A corrida pela vacina e a responsabilização de gestores públicos
Breves notas sobre a responsabilização de gestores públicos pela aquisição de vacinas, medicamentos sem eficácia comprovada e o grau de tolerabilidade jurídica de suas condutas.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Atualizado às 17:25
A reportagem publicada pelo jornal Estadão no início do mês - que dá conta do mercado paralelo de oferta de vacinas durante a pandemia - nos remete ao questionamento que este breve ensaio se propõe a responder: quais parâmetros devem ser observados para responsabilização de gestores públicos durante a pandemia?
Segundo a citada reportagem, 90% dos municípios do estado de Santa Catarina tentaram adquirir a vacina denominada Sputnik V, de uma empresa búlgara, por um valor inferior àquele praticado pelo Governo Federal. A vacina, no entanto, não possuía registro da ANVISA à época das negociações; e a empresa búlgara não tinha aval do laboratório russo responsável pelo respectivo imunizante.
É sabido que os gastos públicos no combate à pandemia estão sendo cuidadosamente analisados pelos órgãos de controle, e o futuro ainda se apresenta com uma gama de possibilidades jurídicas. No dia 15.4.21, por exemplo, o juízo de primeiro grau do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decretou cautelarmente o bloqueio de bens, no valor de R$ 76.413,70, de um prefeito que furou a fila da vacinação, por entender que ele havia incorrido na prática de improbidade administrativa por violação aos princípios (art. 11 da lei 8.429/92).
As situações que serão analisadas por este ensaio, por suas vezes, sujeitam os gestores à responsabilização civil, penal e administrativa. Estudaremos apenas a última. São as situações de: i) aquisição de vacinas; e ii) aquisição de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da covid-19.
Apesar de a União Federal estar capitaneando o processo de aquisição de vacinas, os municípios continuam negociando aquisições paralelas - e, por vezes, clandestinas, conforme noticiado pela reportagem citada. Quanto à aquisição de medicamentos, não faltam notícias sobre a compra, por vezes amparada em leis municipais, de coquetéis médicos comprovadamente ineficazes no tratamento da doença que pretendem combater.
Sabe-se que, após a alteração na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) pela lei 13.655/18, os gestores públicos passaram a responder pelos seus atos em caso de dolo ou erro grosseiro (art. 28). A análise sobre regularidade das condutas, ainda, deve ser precedida da consideração de circunstâncias práticas impostas, limites ou condições a ação do agente (art. 22, parágrafo único), bem como dos obstáculos, das dificuldades reais do gestor e das exigências das políticas públicas ao cargo dos gestores (art. 22, caput).
Pedro de Hollanda Dionísio, em obra intitulada "O direito ao erro do Administrador Público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros", propõe uma metodologia de análise para operacionalizar o sistema de responsabilização administrativa instituído pela LINDB. Segundo o autor, há quatro parâmetros para aferição da tolerabilidade jurídica dos erros cometidos pelos administradores públicos, quais sejam: i) diligência do gestor; ii) exigências técnicas do cargo ocupado; iii) nível de incerteza fática e jurídica envolvidas na análise da decisão; iv) o grau de aderência da decisão às informações reunidas.1
Ambas as situações analisadas podem ser consideradas como i) urgentes - o que, em princípio, reduz o nível de diligência envolvido na tomada de decisão;2 e, por outro lado, ii) relevantes - situação que aumenta o nível de diligência exigido.3
A análise sobre o nível de diligência dos gestores, ainda, passa pela consideração sobre a existência de obstáculos materiais à obtenção de informações relevantes para decisão.4
Neste caso, considerando a relevância da decisão, que, se equivocada, poderá resultada na morte de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, a tolerabilidade dos erros cometidos, a nosso ver, demanda que o gestor aja com elevado nível de diligência.
