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LGPD e os novos termos do WhatsApp

Uma discussão acerca da validade do consentimento proposto pelo WhatsApp.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Atualizado às 13:59

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Aproxima-se o marco inicial estabelecido pelo WhatsApp para vigor de seus novos Termos de Serviço e sua Política de Privacidade, que são mais permissivos em relação ao compartilhamento de dados pessoais com a rede social Facebook, do mesmo grupo econômico. As novas regras passam a viger, no Brasil, no dia 15 de maio. O aplicativo mensageiro informou que os usuários poderão consentir com os novos termos mesmo após essa data, e não terão suas contas excluídas imediatamente. Entretanto, após a data fixada pela plataforma, aqueles que não consentirem sofrerão restrições em algumas funcionalidades, que serão diminuídas até que não se possa ler e nem enviar mensagens. Além disso, segundo o aplicativo, os usuários que não aceitarem as novas regras até a data-limite serão instados a fazê-lo através de "lembretes persistentes". Em um contexto no qual o Estado brasileiro busca fomentar uma cultura de respeito aos direitos de titulares de dados, evocar o debate sobre a impermeabilidade das novas políticas do WhatsApp frente às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados se mostra, mais que nunca, crucial.

Para melhor entendimento do que está em disputa, é importante contextualizar as mudanças trazidas nos novos Termos de Serviço e na nova Política de Privacidade do WhatsApp. Em suma, a empresa compartilhará novos dados pessoais de seus usuários com o Facebook, rede social do mesmo conglomerado de empresas de tecnologia que detém o WhatsApp. É fato que, desde 2016, dados são compartilhados entre WhatsApp e Facebook; todavia, agora, serão ainda mais utilizados para aproximar empresas (e seus produtos) dos usuários. A título exemplificativo, o conglomerado pretende que, no perfil de uma empresa no Facebook, possa haver um botão que direciona o usuário automaticamente a um chat com a empresa no WhatsApp; ainda, uma empresa poderia direcionar anúncios no Facebook a um usuário que conversa com ela no aplicativo de mensageria.

Em meio a tantas novidades, como ficam os direitos dos usuários do WhatsApp? Ao menos à primeira vista, o WhatsApp dá indícios de que o consentimento será a base legal utilizada para tratar os dados de seus usuários, mas fica clara a existência de diversos entraves à correta operacionalização desse tratamento. A discussão é longa, e envolve diversos agentes e pontos de vista. Contudo, a (des)conformidade entre as novas políticas do mensageiro e a LGPD deve ser, no mínimo, discutida. 

Consentindo aos novos termos do WhatsApp

Ao que tudo indica, a base legal na qual o WhatsApp busca legitimar o tratamento de dados proposto em suas novas regras é o consentimento. Isso fica claro pela leitura dos termos de serviço do aplicativo, bem como pela exigência de que o usuário aceite a política de privacidade e demais regras exigidas pela plataforma. Nesse sentido, se há necessidade de aceitação, não é esperado que a base legal que embasa o tratamento seja qualquer uma das outras hipóteses presentes na LGPD, já que estas não demandam aceitação do titular. Todavia, como se sabe, não basta o simples aceite do usuário para expressão do consentimento. A Lei Geral de Proteção de Dados impõe condições de validade ao aceite. Segundo o art. 5°, XII, da mencionada norma legal, o consentimento deve ser informado, inequívoco e livre, de modo que, na ausência de qualquer um desses elementos, não há que se falar de tratamento de dados em conformidade com o ordenamento jurídico.

Primeiramente, o consentimento deve ser informado, isto é, o usuário que assentir deve ser informado de que seus dados serão tratados, qual a finalidade do tratamento e se serão compartilhados com outras pessoas, empresas ou organizações. Esses elementos estão presentes nos novos termos do WhatsApp, contudo, falta clareza em relação à informação. Sua apresentação se dá em meio a um grande volume de informações, o que, para muitos usuários, pode dificultar ou prejudicar a adequada compreensão.

É importante salientar que não basta a simples disponibilização da informação, de modo que o fornecedor deve fazer o possível para que o consumidor realmente tome conhecimento do conteúdo da mensagem. Isso pode ser feito, dentre outras maneiras, veiculando as mudanças promovidas em linguagem acessível, disponibilizando vídeos descomplicados a respeito do tema e utilizando recursos visuais de comunicação. Ou seja, o fornecedor deve fazer uso de diversos meios para facilitar o entendimento do usuário, o que não acontece no caso do WhatsApp. Inclusive, o direito à informação clara e adequada não possui fundamento apenas na LGPD, mas, também, no art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor. Se levarmos em conta a  assimetria informacional entre usuário e WhatsApp, não parece que a empresa se empenhou, dentro de parâmetros mínimos de razoabilidade, em informar o titular dos dados a respeito das mudanças promovidas, o que já levanta dúvidas sobre se o consentimento, na presente hipótese, será informado.

