Contratações no SUS em tempos de pandemia
Segundo o princípio de equidade do SUS, todos têm direito à saúde pública e gratuita conforme sua necessidade.
sexta-feira, 30 de abril de 2021
Atualizado às 08:53
No final de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto do covid-19 representava uma emergência de saúde pública internacional e, pouco depois, a OMS elevou o estado dessa emergência para uma pandemia, ratificando a gravidade dessa doença e a sua rápida capacidade de disseminação ao redor do mundo, com impactos imediatos nas contratações públicas do SUS. Então, vale relembrar como o SUS foi concebido e quais são suas diretrizes, para compreendermos melhor alguns dos impactos da pandemia do coronavírus nas compras públicas da área de saúde.
Adicionalmente, tendo em conta as orientações ao processo licitatório da administração pública, especialmente aquelas expressas nas diretrizes da transparência para compras públicas da OCDE e da NLL, é possível sublinhar a importância de certos procedimentos de controle para a atuação dos gestores públicos do SUS. Em especial, vale apontar a relevância das contratações de insumos e serviços destinados às ações sanitárias e epidemiológicas, a partir de informações confiáveis e com a devida prestação de contas das partes contratantes, para a confirmação da regularidade e efetividade dessas contratações perante os órgãos de controle e a sociedade brasileira.
Segundo o princípio de equidade do SUS, todos têm direito à saúde pública e gratuita conforme sua necessidade. Logo, os entes federativos necessitam adquirir bens e serviços para assegurar prevenção para quem está sadio; remédios eficientes e suficientes para os doentes e; acesso a procedimentos de alta tecnologia, quando necessário.
Esse Sistema, assim como outras políticas públicas inseridas na Constituição de 1988, foi concebido com um forte componente de descentralização e participação popular, especialmente de municipalização do processo decisório. Essa concepção privilegia a realização do processo decisório dos gastos com saúde no local mais próximo de sua execução e permite ampliar o controle social pela população diretamente impactada pelas políticas de saúde.
Tal descentralização administrativa do SUS pretende facilitar a aquisição de bens e serviços para as ações de saúde em todo o território nacional. Os investimentos federais no SUS, nas últimas décadas, tem se mantido ao redor de 1,7% do PIB brasileiro, que somado aos recursos dos municípios e estados, totaliza entre 3,6 e 3,9 % do PIB¹. A aplicação desses recursos vultosos na área da saúde, via atos e contratos administrativos, motiva o funcionamento de um sistema de princípios, leis, procedimentos e fiscalizações para publicizar, controlar e justificar tais investimentos.
Recordadas as concepções e diretrizes constitutivas do SUS, observa-se que a pandemia da covid-19 e seus impactos globais inesperados acarretaram uma série de repercussões nos contratos administrativos assinados entre o Poder Executivo e os contratados.
O Governo federal brasileiro disciplinou a contratações de bens e serviços para o enfrentamento da emergência de saúde pública internacional decorrente do coronavírus, com regras excepcionais tanto para as contratações emergenciais, quanto para as dispensas de licitação e por pregões abreviados. Estados e municípios seguiram esta linha, regulamentando processos de contratação simplificados em seus âmbitos locais.
Durante esse estado de emergência, todas as contratações ou aquisições realizadas necessitaram ser imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, além de um elenco de informações de transparência passiva², o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição³.
Em linhas gerais, essa pandemia obrigou os órgãos e entidades integrantes do SUS:
(i).a rever seu planejamento de contratações, identificando inclusive os objetos que demandam inclusões, substituições e contratações emergenciais;
(ii).a revisar e atualizar a matriz ou mapa de riscos4 inseridos nos contratos para incluir o impacto e a probabilidade de ocorrências relacionadas ao coronavírus no atingimento dos objetivos do contrato;
(iii).a justificar contratações com base em hipótese de dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento dessa emergência epidemiológica5;
(iv).a motivar contratações com base em hipótese de inexigibilidade de licitação6 para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao combate do coronavírus;
(v).afastar a aplicação de sanções aos contratantes, em decorrência da comprovação de evento extraordinário, relacionado aos impactos gerados pela covid-19, que impeça a execução parcial ou integral do contrato;
(vi).reequilibrar econômica e financeiramente os contratos administrativos afetados pela emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, reestabelecendo a justa correlação entre os encargos do contratado e a remuneração devida pelo contratante;
Assim, os gestores públicos da área da saúde devem continuar a seguir os ritos jurídicos ordinários para as contratações públicas em geral, ao tratar dos desafios próprios do SUS, e eventuais procedimentos especiais, tendo em vista os desafios impostos pela covid-19. Segundo tais ritos jurídicos, o processo de contratação no SUS engloba ações de planejamento, de formalização e de execução sujeitas aos controles institucionais próprios. Mutatis mutandi, novos procedimentos de flexibilização ou de excepcionalização ao rito do processo licitatório, em tempos de pandemia, também devem ser objeto de controle.
Em complemento ao controle público externo dos Tribunais de Contas, focado na apuração de irregularidades sobre a aplicação dos recursos nas ações de saúde e sobre os impactos das políticas públicas, as diretrizes do SUS também valorizam o controle social das ações em saúde, pela participação da comunidade.
Em síntese, diretrizes e procedimentos jurídicos que valorizem os controles público externo e social das compras públicas podem representar ganhos institucionais significativos no combate ao risco epidemiológico e sanitário ocasionado pela covid-19, ao possibilitar o emprego mais eficiente e efetivo de recursos e a correção de falhas.
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1. ANDREAZZI, Maria de Fátima Siliansky de. NORDSKOG, Alexandre Gomes. CORDEIRO, Hésio de Albuquerque. O Sistema Único de Saúde trinta anos depois: breve balanço de sua existência. pp. 497-516. In: Estado, democracia e direito no Brasil: trinta anos de constituição cidadã. Geraldo Tadeu Monteiro (Org.). Rio de Janeiro: Gramma;. Cebrad, 2018.
2. De acordo com o § 3º do art. 8º da lei 12.527, de 18 de novembro de 2011.
3. Segundo o § 2º do art. 4, da lei 13.979 de 06 de fevereiro de 2020.
4. De acordo com o inciso IV, §1° do art. 26 da Instrução Normativa 05/17.
5. Segundo o §1º do art. 1º c/c §1º, do art. 4, da lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
6. Para a confirmação da hipótese de inexigibilidade, necessita-se da junção dos seguintes elementos caracterizadores: serviços técnicos especializados, singularidade do objeto e, a contratação de profissionais ou empresas notoriamente especializados.