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A quem interessa atacar o Supremo?

É necessário que todos fiquemos atentos e combatamos pressões indevidas ao Poder Judiciário.

sábado, 15 de maio de 2021

Atualizado às 15:15

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Instada a se manifestar a respeito do pleito da autoridade policial de investigação de Ministro da Suprema Corte, com base exclusivamente em delação premiada de ouvir dizer, a Procuradoria-Geral da República pugnou pelo indeferimento integral dos requerimentos formulados por Delegado de Polícia Federal, o que foi prontamente acolhido pelo Relator do feito, o Min. Edson Fachin.

Na oportunidade, com a altivez que lhe é inerente, o Procurador-Geral da República esclareceu a ausência de legitimidade da autoridade policial para se dirigir ao STF, em claro desrespeito às disposições constitucionais e ao devido processo legal. Consignou-se, ainda, a inidoneidade das declarações prestadas pelo delator e requereu o indeferimento dos ilegais pleitos policiais.

Ato conseguinte, o Ministro Fachin indeferiu as formulações da autoridade policial, recordando que é atribuição constitucional do Procurador-Geral da República a titularidade exclusiva da opinio delicti a ser apresentada perante o Supremo Tribunal Federal, além de ter expressamente determinado que a autoridade policial se abstenha de tomar qualquer providência ou promover qualquer diligência direta ou indiretamente inserida ou em conexão ao âmbito da colaboração premiada.

Sem adentrar, neste momento, na discussão acerca da legalidade ou não de acordo de colaboração premiada formulado apenas com a autoridade policial, sem a presença do Ministério Público, mostra-se necessário fazer breves considerações a respeito do anexo do referido acordo que tratou de fantasiosas condutas ilícitas por parte de Ministro da mais alta Corte do país.

Inicialmente, é evidente que a atribuição constitucional para iniciar qualquer investigação perante a Suprema Corte é exclusiva da Procuradoria-Geral da República, de forma que esta jamais poderia ser usurpada por qualquer outro órgão. No entanto, ainda que relevada essa lamentável tentativa de infringir a Constituição Federal por parte da autoridade policial, o caso em apreço é sintomático de um grave problema que tem pairado sobre a persecução penal: as delações premiadas sem qualquer fundamento fático ou base legal, as quais são formuladas com o objetivo exclusivo de tentar promover uma criminalização indevida e de constranger aqueles que se posicionam em favor das garantias constitucionais.

Trata-se, no caso em questão, pelo que foi divulgado pela mídia, uma vez que, segundo a legislação pertinente, os termos do acordo deveriam permanecer em sigilo até o recebimento de denúncia, de anexo de colaboração premiada embasado exclusivamente em depoimento de ouvir dizer, sem qualquer prova das alegações formuladas. E mais grave ainda: a fonte primária da informação prestada pelo colaborador nega os fatos.

O primeiro ponto fundamental a ser discutido na hipótese é a imprestabilidade de termo de acordo de colaboração premiada em que não são fornecidas provas extrínsecas que corroborem com a versão do delator. A alteração promovida na Lei 12.850/2013, pelo denominado Pacote Anticrime, tornou mais evidente o entendimento, que já era uníssono na doutrina e na jurisprudência, de que a colaboração premiada consiste em meio de obtenção de prova, não tendo, por si, qualquer força probatória, nos seguintes termos: "Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos".

Com a massificação da delação premiada, o Supremo Tribunal já havia se deparado com o tema e a Segunda Turma daquela Corte havia firmado jurisprudência firme na linha de que as meras declarações produzidas por colaborador não eram suficientes para justificar o recebimento de denúncia, uma vez que, mesmo antes das alterações legislativas, essas declarações não poderiam conduzir a uma condenação sem elementos extrínsecos de corroboração, por expressa vedação do artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12.850/13.

A partir do julgamento dos inquéritos 3994 e 3998, ainda em 2017, a Segunda Turma do STF consolidou a compreensão de que a palavra do colaborador, sem lastreio em provas idôneas de corroboração, não são suficientes para fundamentar o juízo de admissibilidade da pretensão acusatória, em razão da ausência de fumus commissi delicti.

Aquele colegiado avançou ainda mais em seus julgados posteriores, sofisticando e aprofundando a análise de inviabilidade da persecução penal nesses casos, sendo imprescindível recordar as lições do Ministro Gilmar Mendes a respeito do princípio da presunção de inocência, quando do julgamento do inquérito 4074: "A desconfiança com os atos de colaboração decorre da presunção de inocência, a qual como regra probatória e de julgamento impõe à acusação o ônus de provar a culpa, além da dúvida razoável, reproduzindo provas contra terceiros que o delator obtenha a remissão de suas penas, ou seja, um ânimo de auto-esculpação ou de eterno-inculpação"1.

