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Compliance público e a nova lei de licitações

A nova lei de licitações e contratos administrativos é forma eficaz de prevenção e combate à corrupção no setor público.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Atualizado às 18:15

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

É possível pensar na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (LLCA, Lei Federal 14.133/21) como forma de prevenção e combate à corrupção no setor público? Sim, é. De que maneira? A partir dos pilares básicos de um programa de compliance, internalizados em sua base regulamentar e que passam a ser obrigatórios à Administração Pública.

O conceito 'anticorrupção' está intimamente conectado ao conceito 'programa de compliance', da mesma forma que 'compliance' é intrínseco ao termo 'FCPA'1 (Foreign Corrupt Practices Act). Visando transportar estes conceitos à nova LLCA, torna-se necessário esclarecê-los para melhor compreensão da reflexão.

No ano de 1972 cinco homens foram presos tentando instalar escutas telefônicas na sede do Partido Democrata em Washington, EUA. Uma investigação jornalística profunda a respeito desta espionagem culminou no escândalo conhecido como Watergate e a fatal renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon. Justamente nesta investigação se constatou que aproximadamente 400 empresas norte-americanas pagaram 300 milhões de dólares em propinas a funcionários públicos estrangeiros. Como a opinião pública e a imprensa norte-americanas pressionaram as autoridades por punições severas aos casos flagrantes de corrupção, foi editado em 1977 o FCPA, lei para punir civil, administrativa e penalmente atos de corrupção comercial internacional. Dita norma obrigou as empresas sob a sua jurisdição a adotarem e manterem um sistema interno de controles contábeis (§78m (b) (B)) com o fito de evitar adulteração de contas; e, ainda, à apresentação anual de demonstrações contábeis evidenciando todas as transações financeiras globais (§78m (b) (A) e (B) (i) e (ii)). Como compliance em inglês significa 'ato de obedecer a uma ordem, regra ou requisição'2, as empresas que desejavam não ser punidas pelo FCPA reagiram positivamente criando Programas de Compliance, compostos por pilares essenciais a fim de ser possível prevenir, detectar e reagir a riscos concretos de corrupção. Noutras palavras, as empresas fizeram surgir um conjunto de disciplinas e práticas que visam o cumprimento de normas de uma instituição, procurando investigar, evitar e solucionar qualquer desvio, risco ou inconformidade3.

Como no Brasil a Lei Anticorrupção menciona o compliance como meio de redução de sanções disciplinares (LAB, Lei Federal 12.846/13, art. 7º, inciso VIII) a prática norte-americana começou a se difundir pelo país, em especial, às empresas privadas tipicamente nacionais (já que as multinacionais traziam de suas sedes internacionais a boa prática da integridade para evitar o FCPA. Ato contínuo, o Decreto Federal 8.420/15 que regulamentou a LAB disciplinou dezesseis parâmetros para a existência de um programa de integridade estruturado (art. 42), embora a melhor doutrina os englobe em dez pilares, a saber4:

1 - Suporte da Alta Administração

2 - Avaliação de Riscos

3 - Código de Conduta e Políticas de Compliance

4 - Controles Internos

5 - Treinamento e Comunicação

6 - Canais de Denúncia

7 - Investigações Internas

8 - Due Diligence

9 - Auditoria e Monitoramento

10 - Diversidade e Inclusão

Até a vigência da nova LLCA (1/4/21), o tema compliance estava adstrito às empresas privadas incursas nas sanções da LAB (art. 1º e parágrafo único), do seu decreto regulamentar (art. 1º), do FCPA ou do UKBA (UK Bribary Act), mas foi a nova LLCA o marco legal responsável por reforçar a boa prática do compliance nas empresas privadas ao enumerar benefícios como critério de desempate em certame público (art. 60, IV); condição atenuante em eventual penalidade (art. 156, § 1º, V); e condição favorável à reabilitação licitante (art. 163), e por 'obrigar' o Poder Público a se adaptar ao tema - foco deste ensaio.

O comando principal aplicável ao setor público está previsto no parágrafo único do art. 11, que assim dispõe (g.n.):

Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:

(...)

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.

Mas não só. A dinâmica completa do 'Programa de Integridade nas licitações e contratações públicas' e sua implementação obrigatória estão dispostos, ainda, no art. 18, I, § 1º, X e nos incisos e §§1º e 3º do art. 169. Da leitura sistêmica dos artigos se extrai que a nova LLCA replicou os pilares 1, 3, 2, 4, 5 e 9 (nesta ordem) da literatura mais moderna de compliance.

