O esfacelamento das relações do trabalho e do emprego
O impacto nas finanças corporativas. Devemos pensar nisso?
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Atualizado às 12:22
Muitas discussões sobre as novas relações de trabalho e emprego têm vindo à luz, principalmente em função do surgimento de modelos de negócios decorrentes de tecnologias disruptivas, e, também, em razão da mudança de perfil e postura dos trabalhadores em geral (hábitos, objetivos, estilo de vida, realização profissional, entre outros aspectos).
Entretanto, muitos ainda não se deram conta de que está havendo uma grande transformação, para não dizer disrupção, das relações de trabalho e não do emprego propriamente dito.
Para tanto, é fundamental para empreendedores, executivos, líderes e gestores das relações trabalhistas entenderem e compreenderem a diferença (significativa) entre relação de trabalho e relação de emprego.
Assim, longe do que o título desse artigo possa indicar, não estamos diante de um esfacelamento do sistema legal que rege as relações de emprego, mas da legitimação do direito de trabalho, ou seja, o respeito ao "direito constitucional de liberdade para que se concretize a 'mínima interferência na liberdade econômica constitucionalmente assegurada e revestir-se do grau de certeza para assegurar o equilíbrio nas relações econômicas e empresariais' nas palavras da ministra do STF Cármen Lúcia, no voto proferido no julgamento da ADC 66.
Com efeito, as relações de trabalho e emprego têm natureza jurídica distinta e regramento legal totalmente diversos entre si, porém previstos e assegurados na Constituição Federal como cláusulas pétreas - verdadeiros direitos de qualquer cidadão trabalhador.
Dessa forma, a proteção do trabalho deve ser conjugada - para dar concretude à proteção, também constitucionais, à liberdade econômica e aos valores da livre iniciativa.
Portanto, a realidade é que estamos diante de mudanças - da maneira de pensar e encarar as novas formas do trabalho humano, que vão além daquele modelo tradicional celetista.
A bem da verdade, não há nenhum dispositivo em nosso ordenamento jurídico que determine a presunção de vínculo de emprego sempre que se alegue existir trabalho a favor de outrem. Essa presunção adveio de uma cultura que sempre viu a relação de emprego como regra, decorrente também da cultura de que esse modelo é o ideal a ser perseguido para a melhor proteção dos trabalhadores. (Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT/RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP e presidente da ABMT - Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho).
É o que estabelecem a Constituição Federal e a lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, verbis:
TÍTULO II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
CAPÍTULO I - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
CAPÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal.
§ 1º O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.
§ 2º Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existências dignas, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Dessa forma, a relação de emprego é uma subespécie da relação de trabalho, e existe legalmente juntamente com outras formas de trabalho humano, como os autônomos, o cooperativado, o rural, o avulso, o intermitente.
O que muda, então, com o recente julgamento do STF? Primeiro, a constatação de que o Supremo está à frente da percepção majoritária da área trabalhista no que concerne ao desenvolvimento das relações de trabalho. A mais alta corte do país já deixou claro, mais de uma vez, que o Direito do Trabalho precisa se comunicar com a ideia de liberdade na atividade econômica, seja pela análise feita quando do julgamento acerca da terceirização na atividade-fim, o que inclusive foi citado no voto da ministra Cármen Lúcia, acima mencionado, seja pelo advento da lei 13.874/19 (Lei de Liberdade Econômica), que concretiza o valor constitucional da livre iniciativa e é de observância obrigatória na aplicação e na interpretação do Direito do Trabalho (artigo 1º, § 1º).
"Em decorrência, parece estar o Supremo Tribunal Federal pronto para aceitar novas formas de regulamentação do trabalho humano para além do modelo tradicional celetista, o que já poderia estar sendo levado em conta para o debate, por exemplo, da existência ou não de vínculo de emprego entre trabalhadores por aplicativo e as plataformas digitais. Tudo sinaliza que o STF tenderia a permitir esta nova forma de organização de uma atividade econômica, sem reconhecimento do vínculo de emprego. Vale a pena, portanto, insistir anos nesse caminhar da jurisprudência ou seria melhor construir uma alternativa viável para a proteção destes novos trabalhadores?" (Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da ABMT - Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho. Revista Consultor Jurídico, 29 de dezembro de 2020, 8h02)
De outra forma, para estabelecer o contraponto no mundo empresarial, temos a seguinte posição:
As estruturas hierárquicas funcionaram muito bem em um período de mudanças mais lentas. Por outro lado, criaram fragilidades como ascendência profissional significar mais poder, controles rígidos e pouca flexibilidade para mudanças. Tendem, naturalmente, a ser reativas às mudanças, pois qualquer mudança afeta a estrutura de poder tão arduamente conquistada.
O modelo hierárquico foi criado para ser estático. As pessoas trabalham dentro de um contexto "que as coisas foram feitas assim e deverão continuar sendo assim". É uma estrutura de comando e controle, onde o comando está nos níveis gerenciais e a execução nos níveis mais baixos, que apenas cumprem tarefas, sem maiores autonomias. Os níveis intermediários de gerência funcionam como "buffers" recebendo ordens e as enviando para baixo, filtrando os problemas que surgem embaixo, repassando apenas alguns para a alta administração. (Cezar Taurion é VP de inovação da Cia Técnica Consulting e partner/head de digital transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA, é autor de nove livros que abordam assuntos como transformação digital, inovação, big data e tecnologias emergentes. E professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.)
Conclusão
Assim, o que se coloca é o seguinte dilema: devemos reconhecer que os trabalhadores têm uma nova forma de trabalho, ou devem ser mantidos dentro das estruturas corporativas antigas e ultrapassadas?
Em interessante artigo, o professor Jordi Canais, presidente do IESE Center for Corporate Governance, da Escola de Negócios de Navarra - Barcelona, ao discorrer sobre as novas atribuições dos conselhos de administração, reconhece que vários temas devem ser considerados na análise de riscos das empresas, porém, com vários fundamentos, sustenta que devemos respeitar a nova força de trabalho.
E recomenda aos C-levels das organizações os seguintes questionamentos:
Experienced CEOs point out that the fight against discrimination is necessary in many countries, but other relevant questions are: Why do people want to work in this company? How does this company attract good professionals? Why do good professionals stay in the company? Why do some professionals leave the company? What capabilities and attitudes will the company need over the next 10 years? Is it hiring people with those capabilities? What is the quality of the professional context that a company offers its own people?
E, ao final de artigo, faz uma proposição interessante, criando um novo anacronismo, para contrapor ao paradigma da ESG: ESG shoud be replaced by PESG.
Pense nisso.
Ronaldo Corrêa Martins
Fundador e CEO do escritório Ronaldo Martins & Advogados.