O caos do sistema prisional e a urgência de uma nova política criminal
Como mitigar a atuação do Judiciário em uma área que deveria ser eminentemente gerida pelo Poder Executivo? A resposta necessariamente passa pela revisão e elaboração de políticas públicas eficientes e exequíveis, em especial, no campo da política criminal.
terça-feira, 27 de abril de 2021
Atualizado às 16:45
Não é nenhuma novidade que vivemos o colapso do sistema prisional estadual. Com uma população de cerca de 748.009 pessoas distribuídas em estabelecimentos prisionais destinados ao cumprimento dos regimes fechado, semiaberto e aberto. Se fosse uma cidade, poderíamos estar falando de João Pessoa (PB), Boston (EUA), Seatlle (EUA) ou Frankfurt (AL). Desse total, apenas 144.211 sentenciados exercem alguma atividade laborativa, dos quais cerca de 44,61% nem sequer recebem remuneração1.
Em outras palavras, poderíamos dizer que, se fosse uma cidade, o sistema prisional brasileiro seria incapaz de se autogerir, seja da ótica econômico-financeira, seja em relação à capacidade de se sustentar enquanto "sociedade produtiva". Ao olhar o cenário por esta perspectiva, fica evidente porque chegamos à situação atual.
Os números impressionam, especialmente, quando olhamos mais de perto e percebemos as degradantes condições em que os estabelecimentos prisionais se encontram.
A pandemia causada pelo coronavírus, para além de trazer novas situações que necessitavam de resposta imediata e alvissareira do Poder Judiciário, serviu como um lembrete amargo e incômodo da necessidade de revermos nossas políticas criminais de forma a não só solver o caos penitenciário, mas a premente necessidade de, com efeito, ressocializar e restaurar aqueles que adentram o sistema.
A criminalidade e a ineficiência estatal na resolução do problema prisional alcançaram o que se denomina Estado de Coisas Inconstitucional, conceito trazido pelo Ministro Marco Aurélio de Mello na Medida Cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347/DF2. Segundo aponta Carlos Alexandre de Azevedo Campos, citado pelo relator, tal situação consiste em um quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional.3
A Corte Suprema, recentemente, debruçou-se novamente sobre o assunto ao se manifestar no HC 165.704/DF4, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Em brevíssima síntese, o caso em questão trata de habeas corpus coletivo no qual o STF entendeu ser possível substituir a prisão cautelar de pais que possuam filhos menores de 12 anos ou sejam imprescindíveis aos cuidados de pessoa com deficiência física, determinando-se prisão domiciliar.
Embora naquela ocasião o relator não tenha dado provimento aos pedidos de extensão apresentados, a Segunda Turma da Corte Constitucional reconheceu a necessidade de alçar a discussão a outro patamar. Assim, oficiou aos Tribunais de Justiça de todo o País a prestarem informações acerca da concessão de prisão domiciliar com base neste precedente para, após, ser avaliada a adoção de medidas outras de fiscalização do cumprimento da decisão.
Na oportunidade, o Ministro Gilmar Mendes destacou que, após a chegada das informações, faz-se oportuna a realização de audiência pública, com a apresentação dos resultados, propiciando esclarecimento de dúvidas, proposição de soluções, bem como o envolvimento dos atores públicos e da sociedade civil, interessados na resolução do problema.
Essa decisão é apenas mais uma a exemplificar o fenômeno que temos enfrentado em nosso País há algum tempo, com mais força no atual momento. Estamos falando do conflito entre os Poderes, os quais deveriam trabalhar em simbiose, por meio do Checks and Balances System, mantendo hígido o pilar democrático e o melhor funcionamento do Estado.
A judicialização de questões de alta relevância do cenário social e político, além de ser uma forte tendência no Brasil, tem sido tema recorrente nas sessões de julgamento das Cortes Superiores. Nas palavras do Ministro Roberto Barroso, as críticas a este movimento se concentram nos riscos para a legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e nos limites da capacidade institucional do Judiciário5.
O ativismo que desagua na participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes6, pode apresentar uma faceta não tão adequada do ponto de vista da formulação de uma política criminal.7
Não obstante a colaboração dedicada do Poder Judiciário e da sociedade civil possa ser, em alguma medida, elemento essencial na elaboração de determinada política criminal, por definição, uma política pública é um programa de ação governamental8.