Pilar 1 - Suporte da Alta Administração: que implica no comprometimento real e efetivo do corpo diretivo máximo do órgão ou da entidade com as normas e os procedimentos éticos e de integridade. Para a nova LLCA, a alta administração pública é responsável diretamente pela boa governança nas contratações. É a cúpula do governo que ditará as boas práticas, devendo atuar conforme as regras que ditar, no intuito de dar o bom exemplo a toda a cadeia envolvida nas aquisições públicas. Nas palavras de Daniel Sibille5, a alta administração faz com que as demais pessoas da corporação sejam "contaminadas pelos princípios do bem". E pela novel legislação licitatória, se o Poder Público não dá o tom correto ou não faz a gestão de uma boa governança, ele será responsabilizado diretamente pelos atos lesivos praticados pelos servidores em detrimento da Administração Pública. Não há mais a pirâmide hierárquica que separa a cúpula do ato menor licitatório. Se o servidor andar mal, a alta administração andará junto.

Pilar 3 - Código de Conduta e Políticas de Compliance: para evitar dita responsabilização, a alta administração deve implementar processos e estruturas, isto é, instituir "normas e procedimentos internos" para enraizar a política de governança capaz de prevenir e remediar atos corruptivos e danosos à coisa pública. Quer dizer, cabe à alta administração elaborar política de integridade; código de conduta dos servidores e da própria alta administração; política de due diligence em terceiros (fornecedores, contratados, parceiros); estabelecer procedimentos de PAR (processo administrativo de responsabilização), PAD (processo administrativo disciplinar) e PE (processo ético), bem como criar Plano de Gestão de Crise e Tomada de Decisões, por exemplo.

Pilar 2 - Avaliação de Riscos: os processos e as estruturas são implementados a partir da análise e do mapeamento de riscos, ou seja, gestão de riscos que na nova LLCA quer dizer conhecer a fundo o órgão ou entidade pública, os relacionamentos internos e externos da coisa pública, as normas a que se sujeita e suas vulnerabilidades. Noutras palavras, ser possível identificar, avaliar e classificar os riscos conforme metodologias consagradas (COSO, ISO 31000 ou Matriz de Impacto x Probabilidade) com o objetivo de conhecer e acompanhar adequadamente os riscos das contratações públicas. Em suma, o Poder Público tem a obrigação de saber de todos os riscos em suas aquisições, quais são as recomendações adequadas para mitigá-los (aceitar, transferir, eliminar/evitar ou reduzir/mitigar), quem é o responsável por cada um deles e o prazo recorrente de conferência e reclassificação.

Pilar 4 - Controles Internos: uma vez mapeados os riscos adequadamente, é imperioso que a alta administração passe a controlá-los. Segundo o COSO6, controle interno é "o processo formado e impactado por pessoas, sistemas, procedimentos e políticas, de forma contínua para trazer razoável segurança aos riscos e objetivos da corporação". No caso das contratações públicas, o ideal é que os controles sejam preventivos e automatizados, escalonados por interação dos servidores públicos (aprovações e autorizações, envolvimento de terceiros, análise de tendências) e em razão das diferentes modalidades de contratações (segregação no processo de aquisições, análise de exceções).  

Pilar 5 - Treinamento e Capacitação: treinar e capacitar os funcionários é, segundo o guia CADE7, "uma forma bastante adequada para se transmitir cada um dos objetivos e regras do programa". Quanto mais treinados os funcionários, melhor atuam na rotina de trabalho, e a nova LLCA, muito embora não aponte treinamento e capacitação no próprio programa de compliance, emprega importância à capacitação dos servidores públicos para fiscalização e gestão contratual (art. 18, I c/c o seu § 1º, X) e a reconhece como forma de mitigação de riscos (art. 169, § 3º, I), in verbis:

Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:

I - a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;

(...)

§ 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:

(...)

X - providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual;

Art. 169...

(...)