Apesar dos precedentes serem no sentido da insuficiência das declarações para efeitos de recebimento da denúncia, o que demonstrou naquele momento a necessidade de maior cautela com as delações, ainda que ausente, à época, a previsão legal da impossibilidade de recebimento de denúncia, no caso concreto, a imprestabilidade e ilegalidade da colaboração são constatadas já na pretensão de se iniciar investigação.

As peculiaridades do caso indicam prontamente que nem a investigação é possível, haja vista que se trata de depoimento de ouvir dizer com a firme negativa por parte da fonte primária, o que será aprofundado adiante, de sorte que inexiste um substrato mínimo indiciário para iniciar qualquer tipo de investigação preliminar, sob pena de manejo político, midiático, com a tentativa de impor o constrangimento e strepitus decorrentes de uma investigação criminal claramente falida a um Ministro independente.

A controvérsia sobre o valor probatório do depoimento prestado por colaborador foi definitivamente resolvida com a inclusão do art. 4º, § 16, II, na Lei 12.850, pelo pacote Anticrime, o qual traz expressamente a impossibilidade legal do recebimento de denúncia, além da impossibilidade de decretação de medidas cautelares reais ou pessoais, com fundamento apenas nas declarações do colaborador.

Assim sendo, tendo em vista a absoluta inutilidade de colaborações  premiadas que não apresentem elementos extrínsecos que a corroborem, mostra-se claro que tais delações, especialmente as que são comprovadamente inverídicas desde o princípio, tal como a ora analisada, não deveriam sequer ser homologadas, sob pena de serem utilizados os acordos de colaboração com o fim exclusivo de causar constrangimentos e investigações fadadas ao insucesso, com base em versões fantasiosas que não têm qualquer compromisso com a verdade.

O segundo ponto que merece discussão no caso em apreço é a imprestabilidade de testemunhos de ouvir dizer e, ainda mais, a ilegalidade de colaborações premiadas baseadas apenas em depoimentos de ouvir dizer. Observa-se, ab initio, que o testemunho indireto ofende a norma processual prevista no art. 155, do CPP, que prescreve a necessária apreciação da prova em contraditório. Ademais, não há previsão normativa para sua admissibilidade, de forma que reconhecer sua validade afronta, também por essa perspectiva, o princípio da legalidade, previsto na Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XXXIX, como cláusula pétrea.

Ressalta-se que a nulidade desse tipo de depoimento é reconhecida em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive naqueles que seguem a common law, nos quais, não obstante a codificação seja extremamente reduzida, identifica-se a necessidade de normatizar o combate ao chamado hearsay testemony.

Um desses ordenamentos jurídicos é o dos Estados Unidos, em que a Rule 802, do Federal Rules of Evidence2, prescreve a inadmissibilidade da prova lá denominada hearsay. Isto porque tal prova ofende a Sexta Emenda daquela Constituição Federal3, que garante os direitos aos defendentes, entre eles o direito ao contraditório, conforme jurisprudência reiterada da Suprema Corte norte-americana.

Antônio Magalhães Filho ensina que a regra de inadmissibilidade do testemunho indireto na referida legislação estrangeira tem o objetivo de "assegurar a correção do veredicto, afastando um testemunho de 'segunda mão', tido como potencialmente prejudicial para o esclarecimento dos fatos" e de "evitar que um depoimento possa ter ingresso no processo sem o crivo do cross examination"4.

Observa-se que o exercício do contraditório é fundamental ao processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, sendo inclusive um direito fundamental previsto na Carta Magna e objeto de norma processual, conforme já mencionado. Por isso, não pode ser aceito o depoimento indireto como prova, em clara ofensa às garantias constitucionais dos defendentes e ao Código de Processo Penal.

Seguindo o mesmo entendimento, a Suprema Corte canadense também tem jurisprudência pacífica quanto à imprestabilidade do tipo de depoimento em comento. No importante julgamento R. v. Bradshaw, explicitou-se a necessidade de nulidade de depoimento indireto: "The main concern of the hearsay rule is the veracity of the statements made. The principal justification for the exclusion of hearsay evidence is the abhorrence of the common law to proof which is unsworn and has not been subjected to the trial by fire of cross-examination"5.