Além disso, as únicas situações urgentes que possibilitam o aumento quanto ao grau de tolerabilidade jurídica ao erro do gestor são aquelas incertas e imprevisíveis. Isto porque, como anota Pedro de Hollanda Dionísio, muitas vezes as urgências são "fabricadas", pois decorrem de uma falta de planejamento culposa ou dolosa dos gestores.5
Por sua vez, o significativo volume de notícias falsas sobre o tema dos tratamentos e vacinas - oriundo do polarizado processo de politização havido sobre o tema - deve ser considerado como um "obstáculo à obtenção de informações", aumentando a "incerteza fática" sobre o tema.
No entanto, novamente prepondera o requisito da relevância da decisão - pois, frisa-se, poderá resultar em inúmeras mortes, se equivocada -, impondo-se a necessidade de pesquisa sobre a cientificidade das informações que embasarão a tomada de decisões dos gestores. A Medicina Baseada em Evidências (BEM)6 deve preponderar, nestes casos, por exigência do art. 3º, §1º da lei 13.979/207 e do art. 20 da LINDB.8
A consideração das exigências dos cargos ocupados, por seu turno, perpassa pela análise da participação das secretarias e órgãos especializados no processo de aquisição. Isto implica que, caso um gestor ignore um parecer técnico ou jurídico sobre a questão, deve fazê-lo motivadamente, sob pena de redução da tolerabilidade jurídica de suas decisões.9
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), quando do julgamento do Acórdão 338/21, multou pessoalmente um prefeito e a sua secretária municipal de saúde por valores gastos com o vulgo "tratamento precoce", inscrevendo esta última no rol de gestores com contas irregulares, justamente em razão da comprovada ineficácia do medicamento para enfrentamento da covid-19.
Na aquisição de vacinas, por exemplo, caso os gestores as adquirissem na circunstância denunciada pelo Estadão na matéria citada no início do artigo - ou seja, se adquirissem as vacinas sem registro da ANVISA e de revendedor não credenciado - poderiam responder por ato de improbidade administrativa culposo por violação aos princípios da administração.
Isto porque, a ausência de verificação quanto ao credenciamento da vacina adquirida e do revendedor com o qual se está negociando nos órgãos reguladores competentes representa equívoco que pode ser evitado por pessoa com diligência abaixo do normal, considerando que basta uma pesquisa simples para evitá-lo.
Distodecorre que tal situação se enquadra no conceito de erro grosseiro,estabelecido pelo Tribunal de Contas da União (TCU),quando do julgamento do Acórdão 2.391/18, possibilitando a responsabilização pessoal ao gestor público que lhe deu causa.
Em um entendimento mais elastecido, ao qual não nos filiamos, pode-se enquadrar a conduta descrita acima como ato de improbidade administrativa por lesão ao erário (art. 10 da lei 8.429/92), uma vez que por omissão ou ação culposa se adquiriu um produto que não poderá ser utilizado para o fim pretendido, em razão da ausência de autorização exigida dos órgãos competentes.
É inegável (ao menos para aqueles que raciocinam) que a atual situação sanitária do país é gravíssima. Após mais de um ano de pandemia, não há como alegar "urgência da situação" para justificar atropelos e equívocos. A atuação do poder público, neste caso, não pode se dar de maneira irresponsável e inconsequente, pois o que está em jogo é a vida da população.
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1 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 116.
2 "[Q]uanto mais imediata é a solução requisitada da Administração Pública, menor é o nível de diligência a ser exigido do gestor no caso concreto. (...)". DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 134-135.
3 "[Q]uanto maior a relevância da escolha a ser feita pelo administrador, maior também deve ser o nível de diligência dele exigido e, portanto, menor o espaço de tolerância a erros". DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 138.
4 [A] existência de obstáculos materiais à obtenção de informações relevantes tem o condão de reduzir o grau de diligência exigido do gestor e, por consequência, ampliar o espaço de tolerância ao cometimento de equívocos decisórios". DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 141.
5 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 136.
6 LOPES, Antônio A. Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 46, n. 3, p. 285-288, 2000.
7 Art. 3º (...) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
8 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
9 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 152.
Pablo Ademir de Souza
Advogado. Mestrando em Direito do Estado pela UFPR. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Pesquisador do Núcleo de Investigação Constitucionais (NINC/UFPR).