Doação modal e a impossibilidade de presunção de encargo
A partir de caso concreto que viralizou nas redes sociais, pretende-se a identificação das relações jurídicas havidas entre as participantes, e se há - ou havia - obrigação por parte da beneficiária de dar destinação certa para os valores recebidos.
terça-feira, 27 de abril de 2021
Atualizado em 29 de abril de 2021 08:52
Na 2ª metade de 2020, uma brasileira postou em suas redes sociais um vídeo narrando que realizou um procedimento que, inexitoso, modificou severamente as suas estruturas faciais. Por isso passou a sofrer agressões verbais e pediu respeito. O vídeo viralizou, e, com a atenção de algumas pessoas famosas, iniciou-se um grande movimento para que pudesse fazer uma cirurgia, a fim de tentar reverter - ou amenizar - os efeitos do procedimento primevo. Isso envolveu transferências diretas e por meio de crowdfunding.
Passados vários meses, com milhares de pessoas seguidoras nas redes sociais e sem ter realizado qualquer procedimento, a autora do vídeo recentemente informou - também pelas redes sociais - que havia desistido do seu desiderato: não havia conseguido reunir valores suficientes e havia muitos riscos - riscos esses que são inerentes a qualquer procedimento cirúrgico. Narrou que doou os valores que recebeu e isso provocou a reação de várias pessoas, tangenciando ao seu cancelamento - expressão que originariamente "Disseminou-se [...] como forma de chamar a atenção para causas" como machismo, racismo, LGBTQIA+fobia, estupro, aborto, "além de questões ambientais e políticas", mas que "vem ultrapassando o limite do protesto legítimo e se transformando em linchamento virtual, ocasionado pelo fervor social exacerbado de defender o que" julga "ser moralmente justo e correto".¹
Para além de outros aspectos sociais envolvidos, que evidenciam a dramática desigualdade do/no Brasil, que impede o acesso de várias pessoas a vários capitais, potencializada pela cruel face do machismo e transfobia, pretende-se com o presente artigo a identificação das relações jurídicas havidas no caso concreto, notadamente entre as pessoas que fizeram os aportes financeiros e a beneficiária, para avaliar-se se havia ou não dever de empregar as importâncias percebidas em um procedimento cirúrgico. Trata-se, pois, de análise eminentemente jurídica.
Conforme Terra², "A estrutura do crowdfunding é complexa, sendo possível identificar" uma relação jurídica entre a pessoa autora do projeto e as pessoas investidoras, outra entre àquelas e as plataformas online "pelas quais o projeto é veiculado"; "e uma terceira [...] entre" as pessoas investidoras "e as referidas plataformas.".
A partir dos fatos acima narrados, com a cautela de preservar a identidade das pessoas envolvidas, seguro concluir-se que houve doações: tanto as diretas para a beneficiária quanto àquelas por meio de crowdfunding, a teor do disposto no artigo 538 do Código Civil. O artigo 540, do mesmo diploma, refere que "A doação feita em contemplação do merecimento" da pessoa donatária "não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto", sendo possível que se dê na modalidade verbal - nem poderia ser diferente, inclusive no atual cenário de fintechs e pix. Para Rizzardo³ a celebração da liberalidade pode dar-se pelo meio verbal, "desde que os bens sejam móveis de pequena monta, e seguindo-se de imediato a tradição". In casu, nenhuma doação teve forma escrita, o que, a toda evidência, afasta a disposição do artigo 547, caput e parágrafo único, do Código Civil.
O artigo 553, caput, preconiza que a pessoa donatária é obrigada a cumprir o(s) encargo(s) da doação, se esses foram em "benefício" da pessoa doadora, de terceira pessoa, "ou do interesse geral", de modo que, a rigor, sendo o encargo em benefício da própria donatária, não haveria tal obrigação. Trata-se da doação modal, com encargo, onde se impõe à pessoa donatária "um dever, ou incumbência, de satisfazer certa obrigação"4. Rizzardo5 relaciona que "a existência de encargos eventuais constitui um simples modo de doação", não confundindo-se com uma obrigação - pois sendo "contraprestação", não estar-se-á mais frente a uma doação.
Quanto à revogação das doações, diz a lei que pode dar-se por ingratidão ou inexecução do encargo: no 1º caso, se a donatária atentar contra a vida da doadora ou contra ela cometer crime de homicídio doloso, ofensa física, injúria grave ou calúnia; e, se podendo ministrá-los, recusou à doadora os alimentos de que essa necessitava. Pode ocorrer também a revogação quando a ofendida, nos referidos casos, for cônjuge, ascendente, descendente ou irmã da doadora.
