A ação popular não é meio cabível para impugnar ato de comissão parlamentar de inquérito
A "CPI da Pandemia", como ficou conhecida, foi instalada por determinação do STF, em sede de mandado de segurança impetrado pelos Senadores Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e Jorge Kajuru (Podemos/GO).
quarta-feira, 28 de abril de 2021
Atualizado às 09:34
Uma decisão da 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, proferida no dia 26 de abril de 2021, determinou, liminarmente, que o nome do Senador Renan Calheiros não fosse submetido à votação para compor a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para investigar as ações do governo e o uso de verbas federais na pandemia de covid-19. A medida foi concedida nos autos da Ação Popular 1022047-33.2021.4.01.3400, movida pela Deputada Federal Carla Zambelli, que pretende impedir ou suspender qualquer ato apto a ensejar a possível ascensão de Renan Calheiros à função de Relator da CPI da covid-19, em atenção ao princípio da moralidade administrativa.
A "CPI da Pandemia", como ficou conhecida, foi instalada por determinação do Supremo Tribunal Federal, conforme julgamento realizado no dia 14 de abril de 2021, em sede de mandado de segurança impetrado pelos Senadores Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e Jorge Kajuru (Podemos/GO).
Como afirma a autora da ação popular, a submissão do nome do Senador Renan Calheiros à votação para a relatoria da CPI afrontaria a moralidade administrativa, tendo em vista que o Senador "responde a apurações e processos determinados pelo Supremo Tribunal Federal, envolvendo fatos relativos a improbidade administrativa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o que compromete a esperada 'imparcialidade que se pretende de um relator'", o que implicaria o "desvirtuamento das proposituras objetivas e uma verdadeira guerra de interpretações que nada vão ajudar à solução dos grandiosos problemas noticiados na rotina cotidiana", criando "um ambiente hostil ao Presidente da República (...)".
Também alega que a CPI pode vir a investigar a gestão das medidas relativas ao combate da covid-19 nos Estados, hipótese em que haveria impedimento do Senador para funcionar como relator da comissão, uma vez que é pai do Governador do Estado de Alagoas. Tal situação reforçaria a "expectativa de um direcionamento dos trabalhos para o mais distante possível de seu objeto secundário (em ordem de análise, não de importância), que é a fiscalização dos recursos públicos direcionados aos entes federativos para o combate da pandemia".
A medida judicial concedida não adentrou o mérito do pedido, fundando-se tão somente em razões afetas ao poder geral de cautela, considerando que devido à proximidade do ato de designação do relator de uma CPI e "em prestígio ao direito de ação da autora, que se soma à iminência do esvaziamento da utilidade do processo ou, no mínimo, o indesejável tumulto dos trabalhos da CPI da covid-19, na hipótese da concessão futura do pedido de tutela de urgência formulado na inicial", seria prudente determinar a suspensão da votação até a vinda da manifestação preliminar da Advocacia Geral da União e do Senador Renan Calheiros.
Conquanto não tenha havido qualquer apreciação do mérito, o que despertou a atenção foi o conhecimento do pedido no bojo de uma ação popular, considerando que a "lei da Ação Popular" (lei 4.717/65), em consonância com o art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, prevê o manejo desse instrumento processual nas hipóteses de lesão ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A partir da repercussão da decisão e dos comentários que têm sido feitos a esse respeito, cabe analisar o tema a partir de dois questionamentos básicos: (1) O ajuizamento de ação popular demanda a comprovação de lesão ao erário? (2) Pode a ação popular ser manejada em face de atos de natureza política, como a indicação de um relator em uma CPI?
De pronto, a resposta à primeira pergunta é negativa, consoante o entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado a partir do aumento do alcance da ação popular pelo constituinte de 1988.
De fato, a ação popular é regida pela lei 4.717, de 29 de junho de 1965, que em seu artigo 1º delimita seu cabimento:
"Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos." (grifos nosso)
O §1º, do artigo 1º, da referida lei, é claro ao conceituar "patrimônio público" como "todos os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico".
