Encenação de agressão à advogada no tribunal do júri revela a institucionalização do problema da violência de gênero
Seja no meio jurídico, em telenovelas, ou outras manifestações, essas frequentes simulações de agressões físicas contra mulheres são suficiente para causar em quem observa a sensação cada vez menos de perplexidade e cada vez mais de conformismo.
quarta-feira, 12 de maio de 2021
Atualizado às 15:06
Circula na internet trecho da gravação de júri popular coberto pela mídia, com repercussão nacional, onde um advogado e uma advogada encenam dinâmica que pretende reproduzir esganadura sofrida por vítima de feminicídio. A encenação é feita pela defesa do réu com o objetivo de convencer aos jurados que seria impossível o réu esganar a vítima sem que ela tenha deixado marcas no corpo dele tentando se defender e se desvencilhar.
Tendo a encenação viralizado, causando espanto e indignação em muitos e muitas pela brutalidade empregada, quem atuou na simulação veio a público esclarecer que a cena havia sido previamente combinada entre a equipe, sem o intuito de subjugar a advogada objeto da dita encenação de esganadura, a qual afirma em outro vídeo que circula nas redes sociais ter convicção de que para defender suas causas em plenário está disposta a tudo.
Sobre esses dois vídeos, importa esclarecermos algumas coisas. Primeiro, que a simulação de ações no Tribunal do Júri pode ser mesmo decisiva para o convencimento de juradas e jurados quando a defesa se pauta no meio de execução alegado pela acusação - estratégia para validar a tese defensiva a partir de percepções sensoriais.
Segundo, e não menos importante, que não se duvida da palavra da advogada que representou a vítima do feminicídio na encenação da agressão, quando ela afirma que não se sentiu subjugada ou desvalorizada pela equipe - a única pessoa que tem autoridade para determinar sua compreensão do ocorrido é ela própria.
Contudo, além da encenação como estratégia de defesa do réu nem ter sido suficiente para absolvê-lo - foi condenado a mais de 31 anos de prisão -, ainda levanta a questão da adequação deste tipo de dinâmica no 5º país do mundo com mais mortes violentas de mulheres.1
Em fevereiro de 2021 o Supremo Tribunal Federal firma entendimento de que a tese da legítima defesa da honra em acusações de feminicídio é inconstitucional2. Ainda assim, a diversos casos de feminicídio que vem sendo julgados desde essa data, continua-se a dar ênfase ao comportamento da vítima como provocador e merecedor da violência recebida.
Então essa questão da normalização de cenas de violência contra mulheres extrapola a situação da cena do júri, não diz respeito apenas aos advogados de defesa do réu desse caso - mais que isso, é apenas um dos exemplos do que ocorre em outros júris de feminicídio, em audiências de instrução criminais e no sistema judiciário como um todo.
Por isso, a utilização do recurso de simulação em Tribunal do Júri com o objetivo de expor aos jurados que as agressões praticadas pelo réu não seriam suficientes para matar a vítima, mas apenas lesioná-la, guarda em si um espírito de justificação da violência contra a mulher. E, ainda que não se considere sob esse enfoque, uma reconstituição sempre pode ser realizada com a utilização de bonecas e bonecos - sem vida, sem alma - para retratar agressões físicas, cuja prática (ainda que reproduzida e sem resultado de lesão) não é tolerável em qualquer profissão.
Nesse sentido, a diretoria da Ordem dos Advogados do Paraná já apura disciplinarmente a conduta do advogado que encena a esganadura, e diretorias das comissões do órgão aparentam ter receio em se manifestar, uma vez que notas de repúdio poderiam ser entendidas como julgamento preliminar e comprometer a responsabilização formal do advogado pelo fato.
É absolutamente reprovável a opção por lesionar - ou, como a defesa se posicionou, simular lesionar - uma advogada em exercício de sua profissão na tribuna do júri. Nenhum homem ou mulher pode ser submetido a esse tipo de tratamento em ambiente de trabalho.
Advogado e advogada que encenam a esganadura como, respectivamente, réu e vítima do crime de feminicídio, não possuem iguais condições de poder e domínio nem na encenação e nem fora dela. Na encenação porque há um escorregão dela que vemos no primeiro vídeo, resultante da superioridade física do advogado em relação a ela.
E fora da encenação tanto pelo conteúdo do segundo vídeo, no qual o tratamento dispensado a ele por ela é de "doutor fulano", ao passo que ele a refere apenas pelo primeiro nome, advogada iniciante; quanto se considerarmos a questão financeira da advocacia iniciante no mercado de trabalho, e questões que podem ser entendidas como de assédio moral.
A advogada não é dublê, não é atriz, e jamais deveria ser submetida a uma situação ultrajante para todas as mulheres. A Justiça não pode ser usada, sob nenhum pretexto, para perpetrar a violência que deveria enfrentar e combater.
A reprodução da cena de agressão não só perpetua a consciência machista como também estimula a violência, na medida em que mostra a facilidade com a qual um homem subjuga uma mulher pela força física e moral, porque estamos levando em consideração a possibilidade do domínio moral de um profissional titular ao usar uma advogada iniciante como estratégia de defesa.
Os reflexos da situação fazem crer na institucionalização da violência de gênero. A advogada que representa no primeiro vídeo a vítima do crime, encenando ser esganada e escorregando de fato, depois em decorrência de sua declaração no segundo vídeo, sobre haver combinado e consentido com a esganadura - mas sem menção a escorregar e quase cair - é quem vem sendo atacada nas redes sociais. Não o réu, não seu advogado que encena esganar e desequilibra a advogada. Ela, por concordar em encenar.
E nesse sentido, ainda que se entenda que ela possa não compreender por completo a dimensão institucional e o significado concreto do ocorrido - ou mesmo que se considere que seu depoimento possa estar viciado por assédio moral no ambiente de trabalho -, não se pode deixar de sinalizar a simulação de agressão em um júri de feminicídio como, no mínimo, inadequada para os parâmetros do direito penal e processual penal do século vinte e um.
À vista de todas essas reflexões e tendo-se em conta as revoluções e evoluções na legislação e costumes brasileiros nas seis últimas décadas no que tange à questões de direitos humanos e direitos das mulheres, observamos a banalização da violência contra a mulher - que pode não se perceber nessa situação - dentro das estruturas judiciárias.
São variados os pontos em que a perspectiva feminista e o garantismo no processo penal parecem entrar em confronto, motivo pelo qual as discussões acerca de questões de gênero no âmbito criminal se fazem não apenas possíveis, mas necessárias e com possibilidade de aproveitamento.
Devemos reformular a estrutura do processo penal brasileiro retirando de sua essência as heranças coloniais e patriarcais. Um bom início é suspender a regra de que homens decidam pela vida de mulheres.
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1 Mapa da Violência de 2015, organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.
Silvia Turra Grechinski
Professora universitária. Pesquisadora em direitos humanos e direitos das mulheres.