Vacinação pela iniciativa privada: Oportunidade e razoabilidade da implementação dessa política pública
A proposta deste artigo é levar à reflexão a implementação da política pública de autorizar a vacinação pela iniciativa privada e a disposição dos particulares na aquisição e aplicação do imunizante.
quarta-feira, 12 de maio de 2021
Atualizado em 14 de maio de 2021 08:23
Se, há pouco mais de um ano, alguém nos falasse que os governantes iriam decretar lockdowns, toques-de-recolher, restrições no comércio e na prestação de serviços etc. porque houve a disseminação de um novo vírus, diríamos que se tratava de roteiro de ficção científica.
Contudo, com o advento da pandemia pelo vírus SARs-CoV2 e o acometimento de milhões de brasileiros pela covid-19, esse cenário tido como fictício acabou por se concretizar e a esperança da população brasileira (e mundial) de retorno à normalidade foi depositada na corrida pelo desenvolvimento de vacinas.
Diversos laboratórios espalhados ao redor do mundo, alguns com aporte financeiro por parte de governos, entraram nessa corrida e, em tempo recorde, vacinas foram testadas e aprovadas, ainda que para uso emergencial.
Com isso, o Ministério da Saúde brasileiro, por intermédio do Programa Nacional de Imunizações do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde, elaborou o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-191.
No que interessa para a reflexão aqui proposta, consta do plano de imunização que as definições ali contidas eram dinâmicas, de modo que o rol dos grupos prioritários que seriam inicialmente vacinados, - e que totalizavam 77.279.644 indivíduos (item 3, do plano citado) -, outros poderiam ser incluídos após concluída a vacinação desses.
É oportuno consignar que, em fevereiro de 2021, a discussão acerca da viabilidade de se autorizar a aquisição e comercialização de imunizantes contra a covid-19 foi institucionalmente deflagrada com a apresentação do projeto de lei 534/21 que tramitou com urgência nas duas casas, iniciando pelo Senado Federal, e que apresentou a seguinte justificação:
A vacinação é a principal ferramenta para debelar a crise que estamos vivenciando. Nesse sentido, cabe ao Congresso Nacional aprimorar a legislação a fim de conferir flexibilidade e segurança jurídica para a aquisição dos imunobiológicos necessários para proteger o povo brasileiro. A escassez da oferta de vacinas, somada à necessidade de acelerar o processo de imunização não nos autoriza a dispensar nenhuma oportunidade de aquisição.
(...)
Também identificamos a necessidade de permitir a participação complementar da sociedade civil nesse processo tão desafiador. Assim, com o intuito de ampliar a capacidade de compra e os canais de distribuição, autorizamos a aquisição direta de vacinas por entes privados para doação ao SUS ou para comercialização, desde que concluída a vacinação dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19.
O parlamento, de forma célere, aprovou a matéria e, no dia 10/3/21, foi publicada a lei 14.125/212, cujo artigo 2º "...permite a aquisição de vacinas contra a covid-19 por pessoas jurídicas de direito privado, desde que, enquanto não imunizados os grupos prioritários previstos em plano nacional, sejam destinadas para doação ao SUS"3
Contudo, menos de um mês após, foi apresentado um novo projeto-de-lei, propondo a alteração de referido artigo 2º, o projeto de lei 948/21 que tramitou, inicialmente pela Câmara dos Deputados e, após aprovação, foi enviado à Casa revisora, encontrando-se pendente de deliberação.
A nova proposta visa permitir que "...as pessoas jurídicas de direito privado adquiram vacinas contra a covid-19, desde que as doem ao SUS, para uso no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI), ou as destinem para a aplicação gratuita e exclusiva de seus colaboradores, devendo doar ao SUS a mesma quantidade que for destinada para aquela finalidade"4, ficando ressalvado que eventuais aquisições junto a laboratório que já entabularam negociações com o Ministério da Saúde, só poderia se dar após o cumprimento integral dos contratos e a entrega das vacinas ao Governo Federal5.
Esses dados iniciais são importantes para auxiliar as ponderações que ora se faz acerca da política pública que autorizou a iniciativa privada a atuar nessa área específica (vacinação contra a covid-19).
A primeira indagação que se faz é: qual o bem público da vida que se busca alcançar? Em que pese constar da justificativa que o intuito seria a ampliação da capacidade de compra e dos canais de distribuição, o fato é que se condicionou a autorização à doação da totalidade dos imunizantes adquiridos ao SUS, até a conclusão da vacinação dos grupos prioritários que, como salientado, é variável.
