As múltiplas faces do prequestionamento
O Enunciado 297 do TST, que trata do instituto do prequestionamento, é súmula que não mostrou até hoje a que veio. Não define coisa alguma, a não ser que "diz-se prequestionada a matéria quando na decisão impugnada haja sido adotada, explicitamente, tese a respeito" e que, portanto, "incumbe à parte interessada interpor embargos declaratórios objetivando o pronunciamento sobre o tema, sob pena de preclusão".
quinta-feira, 22 de janeiro de 2004
Atualizado às 07:39
As múltiplas faces do prequestionamento
Mário Gonçalves Júnior*
O Enunciado 297 do TST, que trata do instituto do prequestionamento, é súmula que não mostrou até hoje a que veio. Não define coisa alguma, a não ser que "diz-se prequestionada a matéria quando na decisão impugnada haja sido adotada, explicitamente, tese a respeito" e que, portanto, "incumbe à parte interessada interpor embargos declaratórios objetivando o pronunciamento sobre o tema, sob pena de preclusão".
O problema, que conduz o Enunciado 297 à ineficácia, é que os Tribunais Regionais se apegam em outra corrente, no sentido de que "não cabe ao órgão julgador rebater, um a um, os argumentos das partes, bastando expor os fundamentos que lhe formam o convencimento". Essa máxima jurisprudencial também é aceita pelo próprio TST, motivo pelo qual no mais das vezes, quando se alega nulidade da decisão do Regional por negativa de tutela jurisdicional, acaba ficando "o dito pelo não dito".
Sorte da parte se a instância local tiver constado na motivação do acórdão ao menos que o tema foi ventilado (e rejeitado) até então. Do contrário, como não é necessário "rebater um a um todos os argumentos", se a parte quiser recorrer de revista para o TST com base em um enfoque que não foi do gosto da instância ordinária, faltará o prequestionamento que o próprio TST, contraditoriamente, ora diz que é necessário, ora que não pode ser exigido dos TRT's.
A reforma jurisprudencial que recentemente levou o TST a rever todos os Enunciados, infelizmente, deixou incólume o Enunciado 297. Deveria ter melhorado sua redação.
Enquanto isto não ocorre, a jurisprudência continuará patinando, com prejuízo para os jurisdicionados e, principalmente, para a celeridade dos processos. Um Enunciado vago é o mesmo que coisa alguma. Ao invés de pacificar posicionamentos, provoca outros tantos.
É sabido que, no rito ordinário trabalhista, há um afunilamento das questões processuais quando chega o momento do recurso de revista: as questões fáticas se petrificam com a decisão regional, sendo permitido apenas o reexame de questões de direito ("revisio in jure"). Mas para que se aplique a lei, é necessário ter uma base fática bem definida, o que nem sempre acontece nas decisões regionais, pois há acórdãos exaustivos de motivação, mas há também os telegráficos.
Quando a parte se depara com decisões que não revelam todos os contornos fáticos da controvérsia, outra alternativa não há senão fustigar o órgão prolator para que os faça incluir. Do contrário, seria como um desenho imperfeito, inacabado: um rascunho de rosto, ora sem nariz, ora sem um dos olhos etc.
A jurisprudência do TST, ao menos nos bons tempos, vinha se firmando no sentido de que se os elementos fáticos da lide não estiverem todos consignados na decisão regional, e a parte opuser embargos de declaração sem êxito, a decisão é nula:
"Prequestionamento de elementos fáticos - Ausência
1 - A desfundamentação do julgado, em face do silêncio da Instância Ordinária a respeito de elementos fáticos imprescindíveis à definição da matéria de direito, resulta na nulidade da decisão. 2 - Revista conhecida e provida. TST-RR 1.527/89.2 (Ac. 3ª T. 3.926/91) 2ª Reg. Rel. Min. Francisco Fausto, DJU 7.2.92, pág. 799".
Fonte: FERRARI, Irany, e MARTINS, Melchíades Rodrigues, Julgados Trabalhistas Selecionados, LTr, São Paulo, 1992, pág. 379, ementa nº 1.393.
