurança jurídica propiciam.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Atualizado em 19 de maio de 2021 09:06

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não é de hoje que o mundo jurídico brasileiro é surpreendido com legislações de pobre idealização que, forjadas sob a falsa ideia de regulação assertiva, acabam por gerar efeitos nefastos nas relações jurídicas públicas e privadas.

O Congresso Nacional, cuja função constitucional essencial é legislar, de modo a fornecer meios para a boa convivência em sociedade, ao longo dos anos da jovem república brasileira, vem vacilando no seu mister com a edição de leis que pouca segurança jurídica propiciam. Apesar de ser incontroverso que as leis sempre se mostram retardatárias em relação ao contexto social no qual se inserem e para o qual são criadas, não custava o Poder Legislativo se esforçar, no afã de, pelo menos, tentar entregar aos cidadãos maior segurança jurídica e o mínimo de previsibilidade. 

Pois bem, trazendo a discussão para a seara trabalhista, não é pouca a ineficiência legislativa quanto à matéria. O Congresso Nacional insiste em produzir textos normativos que atrapalham a vida de empregados e empregadores ou, quando não, entregam reduzida clareza e parca efetividade às relações de trabalho. E essa ineficiência atinge o Poder Executivo quando do exercício da sua prerrogativa de legislar em situações de emergência, ou seja, através de medidas provisórias, bem como no seu poder constitucional de vetar projetos de lei já aprovados pelo Legislativo que não são de interesse público ou que apresentam vícios de inconstitucionalidade.

Ao caminhar pela história legislativa recente, percebe-se que o discurso ora apresentado não se trata de mera retórica.

Para não ficar enfadonho e adentrar no tema central de abordagem destas breves reflexões, em 11/11/17 o Congresso Nacional aprovou a conhecida Reforma Trabalhista que implementou mudanças sensíveis na então senhora Consolidação das leis do Trabalho - CLT. A Medida Provisória 808/17 restou publicada em 14/11/17, ou seja, três dias depois da profunda reforma operada pela novel legislação publicada, já trazendo diversas alterações à lei 13.467/17, mudanças estas que passaram a impactar as relações de trabalho de imediato. Contudo, decorrido prazo previsto legalmente, a referida medida sequer foi submetida ao Congresso para aprovação, perdendo sua validade a partir de 23/11/18. Um limbo de situações jurídicas mal resolvidas se formou, deixando à mingua empregados e empregadores que, bom ou ruim, organizaram seus direitos e obrigações com base na norma então em vigência, mas não convalidada.

Avançando na linha do tempo, chega a pandemia gerada pela covid-19, fenômeno social inesperado e nunca antes experimentado, cuja consequência resultou, dentre outros fatores, em isolamento social como mecanismo de preservação de vidas. O universo das relações de trabalho, mais uma vez, restou diretamente afetado. Poder Legislativo e Executivo se apressaram em tentar fornecer meios legais para regular situações excepcionais e o fazem sem escutar, com ouvidos de quem quer ouvir, àqueles diretamente atingidos, quais sejam, empregados e empregadores.

Ainda como exemplo introdutório, o Governo Federal editou a MP 927/20 que veio em socorro a preservação mínima de emprego e das empresas, contudo, o Poder Legislativo preferiu não converter o texto em lei. Novamente, as relações de trabalho ficaram desassistidas de regulação jurídica, deixando um vácuo de direitos e obrigações. Quando parece que os Poderes em comento acertaram os ponteiros, com a edição da MP 936/20 e sua posterior conversão na lei  14.020/20, a ineficiência dos congressistas gera uma legislação de emergência que, a despeito dos acertos, promove, em diversos aspectos, novo vazio normativo para as mais diversas realidades laborativas. Aliás, antes mesmo da conversão da medida provisória em lei, o Governo Federal, por intermédio da Secretaria Especial de Trabalho e Emprego, órgão vinculado ao Ministério da Economia, edita a Portaria 10.486, de 22 de Abril de 2020, que foi além do seu escopo, pois não só regulamentou o ato legislativo emergencial, mas também criou novas regras jurídicas por via obliqua.

Com efeito, não se está aqui a descortinar um cenário incorrigível de maledicências e de caos legislativo, pelo contrário, a análise é crítica por natureza, com a frieza de quem integra a advocacia e que se desdobrou para contribuir com soluções jurídicas minimamente seguras para os atores da relação de trabalho desde a início da pandemia.

Dito isso, o mais novo "frankstein" normativo é a lei 14.151/21 que reza:

"Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.

Parágrafo único. A empregada afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância".

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação".

Este seu único e deficitário artigo de conteúdo cogente, o qual veda, peremptoriamente, o trabalho presencial de empregadas celetistas gestantes, deixa como única opção, sobretudo para o empregador, a migração dessas trabalhadoras para o sistema remoto e/ou de homeoffice.