§ 3º Os integrantes das linhas de defesa a que se referem os incisos I, II e III do caput deste artigo observarão o seguinte:

I - quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis;

Pilar 9 - Auditoria e Monitoramento: se o setor público definiu o tom de integridade, estabeleceu normas e procedimentos éticos, mapeou e controla corriqueiramente os riscos, o próximo passo monitorar processos licitatórios e os respectivos contratos, traduzindo a necessidade contínua de supervisionar indicadores e verificar possíveis violações para correção imediata. Nada melhor do que o monitoramento para saber se o Programa de Integridade é eficaz. E a nova LLCA adotou o modelo clássico das "Três Linhas de Defesa"8 para tanto (art. 169). Neste modelo, há desempenhos e responsabilidades previamente estabelecidos pela Alta Administração (§ 1º):

Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:

I - primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;

II - segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;

III - terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas. 

§ 1º Na forma de regulamento, a implementação das práticas a que se refere o caput deste artigo será de responsabilidade da alta administração do órgão ou entidade e levará em consideração os custos e os benefícios decorrentes de sua implementação, optando-se pelas medidas que promovam relações íntegras e confiáveis, com segurança jurídica para todos os envolvidos, e que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas. (g.n.)

Não nos parece que a nova LLCA andou bem em relação à uma parte da primeira linha de defesa. Apesar de no "caput" do art. 7º a lei dar preferência para que servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes atuem nas licitações, o "caput" do art. 8º aduz que este servidor ou empregado público atuará somente na fase da licitação (da disputa propriamente dita, isto é, do lançamento do edital até a homologação). Tal entendimento segue na contramão dos momentos mais frágeis da corrupção - e que deveriam ser cumpridos por funcionários de carreira. Para a ONG Transparência Brasil9, são justamente os momentos fora da disputa que indicam fraude, como contratações sem licitação ou de baixa competitividade, valor estimado muito próximo do limite da modalidade ou formulação de edital direcionado ou mais vantajoso a determinada empresa. De fato, a nova LLCA tentou contornar a fase inicial que não tenha, essencialmente, funcionários concursados ao conceder transparência obrigatória à fase preparatória da licitação, o que em tese traria maior objetividade técnica até o lançamento do edital (arts. 17, I e 18, nova LLCA), mas ainda assim não previne que um servidor público comissionado pratique conluio para direcionar o edital que será montado na fase preparatória, por exemplo. Pois para a experiência nacional, servidores de carreira tem menor propensão à corrupção10.

Outra pequena ressalva deve ser feita à segunda linha de defesa: dado que a jurisprudência dominante nos Tribunais Estaduais e, de certa forma, pacificada pelo STF (ADI 4261) aduz que o assessoramento jurídico público deve ser reservado ao profissional recrutado por sistema de mérito e aprovado em certame público, a nova LLCA pecou ao não exigir que os servidores atuantes no controle interno sejam, preferencialmente, de carreira.

Por fim, sedimenta o viés anticorrupção da nova LLCA a promoção obrigatória de um ambiente íntegro e confiável pela Alta Administração Pública, o qual, na prática, ocorre tão-somente com um Programa de Compliance robusto, efetivo e operante.

De fato, não há sanção à Alta Administração pelo não cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 11 da nova LLCA, mas é chegado o momento de quebrar o paradigma brasileiro cultural de cumprimento das normas apenas pela força de suas sanções. É preciso crer que o termo anticorrupção não está 'na moda'; ética não está 'na moda'; transparência não está 'na moda'; e boa governança não está 'na moda', mas sim que o Programa de Integridade Público em todas as esferas de governo já é uma realidade (a ser) internalizada nas licitações e contratações públicas.

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1 Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr 21.

2 Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr 21.

3 Disponível clicando aqui . Acesso em: 28 abr 21.

4 Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr 21.

5 Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr 21.

6 Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr 21.

7 Disponível clicando aqui. Acesso em: 04 mai 21.

8 Disponível clicando aqui. Acesso em: 04 mai 21.

9 Disponível clicando aqui. Acesso em: 04 mai 21.

10 Disponível clicando aqui. Acesso em: 04 mai 21.

Melissa Pulice da Costa Mendes

Melissa Pulice da Costa Mendes

CPC-A é advogada especialista em Direito Público pela EPM e Profissional Certificada em Compliance Anticorrupção pela LEC - Legal, Ethics and Compliance. Foi Secretária Jurídica do Município de São José dos Campos, SP (2017-2020) e Presidente do GTPD - Grupo de Trabalho para Estudos e Soluções visando adequar a Administração Direta Municipal de São José dos Campos à LGPD (2020).

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