"Quadro fático - Direito da parte à análise integral
Como só o Tribunal Regional pode rever provas para fixação do quadro fático que conduzirá à aplicação da norma legal ao caso dos autos, direito tem a parte de pleitear, quando for o caso, a análise integral, análise que garantirá possa o julgamento ocorrer em clima de absoluta fidelidade, isenção e, portanto, segurança para todos. Recurso de revista provido. TST-RR 20.003/90.4 (Ac. 3ª T. 4.941/91) 9ª Reg. Rel. Min. Manoel Mendes de Freitas. DJU 19.12.91, pág. 18.911".
Fonte: Idem, ementa nº 1.394."
A questão é que mesmo esse entendimento parece estar cedendo espaço àquela meia-verdade no sentido de que "o julgador não deve rebater um a um os argumentos das partes", o que, na prática, lança o instituto do prequestionamento mais uma vez no limbo.
Isto reforça a necessidade de revisão do Enunciado 297, para que se acomodem, de uma vez por todas, essas (ao menos aparentes) contradições entre as correntes jurisprudenciais que se formaram.
Não há como discordar da noção de que os "meros argumentos" das partes não obrigam o órgão jurisdicional a conhecê-los e rebatê-los um a um. Somente as verdadeiras questões processuais exigem decisão fundamentada. O equívoco reside emqualificar os elementos fáticos da lide como "argumentações" (= retórica), quando na realidade são verdadeiras questões. Vem à talha a lição de Chiovenda, citado por Wilson de Souza Campos Batalha (Tratado do Direito Judiciário do Trabalho, 1985, pag. 780): "Alguns comentários devem ser feitos a propósito de omissões, contradições ou obscuridades na decisão, a saber: ( a ) não se considera omissa a decisão cujos fundamentos não versam sobre toda a matéria debatida; o juiz não é obrigado a resolver todas as questões lógicas no feito, mas apenas aquelas que repute essenciais ao julgamento; assim, só se considera omissa a decisão que não recebe nem rejeita um ou alguns pedidos formulados na inicial, na contestação, ou na reconvenção. Sobre decisão omissa, diz Chiovenda, III, pág. 425: "Ocorre este defeito quando se omitiu o pronunciamento sobre qualquer dos artigos da demanda, e precisamente em relação a determinada pessoa, ou a determinado objeto, ou a determinada causa petendi. Princípio que tanto se aplica à demanda do autor, quanto à exceção. E percebe-se que, na hipótese de serem várias as exceções, deve o juiz manifestar-se sobre cada, isto é, sobre os diversos fatos jurídicos correspondentes a cada uma - nulidade por menoridade, por dolo, pagamento, novação, prescrição... Não se configura, entretanto, decisão omissa no caso de não se haver atendido a esse ou àquele argumento, (sublinhado no original), a esse ou àquele fato simples (sublinhado no original)".
Deve-se entender por argumentos as figuras de linguagem, que visam emprestar maior brilho ou poder de persuasão à narrativa da parte. As questões processuais, por sua vez, são mais que isto: são fundamentais para a delimitação e solução da res dubia, ou seja, constituem a própria lide. Uma mesma lide pode conter várias questões. A lide só se resolve plenamente se o órgão jurisdicional dignar-se resolvê-las todas. E, em instância extraordinária, ante a exigência de prequestionamento explícito, não basta que a instância ordinária resolva uma das questões, mesmo que, por via oblíqua resulte na rejeição implícita das demais.
Assim sendo, muito embora os embargos de declaração sejam dirigidos à Turma Regional, porque é competente para decidi-los o mesmo órgão que prolatou a decisão embargada, na verdade constituem um ato intermediário entre a instância ordinária e a instância extraordinária. Por outras palavras: os embargos de declaração opostos contra decisão do Regional em recurso ordinário se situa, justamente, no que se poderia chamar de momento de transição entre duas fases bem distintas: a fase ordinária, cujo efeito devolutivo é amplo (artigo 515, § 1º, do CPC), e a fase extraordinária, onde o efeito devolutivo é mitigado pelo instituto do prequestionamento.
Mas cada instância vê o prequestionamento de uma maneira (porque o lacônico Enunciado 297 permite todo tipo de interpretação); cada caso tem, portanto, um desfecho diferente, desafiando o princípio maior da isonomia.
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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados
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