Sem necessidade de muito aprofundamento, não há como deixar de reconhecer que, do ponto de vista prático, essa medida é inócua, uma vez que a lógica do setor privado é muito distinta da que norteia o setor público, tanto que o próprio parlamento, como salientado, em prazo inferir a um mês, já propôs a sua alteração.
Esses registros são importantes para evidenciar que não basta a identificação do problema para se passar, imediatamente, à formulação da política pública para resolvê-lo. É preciso empreender uma série de estudos prévios, para identificar a oportunidade e razoabilidade da adoção positiva de alguma medida.
Segundo a abordagem teórica feita por HOWLETT, RAMESH E PERL6, "...o estágio da formulação da policy-making pode ser dividido em fases para esclarecer como as várias opções são consideradas e para sublinhar como certas opções são levadas adiante enquanto outras são deixadas de lado". E acrescentam "...a formulação de políticas inclui a identificação de restrições técnicas e políticas à ação do Estado"7
Por outro lado, Manuel Atienza, conforme salientado por NASCIMENTO8, estabeleceu bases para um procedimento legislativo mais racional, com a formulação de critérios que pudessem garantir um produto também racional. O teórico espanhol formulou cinco níveis de racionalidade a serem alcançados pela lei e, mais tarde, acrescentou mais um, qual seja, a RAZOABILIDADE, que consiste na exigência de um equilíbrio na concretização dos cinco níveis anteriores, de modo que eventual sacrifício de algum deles deve ser feito a um custo razoável.
Em que pese haver um clamor, especialmente da classe empresarial, pela liberação da vacinação por meio da iniciativa privada era necessário avaliar, em primeiro lugar, se, efetivamente, estava aberta a janela de oportunidade para a proposição, neste momento, de uma política pública nesse sentido. E isso porque haveriam restrições técnicas a ser levadas em consideração, dentre elas a alegada escassez de vacinas no mercado internacional e o risco de a competição elevar o preço dos imunizantes.
Vale consignar que, no caso do PL 534/21, convertido na lei 14.125/21, as restrições contidas se confundiriam, ao que parece, com o próprio objetivo da política pública, que seria acelerar a imunização pelo setor público); e, no PL 948/21, elas consistiriam numa solução para as restrições técnicas identificadas (escassez de vacinas e risco de aumento do preço do imunizante, em razão da lei da oferta e da procura).
Por outro lado, há um número expressivo da população que não se enquadra em nenhum dos grupos prioritários relacionados no plano nacional de imunização e, desse quantitativo, boa parcela está vinculada ao mercado formal de trabalho. Nesse sentido, verifica-se que numa população em torno de 213.044.1609 habitantes, obtemos o recorte de 163.981.00010 habitantes com idade superior a 18 anos, que é a idade inicial de vacinação, pois o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 apresenta contraindicações para menores de 18 anos de idade, porque as vacinas não foram testadas nesse grupo.
De acordo com o sítio do governo federal, a população prioritária na vacinação do covid-19 gira em torno de 77.200.00011 habitantes, quantitativo este, que será o destino das vacinas adquiridas pela iniciativa privada, de acordo com o art. 2º da lei 14.125/21. No entanto, faz-se necessário chamar atenção ao quantitativo de habitantes portadores de carteira assinada, cerca de 30.600.00012, com percentual de 39% dos considerados prioritários.
Portanto, mostra-se de grande relevância a possível participação das pessoas de direito privado na contribuição do programa de imunização da população brasileira, pois, caso autorizada, contribuirá efetivamente na vacinação de 18,66% da população brasileira apta a receber a vacina, grupo este, que em grande parte, não se qualifica como prioritário, e provavelmente, de acordo com a legislação vigente, receberá a vacina posteriormente, no que impactará o atraso do retorno gradual da força de trabalho responsável pelo reaquecimento da economia.
Não resta dúvida que o ingresso da sociedade civil nesse processo não pode prejudicar o interesse da coletividade, o que vale dizer, é preciso, de fato, proteger o processo de vacinação pelo SUS, adotando medidas que impeçam a compra das doses pela iniciativa privada venha a prejudicar a aquisição governamental, gerando a especulação financeira.
