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A correção monetária do FGTS pela taxa referencial: "Uma faca de dois gumes"

A problemática sobre qual índice deve ser usado para corrigir os saldos nas contas do FGTS é um tema de elevada complexidade, que envolve não somente o direito de propriedade do trabalhador, mas toda coletividade.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Atualizado às 13:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviços (FGTS) foi criado pela lei federal 5.107 de 1966, com o objetivo de proteger os empregados demitidos sem justa causa, sendo uma forma de substituição à estabilidade decenal que era estabelecida na CLT.

Com a edição da Constituição de 1988, houve uma universalização do sistema do FGTS, de modo que os empregadores ficaram obrigados a depositar até o dia 07 de cada mês, em conta bancária vinculada, a importância de 8% da remuneração paga ou devida no mês anterior, a cada trabalhador, incluídas na remuneração as parcelas das gorjetas que receber e a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações "in natura" que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente aos empregados, inclusive a gratificação de Natal.

Atualmente, a matéria é tratada pela lei 8.036 de 1990. O diploma desta lei estabelece a organização dos saldos na conta1 e hipóteses em que se poderá haver o saque das contas vinculadas por parte do empregado, como no caso de despedida sem justa causa, falecimento do trabalhador etc.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço é atualmente operado pela Caixa Econômica Federal (CEF). A instituição financeira assumiu o papel de agente operador do fundo com a publicação da lei 8.036/90. A ela cabe centralizar todos os recolhimentos, manter e gestionar as contas vinculadas em nome dos trabalhadores e estabelecer procedimentos, tanto administrativos quanto operacionais, dos bancos depositários, dos agentes financeiros, dos empregados e dos trabalhadores que possuem saldos no FGTS.

??A CEF também define os procedimentos operacionais que serão necessários à execução dos programas de habitação popular, saneamento básico e infra-estrutura urbana estabelecidos pelo Conselho Curador e financiados com recursos do FGTS, emite os Certificados de Regularidade do FGTS (CRF) ?que atestam se os empregadores e tomadores de recurso estão em dia com suas obrigações perante o Fundo.

A lei 8.036/90 também designou o responsável pela administração do fundo, qual seja, O Conselho Curador do FGTS. O Conselho é um colegiado tripartite composto ?por entidades representativas dos trabalhadores, dos empregadores e representantes do Governo Federal. Esse colegiado deve estabelecer os procedimentos específicos de atuação do fundo, assim como estabelecer normas para o bom funcionamento e total desempenho responsável dos valores ali depositados.

No que tange às hipóteses de saque nas contas, a lei foi clara ao especificar os limites e as oportunidades impostas. No que tange à remuneração, a lei diz que os saldos das contas vinculadas deverão ter atualização monetária e serem remuneradas por meio de juros.

Diante desse fenômeno, o artigo 13 da lei 8.036/90, determinou que a atualização dos valores das contas deve ser feito por juros de 3% ao ano combinado com a correção monetária, fixada pelo mesmo índice de atualização dos saldos dos depósitos na poupança, qual seja, a Taxa Referencial (TR).

Nesse contexto, os saldos das contas do fundo sempre foram atualizados de acordo com a previsão legal mencionada. Ocorre que, com o tempo, os trabalhadores que tinham valores depositados no fundo começaram a ingressar com diversas ações judiciais questionando a rentabilidade dos montantes depositados.

Em dezembro de 2008, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados apresentou o Projeto de Lei nº 4.566/2008, com vistas a alterar a forma da remuneração das contas do fundo. A partir desse projeto, tendente a mudar o sistema de correção dos valores, instituído na lei 8.036/90, foram propostos diversos outros projetos com o mesmo objetivo.

Entretanto, diante da morosidade legislativa, o assunto começou a chegar no âmbito do poder judiciário. Em maio de 2013, um sindicato de trabalhadores interpôs Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra decisão prolatada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), que reconheceu a validade da correção monetária dos valores depositados pela Taxa Referencial.

Além do Recuso Especial, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 5.090, proposta pelo Partido Solidariedade (SDD) chamando ao debate a questão da constitucionalidade da correção monetária do FGTS.

As principais alegações dessas ações judiciais são relativas à perda pecuniária que os trabalhadores sofrem ao longo dos anos, em detrimento do suposto enriquecimento ilícito da CEF. Diante desse panorama, a quantidade de processos sobre a matéria aumentou substancialmente em todo judiciário do país, fazendo com que o tema se tornasse mais delicado ainda e trazendo também ao judiciário uma enorme responsabilidade.