Apropriado relembrar que a definição do termo política pública ainda não é única e pode conter algumas imprecisões. No entanto, de maneira objetiva e operacional, podemos conceituar política pública como um sistema de decisões públicas que realiza ações, preventivas ou corretivas, dirigidas a modificar ou manter a situação de um ou vários setores sociais por meio da determinação de objetivos e planos de atuação, com a afetação dos recursos necessários para concretizá-los.9
Podemos inferir que a política criminal está inserida dentro do contexto de política pública, principalmente se levarmos em conta que os conceitos trazidos por Franz von Lizst sobre política criminal foram discutidos e atualizados por grandes doutrinadores, a ponto de concluirmos hoje que política criminal é, sim, um programa de Estado10. Assim, sendo a política criminal espécie de política pública, deve aquela pontuar todas as fases de formulação e implementação desta.
John Kingdon ensina que a formação de uma política pública perpassa (i) o estabelecimento de uma agenda governamental, (ii) a identificação das alternativas que direcionarão as escolhas feitas, (iii) uma escolha revestida de autoridade das alternativas escolhidas (authoritative choice) e a efetiva (iv) implementação da decisão.11
Cremos, ainda, que as assimetrias de informações dos diversos setores envolvidos, bem como a necessidade de adequação da agenda governamental adotada aos resultados gerados, sejam determinantes no melhor desenho institucional na construção da policy12 que se pretende implementar.
Além de questões relacionadas à disponibilidade orçamentária para a execução da policy adotada, em que o domínio mais preciso do alcance e custo relativo de cada política pública, embasado na compreensão dos indicadores quantitativos e qualitativos, dá, sem dúvida, novo sentido de responsabilidade à gestão pública.13
Por isso, é fundamental separarmos o problema original, o colapso do sistema prisional estadual, da solução proposta, a formulação de uma política criminal eficiente e exequível. Por mais que as respostas dadas pelo Poder Judiciário sejam juridicamente plausíveis e aceitáveis no momento peculiar em que vivemos, é extremamente necessário ser o Poder Executivo imbuído de sua função originária, qual seja, a de executar a administração do Estado, na premente formulação de uma política criminal, tal como se urge fazer.
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1 Dados referentes a julho-dezembro de 2019, extraídos do Relatório do DEPEN-MJ. Disponível clicando aqui.
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 641.320/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, Dje 19/2/16.
3 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Revista eletrônica Consultor Jurídico (Conjur), 2015. Disponível clicando aqui.
4 Disponível clicando aqui.
5 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista Synthesis, v. 5, n. 1 (2012).
6 Idem
7 Uma política qualquer pode revelar-se inovadora, do ponto de vista de seu desenho institucional, por exemplo, ao adotar uma forma organizacional ainda não experimentada naquele sistema jurídico. Isso não garante, todavia, que a política seja eficiente, no balanço entre custos e benefícios, ou que atenda às necessidades mais prementes, analisadas as prioridades, o escopo dos beneficiários ou a sua escala. BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
8 BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
9 SARAVIA, Enrique. Introdução à teoria da política pública. In: ___; FERRAREZI, Elisabete (Org.). Políticas públicas. v. 1. Brasília: ENAP, 2006, p. 29.
10 Calil, M. L. G. (2020). A política criminal como política pública: a (re) construção da dogmática penal a partir da "ciência conjunta do direito penal". Revista Do Instituto De Direito Constitucional E Cidadania, 3(2), 93-110. Disponível clicando aqui.
11 in BUCCI, Maria Paula Dallari. Ob. cit.
12 A policy é definida como "uma trama de decisões e ações que alocam valores". O processo decisório ou decision making coloca-se no centro dos estudos sobre administração e decisão, com interesse não apenas na tomada de decisão em si, mas também nas iniciativas políticas diante dos problemas concretos, alternativas, avaliações e resultados. A análise política se desloca para o estudo dos problemas relativos não apenas ao poder, mas também à economia, cultura e sociedade, em estudos comparados. BUCCI, Maria Paula Dallari. Ob. cit.
13 Idem