O credor fiscal pode pedir a convolação da recuperação judicial em falência em razão de esvaziamento patrimonial decorrente de alienação de bens e direitos?
Se o credor fiscal deve ser intimado sobre a alienação dos bens da recuperanda para poder se manifestar.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Atualizado às 12:22
Diversos são os juristas que referiam e alertavam, desde a época de tramitação do projeto, ora convertido na lei 14.112/20, que o credor fiscal agora poderia pedir falência de devedores em recuperação judicial "quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas" (LREF1, art. 73, VI). Na nova Lei foi definido que "considera-se substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade" (LREF, art. 73, §3º)2.
Apesar de reiteradas menções ao risco de que o credor fiscal venha a se legitimar para pedir a convolação da recuperação judicial em falência por esvaziamento patrimonial, com possíveis efeitos nocivos aos adquirentes, nos casos de alienação de bens e direitos3, que passam a enfrentar potencialmente maior instabilidade, não parece que realmente haja tal legitimidade, como regra, ao credor fiscal.
A hipótese de convolação da recuperação judicial em falência por esvaziamento patrimonial não trata de casos de fraudes praticadas à margem do Judiciário, como a transferência oculta de bens. Pelo contrário, as diversas referências legislativas indicam que a essência de preocupação está na alienação ou oneração patrimonial realizada mediante autorização judicial ou decorrente de plano de recuperação judicial devidamente aprovado pelos credores. Neste sentido: (a) o art. 60-A trata da alienação de unidade produtiva isolada e ressalva no parágrafo único que não está afastada a hipótese de convolação em falência por esvaziamento patrimonial; (b) o art. 66, caput, prevê a possibilidade de alienação patrimonial de devedores em recuperação judicial, mas ressalva no §4º do mesmo artigo que "não afasta a incidência" da hipótese de esvaziamento patrimonial; (c) o art. 73, §2º trata sobre efeitos dos atos e a necessidade de juiz determinar o bloqueio do produto de eventuais alienações, com devolução dos valores já distribuídos.
A hipótese versada de convolação da recuperação judicial em falência diz respeito a alienações ou onerações ocorridas judicialmente4 ou com expressa previsão em plano de recuperação judicial, observado que seja evidente o esvaziamento na forma §3º do art. 73 da LREF5. É essencial que ocorra autorização judicial ou pelos credores porque o devedor está proibido de alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo não circulante, após a distribuição do pedido de recuperação judicial, sem autorização expressa do juízo recuperacional ou na forma constante em plano de recuperação judicial aprovado (LREF, art. 66). Em qualquer dos casos, deverá ser intimado o credor fazendário previamente à alienação ou oneração do bem, inclusive se decorrente de deliberação dos credores (LREF, art. 142, §§ 3º-B e 7º). Não se está a tratar de alienação fraudulenta de bens que não tenha passado por decisão judicial ou deliberação assemblear, as quais também possuem regras específicas que permitem o afastamento do Administrador da devedora (LREF, art. 64, II e IV, c), bem como o reconhecimento de prática de ato de falência a justificar a quebra do devedor (LREF, art. 94, III, b c/c 73, §1º).
A redação vigente antes da lei 14.112/20 previa que "em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público será intimado pessoalmente, sob pena de nulidade" (LREF, art. 142, §7º), sem prever a intimação das Fazendas Públicas. Neste ponto, a doutrina se inclinou por esclarecer que o Ministério Público deveria ser cientificado sobre a decisão que determinou a realização de alienação de ativos para, querendo, acompanhar o certame ou tomar outras cautelas de resguardo e garantia aos credores, bem como viabilizar a apresentação da impugnação prevista no art. 143 da LREF6. Embora a previsão seja de intimação sobre a decisão que determinar o ato de alienação de ativos, parte da doutrina passou a sustentar que seria melhor prática permitir a prévia oitiva do Ministério Público, antes de qualquer decisão judicial7.
A nova redação mantém a sistemática, mas passa a referir a expressa inclusão das Fazendas Públicas entre as intimadas: "Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, nos termos da legislação vigente e respeitadas as respectivas prerrogativas funcionais, sob pena de nulidade". Mantém a pena de nulidade se a alienação não contar com a ciência prévia do representante do Ministério Público e das Fazendas Públicas8.