A ação emblemática sobre o tema foi proposta pelo partido Solidariedade, a ADIn 5.090. O partido argumentou em sua petição que a população que possui valores na conta, são assolados pela violação ao direito de propriedade que cada fundista possui sobre o valor principal e sobre o rendimento. Argumentam também que a Taxa referencial não consegue corrigir esses valores de acordo com a perda inflacionária que ocorre ao longo dos anos.

Pontua-se também que, por mais que o valor esteja sujeito a hipóteses específicas de disponibilidade, deve ser considerada a sua natureza de pecúlio constitucional, assim é relevante e necessária a imposição da preservação da expressão econômica dos depósitos do FGTS, uma vez que ao longo do tempo os valores sofreriam alterações diante da inflação.

O autor da ação explicou que a inflação é um fenômeno tipicamente econômico-monetário e obtido de forma "ex post" (baseado em conhecimento, observação e análise, sendo fundamentalmente objetivo e factual), enquanto a TR é fundada de forma "ex ante" (baseado em suposição e prognóstico, sendo fundamentalmente subjetivo e estimativo), ou seja, o modo escolhido pelo legislador é inidôneo a promover o fim a que se destina, que é de traduzir a inflação do período.

Outro argumento do autor da ADI é que quando surgiu a TR, em 1990, ela não produziu malefícios imediatos aos trabalhadores, pois seu índice sempre andou próximo do Índice Nacional de Preços do Consumidor (INPC) e do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Por exemplo, em 1994, a TR era 951,19%, o INPC 929,32% e o IPCA 916,43%.

Todo problema, de acordo com a maioria dos argumentos contrários à TR, foi que a partir de 1999, devido a alterações realizadas pelo Banco Central (BC), o panorama começou mudar, devido ao fato da TR ter se distanciado expressivamente do INPC e IPCA, não se prestando mais a manter o poder aquisitivo dos depósitos do FGTS.

A criação e a base da Taxa Referencial

Instituída a partir da Medida provisória 294 de 31 e janeiro de 1991, e transformada na lei 8.177 de 1º de março de 1991, a Taxa Referencial (TR) integrava um conjunto de medidas de política econômica do governo brasileiro (Plano Collor II), visando a desindexação da economia e o combate à inflação. Foi criada para servir de referência para a taxa de Juros no Brasil.

Teoricamente, a TR foi criada para remunerar as cadernetas de poupança com a expectativa de remuneração futura durante o período de aplicação, no lugar da inflação passada. A intenção era desindexar a caderneta de poupança (principal ativo financeiro da época), dos altíssimos índices da inflação passada.

O cálculo para se obter a TR era considerado mais fácil e mais próximo da realidade de sua criação. Bastava estimar a taxa de juros reais na economia (JR) e a remuneração bruta mensal da amostra de títulos públicos e privados (RB), na qual se tinha (1+ TR) = (1+ RB) / (1+JR).

A partir da lei 10.192 de 20012, foi atribuída ao BC a função de regulamentar a metodologia de cálculo da TR, que teria como base de cálculo a Taxa Básica Financeira (TBF). A TBF é um indexador utilizado para reajustar os investimentos de algumas aplicações financeiras no país. Essa taxa tem uma natureza diferente dos outros indexadores, como o IPCA e o IGP-M. Enquanto estes representam a variação nos preços, produtos, serviços e outros fatores ligados à inflação, a TBF é baseada no custo médio das operações financeiras realizadas no mercado.

Até 1º de fevereiro de 2018 a TBF era definida e divulgada diariamente pelo Banco Central (BC) e calculada a partir dos Certificados de Depósitos Bancários (CDBs) e dos Recibos de Depósitos Bancários (RDBs) pré-fixados que as trinta maiores instituições financeiras do país emitiam (consideradas em função do volume de captação efetuados por meio dos certificados e recibos bancários). Como consequência, quando os juros do mercado caiam, a TBF também caia, ao passo que se os juros aumentassem a TBF também aumentava.