Percebe-se, portanto, que os países que adotam a tradição jurídica da common law, sem embargo de normalmente privilegiarem o utilitarismo, com normas de caráter eficientista, reconhecem, de forma unânime, a importância da declaração de nulidade de depoimentos de pessoas que não participaram dos fatos, tendo apenas ouvido falar a respeito destes. No mesmo sentido tem se firmado a jurisprudência nacional ao analisar o tema. O Superior Tribunal de Justiça fez colocações fundamentais ao julgar o Resp n. 1444372, oportunidade em que o Ministro Relator, Rogério Schietti, transcreveu na ementa do acórdão as lições de Helio Tornaghi: "não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica. Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta"6.

Naquele caso, o eg. STJ entendeu que não poderia ser pronunciado o réu com base em depoimento de "ouvir dizer", ainda que boa parte da jurisprudência seja no sentido da aplicação do in dubio pro societate quando da decisão de pronúncia, em crimes de competência do Tribunal do Júri. Isto porque não pode ser levado em conta simplesmente a palavra de alguém que sequer presenciou os fatos.

O entendimento em comento foi confirmado, pelo STJ, no julgamento do Resp n. 1.674.1989, em que o voto condutor consignou que "A razão do repúdio a esse tipo de testemunho se deve ao fato de que, além de ser um depoimento pouco confiável, visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca, o acusado não tem como refutar, com eficácia, o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo"7. A questão também foi reiterada pelo Superior Tribunal de Justiça no HC 397.48510, de Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em que novamente se entendeu pela ilegitimidade de se considerar como testemunha alguém que não teve contato com os fatos8.

Desse modo, não há dúvida quanto à impossibilidade de ser aceito, no ordenamento jurídico brasileiro, a legalidade do depoimento de ouvir dizer. Tal ilegalidade torna-se ainda mais insuperável quando se trata de colaboração premiada com base exclusivamente em depoimento de ouvir dizer.

A partir dessas breves considerações, mostra-se cristalina a ilegalidade do acordo de colaboração em que foi citado um Ministro técnico e comprometido da Suprema Corte, o qual foi embasado tão somente em depoimento de ouvir dizer e em que a suposta fonte das informações nega veementemente os fatos. Agora resta perquirir acerca das razões que motivaram essa lastimável tentativa de usurpar a competência constitucional da Procuradoria-Geral da República e de atacar o Supremo Tribunal Federal. É necessário que todos fiquemos atentos e combatamos pressões indevidas ao Poder Judiciário, sendo importante também, no caso em comento, que sejam averiguadas as eventuais implicações com base na Lei de abuso de autoridade.

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1 Inq 4074, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 14/08/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-221  DIVULG 16-10-2018  PUBLIC 17-10-2018

2 Federal Rules of Evidence. Disponível aqui. Acesso em: 15.05.2021.

3 Sexta Emenda da Constituição Federal dos Estado Unidos. Disponível aqui. Acesso em: 15.05.2021.

4 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 141.

5 Supreme Court Judgments. R v. Bradshaw. Disponível aqui. Acesso em: 15.05.2021.

Tradução livre:

O fundamental receio quanto à regra do hearsay é a veracidade dos depoimentos prestados. A principal justificativa para a exclusão da prova de "ouvi dizer" é a aversão da common law a provar o que não se submete ao compromisso de dizer a verdade e não é submetido ao contraditório.

6 STJ. REsp 1444372/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/02/2016, DJe 25/02/2016

7 STJ. REsp 1674198/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 12/12/2017

8 STJ. HC 397.485/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 22/08/2017

Antônio Carlos de Almeida Castro

Antônio Carlos de Almeida Castro

Bacharel em Direito pela UnB. Advogado criminalista, sócio do escritório Almeida Castro Advogados.

Marcelo Turbay Freiria

Marcelo Turbay Freiria

Presidente da Comissão de Direito de Defesa da OAB/DF. Mestre em Direito. Professor de Direito Penal. Especialista em Direito Penal Econômico Europeu e em Direito Penal e Compliance. Sócio do escritório Almeida Castro Advogados.

Ananda França de Almeida

Ananda França de Almeida

Graduada pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sistemas Penais Econômicos do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Membro da Comissão de Direito de Defesa da OAB/DF.

Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

Coordenador-adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Mestrando em Direito, Estado e Constituição. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Advogado do escritório Almeida Castro Advogados.

Roberta Castro Queiroz

Roberta Castro Queiroz

Advogada criminalista e sócia do escritório Almeida Castro Advogados.

Liliane de Carvalho Gabriel

Liliane de Carvalho Gabriel

Sócia do escritório Almeida Castro Advogados.

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