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Réu-rei: A igualdade de todos perante a jurisdição

Igualdade como alicerce fundamental do Estado de Direito. Igualdade como resultado de ideal das constituições ocidentais que iluminam as democracias contemporâneas.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Atualizado às 08:29

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Todos. Todos são. Todos são iguais. Todos são iguais perante a lei.

A frase, tão bonita, merecia que Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos tivessem feito poesia concreta com o enunciado constitucional. Paulo Leminski faria lindo haicai. A grafia compõe a beleza do significado. Ambos mostram força e razão. Igualdade como alicerce fundamental do Estado de Direito. Igualdade como resultado de ideal das constituições ocidentais que iluminam as democracias contemporâneas.

A leitura dos direitos individuais na nossa Constituição (art. 5º, da CR) surge tão rica de sentidos que emociona o intérprete, tal como acontece com o leitor da poesia. Os vocábulos se combinam e nasce sentimento. O cultor da história viaja em sensações, ao pensar no quanto se lutou para se escrever algo tão importante para a dignidade humana. A cabeça do artigo 5º convida o apreciador da música a ouvir a frase e, na mente, conjecturar o grito de egalité, ao som de Les Misérables.   

Todo esse encanto lírico para o advogado torna-se obsessão. Lamento, mas o desenvolvimento das defesas penais lhe torna irascível. Falo do meu eu insensato pela justiça. Como seria possível observar tratamento judicial que despreze a isonomia entre indivíduos? Qual insano quer convencer o advogado que a lei confere tratamento distinto a acusados em situação de igualdade? Quem ousa fazê-lo perante inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil?

Se muitas poderiam ser as respostas, para meu infortúnio, preciso convidar a todos a refletirem sobre o óbvio contemporâneo. Há escancarado desrespeito à igualdade perante a lei no tocante à Operação Spoofing, atinente às comunicações entre juiz penal e procuradores da República com atuação na denominada Operação Lava Jato.

Duas razões desprezíveis querem justificar a proibição de acesso, aos acusados e condenados pelo ex-juiz Sérgio Moro, às mensagens trocadas por aqueles funcionários públicos com atuação na persecução penal.

A primeira seria a pretensa especialidade dos casos do ex-presidente Lula. Ter-se-iam ali suspeição maior, elementos subjetivos específicos, motivação política e ideológica diferenciada. Trata-se o réu, com argumentação pertinente a rei do Ancien Régime. Ele teria direito divino à apreciação judicial, prioritária e exclusiva, dos atos parciais do magistrado arbitrário. Preocupa-me alguém assentar: "Aquilo que o réu-rei quer, assim o quer a lei", numa paráfrase dos textos franceses do século XVII.

Não se desmerece o julgamento do STF em questão. Apenas, soa incompreensível a reticência posterior da Alta Corte de facilitar a outros imputados o mesmo material probatório que permitiu o exercício da ampla defesa pelo ex-presidente (art. 5º, LV, da CR). Todos os réus da Operação Lava Jato, neste aspecto da suspeição do juiz penal, são iguais e têm o mesmíssimo direito de conhecer, utilizar e argumentar quanto a este acervo de provas pertinente e relevante às suas respectivas defesas técnicas (art. 5º, caput e LIV, da CR).  

As questões formais (e.g., quanto ao cabimento de reclamação na hipótese), tão ao gosto das assessorias de Ministro das Cortes Superiores, não podem se tornar obstáculos ao reconhecimento do direito à prova (art. 5º, XXXV e LIV, da CR), entendido aqui como direito público subjetivo de tais jurisdicionados que padeceram com aquele juízo de exceção (art. 5º, caput, XXXVII e LIII, da CR).

O outro argumento seria a pretendida infidelidade de tais comunicações, o que configuraria suposta prova inválida, para o processo penal (art. 5º, LVI, da CR). Se as mensagens servem à incriminação de juiz penal e procuradores da República, pode-se ter interesse debate sobre a legalidade (art. 157, do CPP). Quanto à possibilidade de acusado e defensor conhecerem de diálogos, entre juiz de Direito e acusador, sobre aspectos de determinado processo penal, de interesse público, no qual restou o imputado condenado, qual hesitação? 

A recepção desse material em cada processo judicial, tocante a cada acusado, de qualquer modo, tem muita valia para que, em grau de recurso, os próprios tribunais, ainda que de ofício (art. 5º, LXVIII, da CR c.c. art. 647, do CPP), possam aquilatar se audiências, atos ou decisões judiciais não se mostram resultados de eventuais fraudes.

Parece claro, além disso, que o juiz natural (art. 5º, LIII, da CR) para conhecer das questões das defesas, até mesmo quanto à imaginada inautenticidade de tais mensagens como prova, ostenta-se daqueles com competência em primeiro grau, ou em Corte, onde se encontrar sob exame o processo judicial do acusado, vítima da provável suspeição judicial e dos atos ilícitos do ministério público.

A esquizofrenia da imagem do réu-rei necessita de ser substituída pela ação concreta do Poder Judiciário de conferir a todos os acusados na Operação Lava Jato o direito de lerem, ou escutarem o que se disse sobre as acusações a ele deduzidas, nos espúrios diálogos extra autos entre juiz penal e acusadores públicos.

Como afirmou José Guilherme Merquior: "Sem o suporte de um determinado comportamento político, a democracia, ainda que corretamente definida, não é senão uma nobre, mas abstrata ficção jurídica. Democracia não é só um conceito; é, principalmente, uma conduta" (A natureza do processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 114).

No Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CR), impõe-se aos advogados dizerem bem alto, em prosa ou verso, perante a jurisdição: Todos os acusados pela Operação Lava Jato são iguais perante a lei. 

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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