Além disso, o consentimento deve ser inequívoco, de modo que o usuário do WhatsApp deve assentir de maneira clara que concorda com as novas regras do aplicativo mensageiro. A aposição do aceite deve ser clara, sem obscuridades, contradições ou omissões; em outras palavras, deve ser imune a dúvidas. Esse ato de aceite, a princípio, será possível a partir do dia 15 de maio de 2021. Entretanto, é válido ressaltar que não deve haver pressuposição de que quem fizer uso do aplicativo automaticamente aceitará os novos termos. Não se deseja aprofundar na discussão a respeito de se o consentimento presumido pode, em determinadas condições, ser inequívoco. No contexto aqui analisado, a inequivocidade depende, ao menos em princípio, de uma ação positiva e clara do titular dos dados.

Por fim, o usuário deve ser livre em sua escolha de consentir. Nesse contexto, a ideia de  "granularidade" da escolha é de suma importância, de modo que o usuário não fique refém de uma lógica binária de "tudo ou nada"[1]. No caso dos novos termos do WhatsApp, o usuário não possui liberdade para definir, qualitativamente, os dados pessoais que aceita que sejam tratados. Condiciona-se a utilização plena do aplicativo mensageiro (o qual está presente em 99% dos smartphones em operação no Brasil) à integral aceitação dos novos termos. Interpretando as disposições trazidas pela LGPD em relação ao consentimento, com enfoque nos arts. 9º, §3º, e 18, Chiara Spadaccini de Teffé e Mario Viola afirmam que "regula-se, assim, a lógica binária das chamadas políticas de tudo ou nada, em que o usuário ou aceita todas as disposições e termos do serviço ou não pode utilizá-lo. Dessa forma, visa-se oxigenar processos de tomada de decisão, além de incentivar configurações de privacidade personalizáveis e a possibilidade da manifestação do consentimento de forma granular."2. Contudo, parece que o WhatsApp desconsiderou a lógica de valorização da autonomia do titular dos dados, introduzida pela nova lei.

 Ademais, na seção de "Dúvidas Frequentes" do WhatsApp, vê-se que a plataforma se empenhará em buscar o consentimento dos usuários que não realizarem o aceite até o dia 15 de maio, por meio de "lembretes persistentes". Soma-se a isso o fato de que o serviço será gradualmente interrompido. Será que realmente estamos diante de um cenário de consentimento livre? Quantos usuários, embora relutantes em relação aos novos termos, não acabariam cedendo ao desgaste da inoportuna e repetitiva mensagem?

Cabe, ainda, refletir acerca do modelo de negócio que o WhatsApp utilizou para dominar o mercado em que está inserido, comparando-o com o modelo, bem mais invasivo, que já impõe desde 2016 e que se consolidará com a presente atualização. Nos idos de 2009, a empresa surgiu como um aplicativo mensageiro que prometia a não comercialização e disponibilização dos dados de seus usuários para fins publicitários. Essa promessa serviu de sustentação para a popularização do WhatsApp, e foi a partir desse compromisso que a empresa conseguiu estruturar o enorme banco de dados3 de que hoje dispõe e compartilha com o Facebook. Dessa forma, após se consolidar no mercado a ponto de ser praticamente indispensável às relações humanas, o WhatsApp apresenta novos termos de uso com os quais, em teoria, o usuário é livre para consentir, muito embora, contextualmente, não seja. Há, no mínimo, certa deslealdade por parte da empresa: uma fraude mercadológica consumada com a completa desvirtualização de seu modelo de negócio. 

Desse modo, vê-se que os moldes com que o WhatsApp planeja implantar seus novos Termos de Serviço e sua Política de Privacidade não parecem dialogar bem com a Lei Geral de Proteção de Dados. A inadequação não se limita apenas à aparente falta de base legal hígida e adequada para o tratamento de dados; há também outros problemas, como os apontados neste texto, que aborda a coleta e tratamento de dados de crianças e adolescentes. A quem possa achar que as desconformidades aqui suscitadas seriam meras "burocracias do país tupiniquim", as autoridades concorrenciais da Índia e da África do Sul já abriram investigações a respeito da atualização, enquanto, na Europa, nem se cogita aplicá-la. Como já dito, a discussão é complexa, e, qualquer que seja seu resultado, ela tende a consolidar-se como marco no debate sobre proteção de dados no Brasil.

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1 BIONI, Bruno Ricardo. Xeque-Mate: o tripé de proteção de dados pessoais no xadrez das iniciativas legislativas no Brasil. GPoPAI-USP, 2016.

2 DE TEFFÉ, Chiara Spadaccini; VIOLA, Mário. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. Revista Eletrônica de Direito Civil. a. 9. n. 1. 2020.

3 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. Gen-Forense: Rio de Janeiro, 2020. Capítulo 1.

Henrique Rabelo Quirino

Henrique Rabelo Quirino

Graduando Direito na UFMG. Acadêmico (BA Philosophy) em Birkbeck, University of London. Colaborador da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.

Henrique Almeida Bazan Castanheira

Henrique Almeida Bazan Castanheira

Graduando Direito na UFMG. Colaborador no escritório Alexandre Atheniense Advogados.

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