Frise-se, desde já, que não se pretende nesta linha de raciocínio em desenvolvimento negar a opção do legislador constitucional originário de proteger a vida do nascituro e às mulheres gestantes.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil deu um passo essencial no avanço à efetividade dos direitos sociais. Nesse particular, a gestante recebeu proteção especial - estabilidade provisória no emprego - por meio do artigo 10, II, b, do ADCT de 1988, o que antes não existia no plano constitucional. Apenas a CLT em seu artigo 391 preconizava a impossibilidade de dispensa em função da gravidez. Mas não foi só. A Constituição da República foi além e, em seu art. 6º, instituiu a proteção à maternidade como sendo uma cláusula pétrea, impondo ao Estado o dever de realizar medidas de proteção não apenas endereçadas à gestante, mas, igualmente, ao nascituro que deve ser tão protegido quanto a própria gestante. Quer dizer, não se nega a necessária fixação desta indispensável baliza constitucional.

Todavia, não se pode olvidar, que a Constituição Federal carrega em seu bojo um plexo de direitos e garantias intangíveis, sensíveis por essência, todas por demais importantes e com densa carga principiológica, mas que se chocam diametralmente a todo tempo, o que exige atenção redobrada do poder legiferante.

E, para dirimir colisão de princípios, mister invocar a lição de ALEXY, cuja doutrina é explicitada pelo saudoso PAULO BONAVIDES:

"Afirma Alexy: 'Um conflito entre regras somente pode ser resolvido se uma cláusula de exceção, que remova o conflito, for introduzida numa regra ou pelo menos se uma das regras for declarada nula (ungültig). Juridicamente, segundo ele, uma norma vale ou não vale, e quando vale, e é aplicável a um caso, isto significa que suas consequências jurídicas também valem.

Com a colisão de princípios, tudo se passa de modo inteiramente distinto, conforme adverte Alexy. A colisão ocorre, p. ex., se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve recuar. Isto, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza.

(...)

Teoriza Alexy na mesma direção da jurisprudência dos valores, e aqui a inteira contemporaneidade, bem como a importância vanguardeira de seu pensamento jurídico tocante ao valor normativo dos princípios."¹

Incutido o escólio transcrito no tema em abordagem, denota-se que o Poder Legislativo editou uma novel norma que não se sustenta por diversos motivos, seja por atecnia legislativa, seja por aparente vicio de inconstitucionalidade, seja pelos seus inoportunos efeitos práticos em momento tão delicado da vida social e da economia nacional, quando impossibilita o desenvolvimento de trabalho presencial de empregadas gestantes.

Ora, o trabalho, ainda que em sua mais restrita dimensão, consubstancia-se em propulsor de interação social e de concretização de direitos insertos na Constituição Federal, como o da dignidade da pessoa humana, destacando-se como valor social, ex-vi art. 1º, incisos III e IV da CF/88 que erigiu ditos postulados como fundamentos da República Brasileira.

Nesse jaez, penso que afastar as empregadas gestantes do ambiente de trabalho, de forma taxativa e sem qualquer possibilidade de relativização, de adequação as realidades contratuais País afora, mostra-se uma medida drástica que se distancia de outros tantos princípios e garantias constitucionais.

A luta que antes era apenas das mulheres em busca de melhorias e de maior inserção no mercado de trabalho, tornou-se uma bandeira de toda a sociedade, independente de gênero, cor, raça e etnia. Nesse sentido, a nova legislação, em que pese opiniões em contrário, aumenta esse hiato social, sobretudo porque não fixa um limite temporal objetivo para a situação excepcional criada e ainda transfere para o empregador o ônus remuneratório, tanto por consolidar situações em que não haverá contraprestação alguma do empregado, quanto pela impossibilidade de perda salarial do trabalhador.

Ora, quando a pandemia e a situação emergência de saúde publica se encerra? Será a vacinação em massa a efetiva forma de refrear dito estado periclitante? São perguntas sem respostas concretas, as quais dependem de um exercício de futurologia com misto de adivinhação e premonição sem igual! E a lei em comento nada regula de concreto neste particular.

Como se não bastasse, despindo-se um pouco do aspecto teórico da discussão para adentrar no prisma pragmático, num País devastado economicamente pela pandemia, no qual empregadores lutam para manter as suas empresas e os postos de emprego, é certo que haverá exclusão feminina do mercado de trabalho por indefinido tempo em que perdurar a pandemia.

Como dignificar a pessoa humana através do trabalho com uma legislação que interfere na autonomia privada de vontade das trabalhadoras e não dão elas e aos seus atuais, futuros e potenciáveis empregadores, chance alguma, salvo trabalho remoto, de manter acesa a chama do sustento delas e de seus familiares? Porque uma trabalhadora já vacinada, por exemplo, que está gravida ou que possa vir a engravidar não pode optar por trabalhar? Porque não conferir, ainda que retirada a individualidade da decisão do trabalhador, aos sindicatos profissionais o poder de, ouvida a classe obreira que representa, negociar com o ente patronal ou mesmo com as empresas diretamente por meio de instrumentos coletivos? 