A regra, portanto, passa a ser expressa no sentido de que o credor fiscal deve ser intimado previamente, juntamente com o Ministério Público, em qualquer modalidade de alienação, sob pena de nulidade (LREF, art. 142, §7º), de forma que estão habilitados, inclusive, a apresentar impugnação no prazo de 48 horas após a arrematação (LREF, art. 143). Ademais, é aplicável expressamente em casos de alienação de unidades produtivas isoladas em recuperações judiciais e extrajudiciais (LREF, arts. 60 e 166).
Anota-se que a sistemática anterior à lei 14.112/20 permitia conclusão diversa, porquanto o art. 142 realmente se aplicava apenas a feitos falimentares9, ressalvada a alienação de unidade produtiva isolada que possuía ressalva expressa10. Na nova sistemática, além das menções ao art. 142 da LREF para os casos de alienação de unidades produtivas isoladas em recuperação judiciais (LREF, art. 60) e extrajudiciais (LREF, art. 166), o próprio art. 142 passa a referir, direta ou indiretamente, sobre processos recuperatórios nos incisos IV e V e no parágrafo 3º-B, a demonstrar uma ampla alteração de sistemática, aplicando-se o art. 142 para qualquer hipótese de alienação de bens e direitos em feitos recuperatórios e falenciais.
Se o credor fiscal deve ser intimado sobre a alienação dos bens da recuperanda para poder se manifestar, duas hipóteses são possíveis: (a) silencia e deixa de arguir qualquer matéria de seu interesse, inclusive possível esvaziamento patrimonial; (b) provoca manifestação sobre qualquer matéria de seu interesse, inclusive cabendo-lhe apontar possível esvaziamento patrimonial, que pode ou não ser acolhido pelo Judiciário. O silêncio sobre o ponto ou a provocação sem acolhimento pelo Judiciário, mesmo que equivocadamente, geram a oportunidade de preclusão da matéria, que não poderá ser novamente arguida pelo credor fiscal.
A preclusão mencionada ocorreria em prejuízo do credor fiscal, porquanto possui a prerrogativa de receber prévia intimação e, portanto, não poderia alegar desconhecimento sobre a permissão de alienação de determinado bem ou direito antes da realização do certame.
Não há como, validamente, ocorrer a alienação de bem ou direito sem a necessidade de ciência do credor fazendário em tempo hábil para tomar medidas cabíveis para impedir a medida, observando-se que a ausência de prévia intimação do credor fiscal levaria à nulidade da própria alienação (LREF, art. 142, §7º).
Ocorre preclusão em relação ao credor fazendário, que não poderá alegar, após a alienação do bem ou direito, que houve esvaziamento patrimonial como causa da convolação da recuperação judicial em falência. No entanto não há impedimento que outros tantos credores, igualmente não sujeitos ao procedimento recuperatório, possam postular validamente a hipótese de esvaziamento patrimonial, se for o caso, a depender de análise sobre prévia ciência expressa ou ficta11.
Frente aos elementos analisados, conclui-se que o credor fazendário não poderá postular a convolação da recuperação judicial em falência em razão da hipótese de esvaziamento patrimonial, nos casos de alienação de bens e direitos, em que tiver sido previamente intimado e que tenha silenciado ou que sua provocação não tenha sido acolhida pelo Judiciário, face à preclusão da matéria.
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1 Lei 11.101/05.
2 Existe um problema conceitual intrínseco, porquanto a simples alienação ou oneração de bens ou direitos em relações comutativas não tem o condão de, por si só, gerar esvaziamento patrimonial. A troca de bem por dinheiro não reduz o patrimônio da devedora. O problema está em que é mais volátil o patrimônio que esteja em forma de moeda, porquanto admitirá mais fácil dissipação. Daí que a expressão não possui idêntica acepção nos âmbitos econômico e jurídico.