Note-se, porém, que em março de 2021, o próprio Governo Federal divulgou que o Ministério da Saúde adquiriu 414 milhões de doses da vacina contra a Covid-19, - o que seria suficiente para imunizar toda a população-, salientando que essas doses seriam distribuídas até o final do ano13, de modo que o parágrafo 2º, do item II, da nova redação do art. 2º da lei 14.125/21, proposta no art. 1º do PL 948/21, já seria suficiente para resguardar o interesse da coletividade, não havendo impeditivo de ordem jurídica e econômica para que se autorize, de pronto, a participação da sociedade civil nesse processo.
A propósito, o art. 199 da CF estabelece que "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada". No caso sob reflexão, como há previsão de alteração dos grupos prioritários, corre-se o risco de que uma grande parcela da população, que não se enquadre nas prioridades, não ter acesso rápido à vacina contra a covid-19. Indaga-se, e o direito à saúde assegurado no item 5º e 196 da Constituição Federal? É dever do Estado brasileiro adotar políticas públicas que reduzam o risco de doença.
Não seria razoável compreender que, no momento, e para garantia do direito à saúde de todos, fosse autorizada, à iniciativa privada, adquirir e comercializar o imunizante, para que essa parcela da população que não se enquadra nos grupos prioritários também tenha acesso rápido à vacina?
Além disso, é importante ressaltar que cada dose aplicada pela iniciativa privada "desonera" o sistema público, como já acontece com a vacinação da Influenza/H1N1 pela iniciativa privada, o que descaracteriza o caráter concorrencial entre as ações.
Não se pode esquecer que a adoção dessa medida, além de desonerar o poder público com a vacinação desse espectro da sociedade, possibilitaria que o Estado destinasse as doses já adquiridas para outros grupos, agilizando, assim, a meta de imunizar toda a população que puder receber a vacina, num menor estado de tempo.
Assim, partindo das lições dos doutrinadores citados e considerado o teor dos textos normativos propostos, o que exsurge é uma série de dúvidas, notadamente acerca da eficácia e razoabilidade da implementação dessa police making pública, como, por exemplo: a) partindo da premissa que já houve a aquisição de doses pelo Poder Público para assegurar a vacinação pelo SUS, do ponto de vista da saúde pública, não seria mais eficaz que a sociedade civil pudesse, desde já, participar desse processo de imunização em massa, com vistas à sua aceleração no tempo? b) não seria razoável que classe empresarial pudesse optar, ainda que estrategicamente, por se socorrer da vacinação privada para a imunização de seus funcionários, sem contrapartida para o Estado? c) é razoável condicionar o setor privado a adquirir e doar para o SUS, ao invés de todo o produto de sua negociação, a metade?
Por fim, não se pode deixar de consignar que, em uma breve consulta aos diversos meios de comunicação, constata-se que o tema é polêmico, havendo manifestações a favor e contra a autorização de, nesse momento, a iniciativa privada poder atuar paralelamente ao Governo Federal, com vistas à vacinação da população brasileira. Os argumentos são os mais variados e perpassem desde a problemática da disponibilidade de imunizantes no mercado internacional até uma alegada medida que beneficiaria a classe mais privilegiada. E isso é importante para aperceber se o problema é, de fato, fundado em razões técnicas e racionais. A propósito, preservada a aquisição de doses já contratadas pelo Governo Federal, não haveria qualquer impeditivo de ordem jurídica ou econômica para inviabilizar a pronta implementação da medida. Fica a reflexão.
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1 Disponível clicando aqui Acesso em: 10 mai. 2021.
2 DOUE (Diário Oficial da União - Edição Extra) - 10/03/2021, Seção I, pag. 3.
3 Disponível clicando aqui
4 Explicação da ementa disponível clicando aqui. Acesso em 10 mai. 2021.
5 Disponível clicando aqui. Acesso em 10 mai. 2021.
6 HOWLETT, Michel; RAMESH, M.; PERL, Anthony. Política Pública: seus ciclos e subsistemas: uma abordagem integral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013
7 HOWLETT, RAMESH, PERL. Op. cit., p. 125
8 NASCIMENTO. Roberta Simões. Teoria da Legislação e Argumentação Legislativa: a contribuição de Manuel Atienza. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 2, 2018, PPGD/UFRJ - ISSN 2526-0464, pp. 157-198.
9 Disponível clicando aqui. Acesso
10 Disponível clicando aqui. Acesso
11 Disponível clicando aqui. Acesso
12 Fonte: IBGE
13 Disponível clicando aqui. Acesso em 10 mai. 21.