Excetuam-se as doações puramente remuneratórias, as oneradas com encargo já cumprido, as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural, e as feitas para determinado casamento, que em tese não são passíveis de revogação. E o prazo para tanto é de um ano a contar de quando chegue ao conhecimento da doadora o fato que a autorizar, e de ter sido a donatária a sua autora.
No 2º caso, a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se a donatária incorrer em mora; e, não havendo prazo para cumprimento, a doadora poderá notificar judicialmente a donatária, assinando-lhe prazo razoável para tanto.
Os encargos, diz o artigo 136 do Código Civil, não suspendem a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico, como condição suspensiva, e considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico. Seria a cirurgia, pois, no caso concreto, um encargo?
Não sendo ilícita ou impossível, a cirurgia poderia ser um encargo. Porém, como refere Rizzardo6, "A inerência do encargo é de forma tal que o descumprimento pode redundar na resolução do ato se prevista em cláusula específica". A doação com encargo, pois, preconiza que a pessoa donatária expressamente a aceite, mormente porque não seria possível impor obrigações a terceira pessoa sem o seu consentimento, ainda que em troca de benefício, cabendo à donatária "'examinar se lhe convém, em compensação, assumir o encargo estabelecido".7. Especialmente porque o contrato de doação é, a rigor, negócio jurídico a título gratuito.8
Como as doações in casu não se deram mediante contrato escrito, não é possível verificar-se se houve essa estipulação. Ademais, a doação é contrato benéfico, podendo transformar-se em oneroso na hipótese de se cometer um encargo à donatária9, ou seja, a doação com encargo é exceção, não podendo ser presumida. Dito de outra forma, as doações se deram porque as donatárias acreditaram que o valor seria utilizado para uma cirurgia, porém não a impuseram - como um encargo, que refere imposição da doadora à donatária.10
As doações recebidas, a toda evidência, enquadram-se como puras, que é a modalidade de "doação por essência", "inspirada no ânimo" da doadora de "contemplar" a favorecida "sem nada lhe exigir ou impor, mas por mera liberalidade".11
Consoante Terra12, "No crowdfunding de doação" as empreendedoras "visam obter recursos para a realização, de regra, de projetos filantrópicos, culturais e esportivos sem oferecer qualquer contrapartida" às apoiadoras; a despeito de haver interesse indireto "na efetivação do projeto", trazendo a autora como exemplo "a gravação de álbum" por sua compositora favorita, "o que não desnaturaria "o contrato de doação". Terra13 aponta que como a apoiadora "realiza a doação com vistas à implementação do projeto proposto", configurar-se-ia uma "doação com encargo", com o que não se concorda, pois como referiu a própria autora, trata-se de interesse apenas indireto, diferente do interesse da apoiada/donatária, que é direto. Ademais, a doação modal precisa de expressa imposição do encargo e do aceite.
Seguro concluir-se que havia desejo das pessoas donatárias na realização da cirurgia, para que a beneficiária pudesse tentar reparar as modificações em sua face, como condição para que parasse de sofrer agressões verbais, sendo cristalino que não havia - e não há - qualquer interesse direto, que certamente caberia apenas à própria donatária.
Uma vez que a cirurgia viria para em tese trazer mais qualidade de vida para a autora do vídeo, seguro concluir-se que escapa ao disposto relacionado com a obrigatoriedade de cumprimento do encargo (ex vi do artigo 553, do Código Civil), o que é reforçado pelo disposto no artigo 15 do mesmo diploma, que preconiza que "Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.". E como uma das formas de harmonização entre as ciências da saúde e a dignidade humana é a estruturação de balizas bioéticas para determinadas terapias, devendo tais limites darem-se por meio do protagonismo das pessoas destinatárias, mesmo que determinado procedimento médico seja passível de utilização, não poderá ser realizado se esse não for o seu desejo.14
Por fim, a atitude da donatária de doar os valores e não fazer qualquer cirurgia não configura ingratidão, por não se enquadrar nas respectivas disposições legais, e porque a autonomia da vontade e a liberdade (ainda) são regra no ordenamento jurídico brasileiro.