3 Há outras hipóteses, como a oneração de bens ou direitos do ativo não circulante, que podem ser objeto de decisão judicial (LREF, art. 69-A), bem como gerar potencial esvaziamento patrimonial. Sobre estes casos, os apontamentos mencionados neste texto receberiam contorno diverso, porquanto submetido a outras regras. No sentido de que oneração de bens e direitos é causa possível para alegar esvaziamento patrimonial: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 399-400; COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba: Juruá, 2021. p. 206.
4 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 399-400.
5 COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba: Juruá, 2021. p. 206.
6 BERNARDI, Ricardo in SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 497; SZTAJN, Rachel in TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 456; SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luís Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência. 3. ed. São Paulo: Almedina, 2018. p. 931-932; DINIZ, Gustavo Saad. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Atlas, 2019. p. 840.
7 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação de empresas. vol. 3. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 526.
8 Diga-se que não faria nenhum sentido que a pena de nulidade da alienação ocorresse para o caso de não serem intimados os representantes do Ministério Público e das Fazendas Públicas após a realização do ato, porquanto poderia ser realizada a intimação a qualquer tempo e não geraria nenhum efeito prático.
9 STJ, 3ª Turma, REsp 1.819.057/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12.3.20: "(...) A Lei de Falência e Recuperação de Empresas prevê, em seu art. 66, a possibilidade de alienação de bens integrantes do ativo permanente do devedor. Para tanto, o juiz responsável pela condução do processo deve autorizar a venda, caso reconheça a existência de evidente utilidade na adoção de tal medida. Não há exigência legal de qualquer formalidade específica para avaliação dos ativos a serem alienados, incumbindo ao juiz verificar as circunstâncias específicas de cada caso e adotar as providências que entender cabíveis para alcançar o melhor resultado, tanto para a empresa quanto para os credores e demais interessados. Os dispositivos apontados como violados pela recorrente não guardam relação com a hipótese fática dos autos: o art. 142 da LFRE cuida de matéria afeta, exclusivamente, a processos de falência, regulando de que forma será efetuada a realização do ativo da sociedade falida; o art. 60 do mesmo diploma legal possui como hipótese de incidência a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor; e o art. 870 do CPC/15 trata, tão somente, de enunciar os sujeitos encarregados pela determinação do preço de bens penhorados em processos de execução por quantia certa. A lei 11.101/05 contém mecanismos de fiscalização e controle dos negócios praticados pelo devedor, a fim de que não sejam frustrados os interesses dos credores. Uma vez deferido o processamento da recuperação judicial, as atividades da sociedade passam a ser rigorosamente fiscalizadas pelo administrador judicial e, quando houver, pelo comitê de credores, sendo certo que todos eles, juntamente com o devedor, respondem pela prática de atos incompatíveis com o bom andamento da ação recuperacional (...)".
10 STJ, 3ª Turma, REsp 1.689.187/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 5.5.20: "(...) Cinge-se a controvérsia a definir se a alienação de ativos na forma de unidade produtiva isolada pode se dar por meio diverso do previsto nos artigos 60 e 142 da lei 11.101/05. A alienação de unidades produtivas isoladas prevista em plano de recuperação judicial aprovado deve, em regra, se dar na forma de alienação por hasta pública, conforme o disposto nos artigos 60 e 142 da lei 11.101/05. A adoção de outras modalidades de alienação, na forma do artigo 145 da lei 11.101/05, só pode ser admitida em situações excepcionais, que devem estar explicitamente justificadas na proposta apresentadas aos credores. Nessas hipóteses, as condições do negócio devem estar minuciosamente descritas no plano de recuperação judicial que deve ter votação destacada deste ponto, ser aprovado por maioria substancial dos credores e homologado pelo juiz. No caso dos autos, a venda direta da unidade produtiva isolada foi devidamente justificada, tendo sido obedecidos os demais requisitos que autorizam o afastamento da alienação por hasta pública (...)".
11 Tais fatores sofrem variação, conforme a hipótese específica.
André Fernandes Estevez
Diretor executivo da Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF). Professor adjunto de Direito Empresarial na PUCRS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Sócio em Estevez Advogados.
Diego Fernandes Estevez
Mestre em Direito pela PUC/RS. Sócio do escritório Estevez Advogados.
Caroline Pastro Klóss
Mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Sócia do escritório Estevez Advogados.