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A moderna interposição de pessoas

Como era de se esperar, a tecnologia, que nos facilita o acesso à informação, também possui, ao revés, diversos aspectos negativos.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Atualizado às 13:22

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Estamos vivendo um momento histórico da tão sonhada transformação digital dos meios processuais. Certamente que, acompanhar as mudanças tecnológicas não é um trabalho fácil, mas é extremamente necessário.

Atualmente, a tecnologia tem sido utilizada nos mais variados setores e para os mais variados fins. No entanto, como era de se esperar, a tecnologia, que nos facilita o acesso à informação, também possui, ao revés, diversos aspectos negativos.

Vivemos em uma década marcada pelo vazamento de dados, crimes virtuais e um verdadeiro campo minado de golpes, pishings¹ e estelionatos virtuais dos mais variados gêneros e para os mais variados grupos de vítimas.

Não seria diferente em relação aos devedores profissionais, especialistas no inadimplemento. É comum a utilização de estratégias administrativas preparatórias (que visam a blindagem patrimonial) e judiciais (que visam a manutenção do inadimplemento), até que se vença pelo cansaço os credores prejudicados.

Por essa razão que os especialistas em recuperação de crédito travam uma verdadeira batalha com grandes devedores, igualmente profissionais, em uma busca incansável pela satisfação do crédito.

A interposição de pessoas ainda é um dos meios mais utilizados e efetivos à manutenção das atividades do devedor profissional. Já se foi a época em que os credores solucionavam grandes casos com pesquisas de procurações disparadas nos cartórios de todo o território nacional. As procurações revelavam o que se pretendia ocultar mediante a utilização de interpostas pessoas. As procurações eram necessárias, principalmente, à manutenção e movimentação de contas bancárias dos laranjas, viabilizando, muitas vezes, a manutenção das atividades profissionais ocultas.

Essa função desencaminhada dos instrumentos procuratórios, no entanto, me parece obsoleta. Nos últimos anos tem-se notado uma diminuição na localização de procurações, fato que pode ser confirmado por quem transita nos meandros da recuperação de crédito especializada. A pergunta a se fazer seria, por qual razão?

A resposta pode ser surpreendente para a maioria dos leitores, mas de fácil compreensão. Vamos ao exemplo prático

Quando você, futuro cliente de uma instituição financeira, precisa abrir uma conta corrente, é necessária a indicação de um número de celular para cadastramento do TOKEN². No entanto, não é necessária a prova da titularidade do número do celular indicado, que, em muitos casos, pode não estar em nome do seu usuário final.

Após a indicação do número do celular, graças à tecnologia, o cliente pode movimentar valores, pagar contas, realizar compras, investir, comprar e vender ações, etc. Há uma infinidade de serviços disponíveis de forma 100% digital, que dispensam a presença física ou a confirmação visual do seu real utilizador.

Porém, como todo bônus tem seu ônus, os credores é que pagam esse pato. Sem maiores delongas, temos dois momentos históricos na interposição de pessoas, que ouso denominar de pré-tecnológico e pós-tecnológico.

No pré-tecnológico a movimentação de contas bancárias por terceiros, em casos de interposição de pessoas, era feita por instrumento procuratório. O desmantelamento da interposição era combatido com as pesquisas extrajudiciais de procurações e pelo conhecido, mas não muito bem aceito, BACEN-CCS.

No pós-tecnológico a movimentação de contas bancárias por terceiros, em casos de interposição de pessoas, é feita pela mera indicação de um número de celular, necessário à instalação do TOKEN. Ocorre que, nada impede que o "cliente" indique o número de celular de um terceiro, estranho à relação contratual.

Em outras palavras, JOÃO abre uma conta em seu nome, mas cadastra o número de celular de MARIA que, a partir de então, passará a viver financeiramente pelos meios viabilizados por uma moderna interposição de pessoas.

Os meios de combate a essa moderna interposição de pessoas, também devem ser muito bem compreendidos pelos aplicadores do direito, especialmente pelos Magistrados.  Caberá ao Magistrado, quando existirem fundados indícios de interposição de pessoas, deferir as pesquisas para viabilizar o acesso aos dados cadastrais.

Apesar de considerar que, ao menos na minha visão, não haveria quebra do sigilo bancário, pois se trata, na essência, o número de celular, de mero dado cadastral. Recomendo aos leitores, antes de buscar a efetivação das medidas, uma rápida reflexão acerca ou não do sigilo bancário.

Importante considerar que do ponto de vista prático, seria mais fácil partir do pressuposto de que o número de celular utilizado (de fato) pelo devedor é conhecido, para, a partir dessa informação, requisitar judicialmente a expedição de ofício para que as instituições financeiras informem quais contas estão vinculadas àquele número.

O caminho inverso, apesar de mais difícil de visualizar, também é possível. Havendo fundadas suspeitas de que uma empresa possui um sócio de fato, nada impede que sejam requisitadas informações cadastrais para saber qual número de celular possui autorização (concedida pela outorga do TOKEN) para movimentar as contas viabilizando descobrir qual a titularidade (de fato) do número cadastrado.

Fato é que a implementação desse pensamento aos aplicadores do direito, intitulado de moderna interposição de pessoas, poderá impactar de forma significativa a recuperação do crédito e, consequentemente, reforçar a importância da eficácia da execução e o seu impacto econômico positivo no faturamento das empresas.

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1. Os golpes de phishing scam são tentativas dos criminosos de induzi-lo a fornecer informações pessoais, como números de contas bancárias, senhas e números de cartão de crédito, através da abertura de links ou arquivos contaminados.

2. Token é um dispositivo eletrônico gerador de senhas, geralmente sem conexão física com o computador, podendo também, em algumas versões, ser conectado a uma porta USB.

Tulio Schlechta Portella

Tulio Schlechta Portella

Advogado, Especialista em Direito e Processo Tributário, Especialista em recuperação de crédito, Coordenador da equipe de investigação patrimonial na Inquest.

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