A Constituição Federal de 1988, em comparação com as Constituições anteriores e com a própria lei 4.717/65, que lhe é anterior, ampliou o âmbito de proteção conferido à ação popular, prevendo no inciso LXXIII de seu artigo 5º, o seguinte:
"LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência." (grifos nosso)
Com a referida ampliação, passou-se a admitir a utilização desse instrumento processual também para o controle, por qualquer cidadão, de atos lesivos ao meio ambiente e à moralidade administrativa.
Diante da nova redação do texto constitucional, surgiu a dúvida acerca da necessidade de presença da lesividade patrimonial para configuração do interesse de agir do autor popular.
Com o passar do tempo, a dúvida que ainda remanescia acerca da viabilidade de ajuizamento de ação popular para a defesa autônoma da moralidade administrativa acabou sendo pacificada pelo STF no julgamento do ARE 824.781, de 27 de agosto de 2015, em sede do qual se reconheceu que as matérias previstas no artigo 5º, LXXIII, da Constituição Federal, podem ser objeto, ainda que separadamente, de controle por meio desse instrumento processual.
Assim, o cidadão que figure no polo ativo de ação popular não precisa, à luz da Constituição de 1988, provar a lesão ao erário, desde que demonstre violação à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico ou cultural.
Quando à segunda questão, se cabe ação popular para anular ato de CPI, a resposta também é negativa, porquanto o que busca resguardar o comando constitucional é a moralidade administrativa, não a política, objeto de outras formas de controle social.
A autora da ação em estudo pretende que o Poder Judiciário interfira em ato "não administrativo", de órgão "não administrativo", no exercício de função "não administrativa", o que se mostra, de pronto, teratológico.
Com efeito, em que pese ser possível a discussão acerca da ampliação do objeto da ação popular - o que seria de lege ferenda desejável -, para alcançar atos "não administrativos", fato é que o próprio pedido deveria estabelecer como alcance a moralidade dos atos legislativos, fiscalizatórios, ou políticos. Isso, de qualquer modo, ainda esbarraria na interpretação literal, sistemática e teleológica da norma, que não ampara seu uso para atacar atos políticos.
Nesse contexto, pode-se dizer que, não obstante o princípio da moralidade administrativa se refira, de maneira geral, à moralidade jurídica, embasada em valores morais juridicizados (incorporados ao ordenamento),¹ com vinculação para o exercício de qualquer função pública, fato é que quando a Constituição consigna tal vetor como fundamento para o ajuizamento de ação popular, o faz para tratar, especificamente, da impugnação de atos lesivos praticados no exercício de função administrativa - e não das demais funções do Estado.
Uma análise sistemática do texto constitucional (art. 5º, LXXIII), com os artigos 1º e 6º da "lei da Ação Popular", embasa essa conclusão. De início, a literalidade da norma já poderia conduzir, de plano, à conclusão de que o adjetivo "administrativo", que qualifica o substantivo "moralidade", possui a função sintática de restringir seu alcance à Administração Pública. Mas, além disso, o rol de pessoas e entidades referidas na lei 4.717/65 bem demonstra que parecem não se encaixar no polo passivo da ação sujeitos advindos de outras esferas de poder, que não a Executiva. Além do já transcrito artigo 1º da referida lei, verifique-se o que diz seu artigo 6º, in verbis:
"Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo."
Esses dispositivos legais, somados à literalidade do texto constitucional, bem demonstram que a sistemática normativa se orienta no sentido de viabilidade de ajuizamento da ação popular para para a impugnação de atos administrativos lesivos ao patrimônio público (erário), à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico ou cultural. Daí porque a ação popular não se presta ao controle de atos políticos, tais como os afetos às CPIs.
Com efeito, as CPIs são órgãos colegiados internos das Casas Legislativas, de funcionamento temporário, constituídos por parte dos membros de cada uma das respectivas Casas, dotados de poderes de investigação judiciais e criados para auxiliar o Poder Legislativo em suas funções institucionais, mediante a apuração de fato determinado (art. 58, §3º, da CF).