Para Barbosa e Guimarães15, as pessoas canceladoras, no mais das vezes, sentem-se como em um tribunal, julgando "todo e qualquer comportamento, sentenciando" pessoas a uma "morte social", rotulando-as e "deixando subentendido o desejo de supressão de sua existência", por meio de "mensagens hostis e violentas, negligenciando à vítima o direito à defesa e ao esquecimento de suas" eventuais "falhas". Tais condutas afetam o número de seguidoras e contratos publicitários - no caso de quem utiliza redes sociais comercialmente -, mas também a saúde mental das pessoas canceladas, que podem ser desconhecidas que "tenham uma foto ou vídeo viralizados na internet"16, como no caso em tela.
Cancelamentos são perigosos, o que demanda prudência, para que não deixe de ser "um ato político estratégico" e passe a ser apenas "uma maneira de destruir reputações", por meio da "disseminação de ódio na sociedade". E "esse cuidado no âmbito virtual" torna-se extremamente importante, especialmente "em um momento de escalada do autoritarismo na sociedade contemporânea", tendente a "ofuscar debates sociais importantes e normalizar um ambiente de constante vigilância".17
Numa perspectiva eminentemente jurídica, a donatária não cometeu qualquer ilícito, tendo apenas exercido o Direito de não ser obrigada a fazer qualquer procedimento cirúrgico, dando destinação ao seu patrimônio com independência, pois os bens doados, com a tradição, passaram a compor o seu acervo patrimonial, não sendo dado às pessoas donatárias qualquer intervenção.
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1. BARBOSA, Otávio Luís; GUIMARÃES, Patrícia Specimille. A internet nunca esquece: Consequências da "Cultura do Cancelamento" no debate público. Revista do PET-Economia/Ufes, Vitória, ES, v. 2, p. 13-17, dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 2021. p. 13-14.
2. TERRA, Aline de Miranda Valverde. Notas sobre o crowdfunding no direito brasileiro. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 13, n. 3, p. 1134-1160, dez. 2018. ISSN 1981-3694. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 2021. Disponível aqui. p. 1138.
3. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. - 19. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 414.
4. RIZZARDO, op. cit., p. 419.
5. RIZZARDO, op. cit., p. 405-406.
6. Op. Cit. p. 419.
7. ALVES, 1917, p. 797 apud RIZZARDO, op. cit., p. 408.
8. RIZZARDO, op. cit., p. 405.
9. RIZZARDO, op. cit., p. 407.
10. DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. - 13. ed. rev. aum. e atual. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de lei 276/2007. - São Paulo: Saraiva, 2008. p. 428.
11. RIZZARDO, op. cit., p. 418.
12. TERRA, op. cit., p. 1138.
13. TERRA, op. cit., p. 1139.
14. PINTO, Samuel Saliba Moreira. O empoderamento dos pacientes e a deliberação médica. Revista Vertentes do Direito, Palmas, TO, v. 7, 1, p. 133-162, 2020. ISSN 2359-0106. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 21. Disponivel aqui.v71. p. 159.
15. BARBOSA, Otávio Luís; GUIMARÃES, Patrícia Specimille. A internet nunca esquece: Consequências da "Cultura do Cancelamento" no debate público. Revista do PET-Economia/Ufes, Vitória, ES, v. 2, p. 13-17, dez. 20. Disponível aqui.. Acesso em: 23 abr. 21. p. 15.
16. BARBOSA; GUIMARÃES, op. cit., p. 16.
17. BARBOSA; GUIMARÃES, op. cit., p. 16-17.
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BARBOSA, Otávio Luís; GUIMARÃES, Patrícia Specimille. A internet nunca esquece: Consequências da "Cultura do Cancelamento" no debate público. Revista do PET-Economia/Ufes, Vitória, ES, v. 2, p. 13-17, dez. 20. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 21.
BRASIL. lei 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 21.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. - 13. ed. rev. aum. e atual. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de lei 276/07. - São Paulo: Saraiva, 2008.
PINTO, Samuel Saliba Moreira. O empoderamento dos pacientes e a deliberação médica. Revista Vertentes do Direito, Palmas, TO, v. 7, 1, p. 133-162, 2020. ISSN 2359-0106. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 21. Disponível aqui.
RIZZARDO, Arnaldo. Contrato. - 19. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 21.
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Notas sobre o crowdfunding no direito brasileiro. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 13, n. 3, p. 1134-1160, dez. 2018. ISSN 1981-3694. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 21. Disponível aqui.