Não se pode esquecer que são inúmeros postos de emprego incompatíveis com o trabalho remoto. Os setores de serviços, comércio e indústria, principalmente, os quais mais recepcionam o mercado feminino de labor, possuem incontáveis práticas empresariais incompatíveis com o trabalho remoto. O que fazer com empregadores que possuem seu quadro funcional repleto de trabalhadoras, como a indústria calçadista e o mercado de estética?

Mas não são só essas as indagações que a mal redigida lei não consegue alcançar. Como ficam esses empregadores que terão que arcar do próprio bolso o afastamento da gestante e contratar outro(a) trabalhador(a) para ocupar o posto de emprego vazio? Qual a repercussão contratual, acaso a pandemia perdure para após o período de estabilidade dessas mulheres? Será que os empregadores vão manter ativos esses contratos? E as novas vagas que surgirem, serão mulheres a preenchê-las? 

Notadamente, o buraco gerado pela legislação é mais profundo do que se imagina!

Lado outro, retomada a discussão constitucional, existem mais três aspectos relevantes a considerar.

O primeiro é o direito à igualdade, trazido no rol de direitos fundamentais do art. 5º, II da CF/88. Se a Carta Magna confere proteção especial ao idoso, por exemplo, entendido àquele maior de 60 anos, garantindo-lhe direito a vida, na forma exposta no art. 230 da CF/88, porque esse grupo de trabalhadores deve permanecer trabalhando, inclusive, em atividades de risco? A Constituição Federal não sopesa o direito à vida do nascituro em detrimento do idoso. Será que as trabalhadoras profissionais de saúde, efetivas soldadas na guerra contra o vírus, com destacado papel social que transcende a crueza do trabalho por ser trabalho, mas que queiram laborar, insista-se, dentro da sua autonomia privada de vontade, não o podem fazê-lo?

O segundo é a função social da empresa. Dispõe o caput do art. 170 da CF/88 que a ordem econômica está "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa" e "tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social". Como predicados dessa norma estão a propriedade privada, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego.

A norma em xeque, juntamente com aquelas trazidas nos arts. 1º e 3º da CF/88, marcam o passo do papel social da empresa. Será que a redução das desigualdades sociais e regionais estarão garantidas com a nova regra legal, permitindo o pleno emprego às trabalhadoras? E o direito de propriedade das empresas está assegurado ao custear, sem qualquer contrapartida estatal, a remuneração de empregadas que não poderão executar suas tarefas presencialmente, em postos de emprego incompatíveis com o trabalho remoto? E como fica o pagamento da remuneração daquelas empregadas que recebem salário condição - insalubridade, periculosidade, etc -, quer dizer, vai ter o empregador que mantê-las afastadas, sem afetação alguma da remuneração?

Aliás, os sempre professores RAPHAEL MIZIARA e FABIANO ZAVANELLA, em recente artigo publicado no sítio eletrônico da Conjur na rede mundial de computadores, advertiram que²:

"Em segundo lugar, o artigo 4°, item 8, da Convenção 103 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada ao ordenamento jurídico interno por meio do Decreto 58.820, de 14.7.66, prevê que "em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega". Vale lembrar que as convenções da OIT, por se consubstanciarem em tratados de direitos humanos, possuem status normativo supralegal. (RE 466343, relator(a): Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 3/12/08, Repercussão Geral, publicação 5/6/09)"

O terceiro e o último direito vilipendiado, s.m.j, é o da proteção estatal através da cobertura previdenciária obrigatória. O empregador já custeia encargos fiscais e previdenciários aos montes e porque deve ele arcar com tudo sozinho sem nenhuma contrapartida estatal, se valendo das disposições contidas na lei. 8.213/91? O art. 201, II da CF/88 reza que deve haver proteção especial à maternidade e, por consequência, à gestante, mas não o transfere para custeio exclusivo do empregador. O dever é predominantemente do Estado!

Enfim, tal inoperância legislativa estimula o ativismo judicial e, mais cedo ou mais tarde, o C. STF será instado a se manifestar sobre a lei 14.151/21, a qual se apresenta falha nos mais diversos aspectos, pouco producente e, certamente, desencadeará efeitos inconciliáveis nas relações jurídicas que travam empregados e empregadores. Como se viu, são muitas as perguntas sem respostas!

Só resta aos players da relação de emprego bem com àqueles que atuam com o direito do trabalho, essencialmente à advocacia, esforçar-se para tentar minimizar os danos, para encontrar soluções sofisticadas e criativas aptas a dirimir conflitos que, por si só, já são complexos, potencializados pelo ambiente social pandêmico enfrentado, tudo para, dentro do possível, se aproximar da utopia tupiniquim de gozar de segurança jurídica.

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1. Curso de Direito Constitucional. 17. ed., Malheiros. p. 279-280

2. Disponível aqui. Acesso em 14/5/21.

Daniel Sebadelhe Aranha

Daniel Sebadelhe Aranha

Sócio do Sebadelhe Aranha & Vasconcelos Advocacia, Presidente da AATRAPB e Diretor do CESAPB.

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