Ocorre que a partir de 1º de fevereiro de 2018, com a resolução 4.624 de 2018, o Conselho Monetário Nacional (CMN) optou por mudar as regras de cálculo da TBF. A partir de então, a base de dados para a formação da TBF não seria mais dos CDBs e RDBs, mas sim, composta pelas taxas de juros das Letras do Tesouro Nacional (LTN), praticadas no âmbito das operações do mercado secundário (Títulos já emitidos por leilão que podem ser livremente negociados entre as partes, formando assim o mercado secundário de títulos públicos) e registradas no Sistema Especial de Liquidação de Custódia (SELIC).

Segundo o Banco Central, nos últimos anos, a evolução do mercado financeiro e a estabilização da economia têm reforçado a tendência de redução das operações com CDBs e RDBs prefixados, o que poderia provocar, no futuro, a redução da representatividade da TBF e por consequência da TR.

A fundamentação da mudança informada pelo BC mostra a preocupação da constante regulação da TR, ante as mudanças do mercado e a preocupação com a estabilização monetária no país. Destarte, a principal função da TBF é servir de base para a TR, ou seja a TR está atrelada ao resultado da Taxa Básica Financeira. Por isso a TBF é a taxa que corrige indiretamente as aplicações indexadas pela TR, tais como as cadernetas de poupança; os títulos de capitalização; títulos públicos; remuneração do FGTS; financiamentos imobiliários etc.

O cálculo da TR é de alta complexidade. Entretanto, cumpre observar que quando a TBF estiver muito baixa é possível que o resultado da fórmula da TR seja menor que zero. Como não é possível existir uma TR negativa, ela apenas será igual a zero. Daí nasce as inúmeras críticas quanto ao cálculo. Ou seja, quando as operações financeiras do mercado de títulos estão baixas, a TBF cairá e por consequência traz a diminuição da TR, razão pela qual, ultimamente, as críticas são de que a TR sempre anda na casa do zero, trazendo consequências desfavoráveis para alguns seguimentos de aplicações financeiras, dentre eles o FGTS.

O histórico da TR3, desde sua criação, de fato, desperta certa curiosidade. Em 1991, ano de sua criação, estava no patamar de 335,52%. Em 1993, saltou para 2474,22% e a partir do ano 2000 esse valor foi diminuindo até chegar a 1,80% em 2015 e, em 2021, se encontra a 0,00%4.

Destinação Social do FGTS

Um dos argumentos contrários à remuneração do FGTS pela TR consiste na impossibilidade de gestão autônoma por cada titular das quantias existentes nas contas do fundo, tirando a autonomia do fundista, o que violaria seu direito de propriedade sobre os valores, compreendidos a rentabilidade.

Entretanto, essa aparente falta de liberdade se explica pelo fato do FGTS referir-se a direito de indenização por tempo de serviço e não direito ao fundo em si mesmo. O fato da lei restringir o acesso às quantias depositadas apenas em hipóteses específicas comprovam que os valores depositados constituem mera expectativa de direito de crédito e não de direito adquirido.

Se os valores depositados no Fundo fossem liberados de imediato ao trabalhador, ele poderia, de fato, aplicar o valor em outro fundo. Entretanto, conforme pesquisas recentes, a população ainda prefere aplicar seus rendimentos em investimentos conservadores como a poupança. Se fosse aplicado em outros investimentos menos conservadores, apesar da boa vontade seria um risco ao trabalhador e traria uma grande chance de perda do investimento pelo fato do alto risco envolvido nessas ações.

Como se sabe, o FGTS não constitui somente uma poupança forçada do trabalhador, mas sim, um fundo que financia diversos programas do Governo que visam o desenvolvimento do país, conforme a lei 8.036/90. Entre esses programas destaca-se o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), o Programa Minha casa Minha Vida, obras de saneamento e infraestrutura em todo país.

De acordo com um estudo feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Brasil é considerado um país que investe pouco em infraestrutura. Por exemplo, em 2017, investiu-se somente 1,95% do PIB. Ademais, o mesmo estudo mostra que no ranking mundial, o Brasil encontra-se entre os piores países que investe nesse ramo. O Brasil é o 17º colocado entre 18 países no fator de infraestrutura, segundo o relatório Competitividade Brasil 2017-2018.

Sem infraestrutura as empresas não conseguem desenvolver adequadamente seus negócios, além do que, o principal prejudicado é a população que direta ou indiretamente sofrerá com a falta de emprego e geração de renda. A construção, por exemplo, de linhas de transporte que interliguem um centro metropolitano de um entorno, ou interliguem cidades de polos econômicos é fundamental para o desenvolvimento regional e da população.

