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Encenação de agressão à advogada no tribunal do júri revela a institucionalização do problema da violência de gênero

Roberta Martinic Cauduro e Silvia Turra Grechinski

Seja no meio jurídico, em telenovelas, ou outras manifestações, essas frequentes simulações de agressões físicas contra mulheres são suficiente para causar em quem observa a sensação cada vez menos de perplexidade e cada vez mais de conformismo.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Atualizado às 15:06

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Circula na internet trecho da gravação de júri popular coberto pela mídia, com repercussão nacional, onde um advogado e uma advogada encenam dinâmica que pretende reproduzir esganadura sofrida por vítima de feminicídio. A encenação é feita pela defesa do réu com o objetivo de convencer aos jurados que seria impossível o réu esganar a vítima sem que ela tenha deixado marcas no corpo dele tentando se defender e se desvencilhar.

Tendo a encenação viralizado, causando espanto e indignação em muitos e muitas pela brutalidade empregada, quem atuou na simulação veio a público esclarecer que a cena havia sido previamente combinada entre a equipe, sem o intuito de subjugar a advogada objeto da dita encenação de esganadura, a qual afirma em outro vídeo que circula nas redes sociais ter convicção de que para defender suas causas em plenário está disposta a tudo.

Sobre esses dois vídeos, importa esclarecermos algumas coisas. Primeiro, que a simulação de ações no Tribunal do Júri pode ser mesmo decisiva para o convencimento de juradas e jurados quando a defesa se pauta no meio de execução alegado pela acusação - estratégia para validar a tese defensiva a partir de percepções sensoriais.

Segundo, e não menos importante, que não se duvida da palavra da advogada que representou a vítima do feminicídio na encenação da agressão, quando ela afirma que não se sentiu subjugada ou desvalorizada pela equipe - a única pessoa que tem autoridade para determinar sua compreensão do ocorrido é ela própria.

Contudo, além da encenação como estratégia de defesa do réu nem ter sido suficiente para absolvê-lo - foi condenado a mais de 31 anos de prisão -, ainda levanta a questão da adequação deste tipo de dinâmica no 5º país do mundo com mais mortes violentas de mulheres.1

Em fevereiro de 2021 o Supremo Tribunal Federal firma entendimento de que a tese da legítima defesa da honra em acusações de feminicídio é inconstitucional2. Ainda assim, a diversos casos de feminicídio que vem sendo julgados desde essa data, continua-se a dar ênfase ao comportamento da vítima como provocador e merecedor da violência recebida.

Então essa questão da normalização de cenas de violência contra mulheres extrapola a situação da cena do júri, não diz respeito apenas aos advogados de defesa do réu desse caso - mais que isso, é apenas um dos exemplos do que ocorre em outros júris de feminicídio, em audiências de instrução criminais e no sistema judiciário como um todo.

Por isso, a utilização do recurso de simulação em Tribunal do Júri com o objetivo de expor aos jurados que as agressões praticadas pelo réu não seriam suficientes para matar a vítima, mas apenas lesioná-la, guarda em si um espírito de justificação da violência contra a mulher. E, ainda que não se considere sob esse enfoque, uma reconstituição sempre pode ser realizada com a utilização de bonecas e bonecos - sem vida, sem alma - para retratar agressões físicas, cuja prática (ainda que reproduzida e sem resultado de lesão) não é tolerável em qualquer profissão.

Nesse sentido, a diretoria da Ordem dos Advogados do Paraná já apura disciplinarmente a conduta do advogado que encena a esganadura, e diretorias das comissões do órgão aparentam ter receio em se manifestar, uma vez que notas de repúdio poderiam ser entendidas como julgamento preliminar e comprometer a responsabilização formal do advogado pelo fato.

É absolutamente reprovável a opção por lesionar - ou, como a defesa se posicionou, simular lesionar - uma advogada em exercício de sua profissão na tribuna do júri. Nenhum homem ou mulher pode ser submetido a esse tipo de tratamento em ambiente de trabalho.

Advogado e advogada que encenam a esganadura como, respectivamente, réu e vítima do crime de feminicídio, não possuem iguais condições de poder e domínio nem na encenação e nem fora dela. Na encenação porque há um escorregão dela que vemos no primeiro vídeo, resultante da superioridade física do advogado em relação a ela.

E fora da encenação tanto pelo conteúdo do segundo vídeo, no qual o tratamento dispensado a ele por ela é de "doutor fulano", ao passo que ele a refere apenas pelo primeiro nome, advogada iniciante; quanto se considerarmos a questão financeira da advocacia iniciante no mercado de trabalho, e questões que podem ser entendidas como de assédio moral.

A advogada não é dublê, não é atriz, e jamais deveria ser submetida a uma situação ultrajante para todas as mulheres. A Justiça não pode ser usada, sob nenhum pretexto, para perpetrar a violência que deveria enfrentar e combater.

A reprodução da cena de agressão não só perpetua a consciência machista como também estimula a violência, na medida em que mostra a facilidade com a qual um homem subjuga uma mulher pela força física e moral, porque estamos levando em consideração a possibilidade do domínio moral de um profissional titular ao usar uma advogada iniciante como estratégia de defesa.

Os reflexos da situação fazem crer na institucionalização da violência de gênero. A advogada que representa no primeiro vídeo a vítima do crime, encenando ser esganada e escorregando de fato, depois em decorrência de sua declaração no segundo vídeo, sobre haver combinado e consentido com a esganadura - mas sem menção a escorregar e quase cair - é quem vem sendo atacada nas redes sociais. Não o réu, não seu advogado que encena esganar e desequilibra a advogada. Ela, por concordar em encenar.

E nesse sentido, ainda que se entenda que ela possa não compreender por completo a dimensão institucional e o significado concreto do ocorrido - ou mesmo que se considere que seu depoimento possa estar viciado por assédio moral no ambiente de trabalho -, não se pode deixar de sinalizar a simulação de agressão em um júri de feminicídio como, no mínimo, inadequada para os parâmetros do direito penal e processual penal do século vinte e um.

À vista de todas essas reflexões e tendo-se em conta as revoluções e evoluções na legislação e costumes brasileiros nas seis últimas décadas no que tange à questões de direitos humanos e direitos das mulheres, observamos a banalização da violência contra a mulher - que pode não se perceber nessa situação - dentro das estruturas judiciárias.

São variados os pontos em que a perspectiva feminista e o garantismo no processo penal parecem entrar em confronto, motivo pelo qual as discussões acerca de questões de gênero no âmbito criminal se fazem não apenas possíveis, mas necessárias e com possibilidade de aproveitamento.

Devemos reformular a estrutura do processo penal brasileiro retirando de sua essência as heranças coloniais e patriarcais. Um bom início é suspender a regra de que homens decidam pela vida de mulheres.

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1 Mapa da Violência de 2015, organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).

2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.

Roberta Martinic Cauduro

Roberta Martinic Cauduro

Advogada criminalista. Pós-graduanda em direito penal e criminologia.

Silvia Turra Grechinski

Silvia Turra Grechinski

Professora universitária. Pesquisadora em direitos humanos e direitos das mulheres.

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