Poder-se-ia aventar que o controle externo da Administração Pública é exercido pelo Congresso Nacional, a teor do que dispõe o artigo 49 da Constituição Federal:
"Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta".
Embora a semântica das expressões em destaque aponte certa equivalência, a atividade de controle em sentido amplo também pode ser entendida como abrangente da atividade de fiscalização.
Não obstante, é nítido que o constituinte empregou ambas as expressões com sentidos diversos, por aplicação do brocardo latino verba cum effectu sunt accipienda (a lei não contém palavras inúteis).
A CPI constitui colegiado de fiscalização despido do poder de desconstituir ato do Poder Executivo, ao contrário das comissões permanentes dotadas de competências para o exercício da função de controle externo, ainda que ad referendum do Plenário, nos termos regimentais.
Assim, descabe pretender equiparar as atividades da CPI a atos administrativos (de controle), porquanto não visam a exercer qualquer interferência direta e imediata em atos administrativos, mas consistem em mera projeção da função política do Parlamento. Como afirma José Levi Mello do Amaral Júnior, "os Parlamentos surgem para limitar e controlar o poder do rei".² Embora ofuscada pela função legislativa no curso da evolução dos Parlamentos, a atividade por estes exercida sempre assumiu feição nitidamente política.
Nos Estados Unidos, por exemplo, sua íntima relação com a função política do Legislativo é explicada pela teoria dos poderes implícitos.³
Constituem, por assim dizer, expressão da função de fiscalização exercida pelo Poder Legislativo. Como afirma Paulo Gustavo Gonet Branco, "no quadro de divisão de funções entre os Poderes da República, tocam ao Legislativo as tarefas precípuas de legislar e de fiscalizar, destinando-se a reunir dados e informações para o exercício das funções conferidas ao Parlamento."4
Considerados projeções do próprio Parlamento, os atos políticos emanados da CPI não podem ser objeto de controle jurisdicional, salvo aqueles que violarem garantias fundamentais, especialmente os praticados com poderes próprios das autoridades judiciais. Ao se referir, contudo, à possibilidade de controle judicial dos seus atos, o autor apenas menciona o manejo dos remédios constitucionais do habeas corpus ou do mandado de segurança, diretamente no STF.5
Como demonstrado, o alargamento das possibilidades de participação popular por ação judicial foi amplamente debatido pelo constituinte, que chegou a prever a hipótese de ação civil pública ajuizada pelo cidadão para pleitear a nulidade de ato lesivo à sociedade em geral, o que foi retirado do texto final aprovado.
Por tais razões, há que se entender que o uso de ação popular contra atos de natureza política, como os praticados pelas Comissões Parlamentares de Inquérito carece de amparo constitucional. Entendimento diferente autorizaria, por exemplo, a ajuizamento de ação popular contra diversos atos políticos, como apresentação de projetos de lei, votação dos parlamentares, aprovação ou rejeição de Contas, atuação no processo de impeachment, importando em judicialização da política, por meio do referido instrumento processual.
A restrição da ação popular e outros meios de participação do cidadão no controle dos poderes constituídos não fica esvaziada por essa constatação. A ampliação de seu objeto precisa ser melhor discutida, a fim de se evitar a hiperjudicialização de decisões-meio de natureza políticas, que podem ser melhor controladas a partir da produção de um ato final, pelos mecanismos já postos à disposição da coletividade.
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1. NIMER, Beatriz Lameira Carrico. Ação popular como instrumento de defesa da moralidade administrativa: por uma nova cidadania. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016 p. 109-115.
2. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. O Poder Legislativo na democracia Contemporânea. A função de controle político dos Parlamentos na democracia contemporânea. Brasília: Revista de Informação Legislativa, v. 42, n. 168, out./dez. 2005, p. 2.
3. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1191.
4. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. p. 1186.
5. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. p. 1193.
Leonardo David Quintiliano
Doutor pela Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Lisboa. Advogado. Professor de Direito.