Outro importante financiamento proporcionado pelo fundo são obras em saneamento. Não se pode esquecer que são de grande importância para o desenvolvimento de qualidade da nação. De acordo com o manual de aplicação de investimentos do Conselho Curador do FGTS, aplicação pode ser feita pelos entes públicos e privados que vise promover a melhoria das condições da saúde e de qualidade de vida da população. Dentre as modalidades do benefício, pode-se destacar o abastecimento de água; tratamento industrial de água e efluentes líquidos e reuso de água; saneamento integrado; manejo de águas pluviais; preservação e controle de mananciais; plano de saneamento, entre outros.

Por fim, é possível observar que todos esses financiamentos são disponibilizados pelo agente operador do FGTS (Caixa Econômica) de acordo com a legislação. Como se trata de uma operação de financiamento é importante lembrar que para que seja efetivado, será necessária a estipulação de taxas de juros e correção do saldo devedor.

De acordo com a normativa do Conselho Curador do FGTS, a correção monetária dos valores do empréstimo, bem como o reajuste do saldo devedor, deverá estritamente ser feito pelo mesmo índice de correção dos saldos das contas do FGTS, qual seja, a TR.

2.6 PRESTAÇÕES

2.6.1 Pagas mensalmente, com vencimento na data estabelecida contratualmente, calculadas, preferencialmente, de acordo com o Sistema de Amortização Constante - SAC, podendo ser utilizado o SFA - Tabela Price, e reajustadas pelo mesmo índice e com a mesma periodicidade de atualização dos saldos das contas vinculadas do FGTS.

(manual de fomento/FGTS/CAIXA, versão 3.18, vigência: 23/5/94).

Nesse ponto, é essencial lembrar que os financiamentos só são viáveis para beneficiar a população, pois os valores das taxas de juros são cobrados no mesmo patamar do índice de correção da remuneração do FGTS. Esse é justamente o estímulo para o setor público e privado investir em programas que proporcionem a retomada do crescimento da nação além de obras do investimento para melhoria da qualidade de vida populacional.

Imagine-se que o índice de correção dos valores do fundo seja trocado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Nessa situação, haveria um aumento substancial no repasse do financiamento para todos os programas aqui citados, criando-se uma tremenda barreira dificultosa nos investimentos e no benefício de concessão de financiamento habitacional para a população de baixa renda.

Se até num cenário de inflação baixa os valores financiados seriam altos, imagine-se um cenário de crise mundial ou nacional com uma inflação disparada? O que seria desses programas de investimento e de auxílio à população?

Ademais, deve-se lembrar que a recente Medida Provisória 889 e o Conselho Curador do Fundo autorizou a distribuição de 100% do lucro líquido que o FGTS atingir para cada conta ativa, proporcionalmente. Desse modo, não haveria razão para se mudar a TR na correção fundo já que com a distribuição dos lucros, os fundistas teriam até mais rentabilidade do que se os valores fossem corrigidos pelo IPCA, por exemplo. Assim, todos sairiam ganhando, tanto os trabalhadores detentores da conta, que teriam maior rentabilidade, quanto toda população e o país, que não perderia os benefícios proporcionados pelo fundo, quando corrigido pela TR.

______________

1 Art. 2º O FGTS é constituído pelos saldos das contas vinculadas a que se refere esta lei e outros recursos a ele incorporados, devendo ser aplicados com atualização monetária e juros, de modo a assegurar a cobertura de suas obrigações. (...) Art. 13. Os depósitos efetuados nas contas vinculadas serão corrigidos monetariamente com base nos parâmetros fixados para atualização dos saldos dos depósitos de poupança e capitalização juros de (três) por cento ao ano.

2 Art. 5º Fica instituída Taxa Básica Financeira - TBF, para ser utilizada exclusivamente como base de remuneração de operações realizadas no mercado financeiro, de prazo de duração igual ou superior a sessenta dias. Parágrafo único. O Conselho Monetário Nacional expedirá as instruções necessárias ao cumprimento do disposto neste artigo, podendo, inclusive, ampliar o prazo mínimo previsto no caput.

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Lucas Felipe Silveira Landim

Lucas Felipe Silveira Landim

Advogado. Pós-graduando em Direito Tributário e em Mercado Financeiro e de Capitais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.

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