Três cidades e uma indústria de ações coroada de louros na corte especial
O título daria um bom conto. Um conto, é claro, de folclore tropical. Não será, no entanto, um conto de Monteiro Lobato o que se passa a narrar, mas uma aventura (judicial), sem pé, nem cabeça, que deu certo e fez jurisprudência (nacional).
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Atualizado às 14:40
"(...) Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!... 'Puxavante! que filha-duma-... de gostosura, gente!' exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa, o herói gostou gostou e adormeceu (...)". Mário de Andrade1
"(...) For in thinking of himself as judge rather than as lawgiver or leader, he will come to see that the essential question for him is not what he personally may think is the best way but what is the fairest decision ... If, on the other hand, he fancies himself the contriver of the human destiny and its master, he will have no criterion for his decisions: he will be lost in confused subjective speculation as to which of the parties asking his support is more likely to shape the world according to his haphazard notions of what that shape ought to be (.) while ideals are illimitable, men are only men. And when these men, breathing the incense burned before their altars, are tempted to regard themselves as the directors of the human destiny, they need to be reminded of the poet who, after a night in town, wandered into the zoo thinking rather well of himself as the last product of evolution until he became sober enough to remember that he was, after all, 'a little man in trousers, slightly jagged'(...)" Walter Lippmann2
O título daria um bom conto. Um conto, é claro, de folclore tropical. Macunaíma no papel de (anti) herói - afinal, somos todos seus herdeiros. Abra-se parêntese: é imenso o poder da literatura; e é incrível como não fomos capazes de criar nada melhor até hoje. Fecha-se parêntese. Não será, no entanto, um conto de Monteiro Lobato o que se passa a narrar, mas uma aventura (judicial), sem pé, nem cabeça, que deu certo e fez jurisprudência (nacional). Coisas do Brasil.
A locação do relato passa-se na Corte Especial do STJ. Eram cinco embargos de divergência3 - que chegavam em conta-gotas àquele colegiado4; e eram duas teses em confronto - a isso, afinal, e para nada além disso, presta-se tal recurso: definir, dentre duas, uma tese. O que estava em causa era o art. 42 do CDC, que trata de uma pena civil. E o que carecia de uniformização era: para que essa pena incida, é necessário (a) dolo do fornecedor/prestador de serviços, ou (b) basta mera culpa? A 2ª seção do STJ aplica(va) a tese (a); enquanto sua 1ª seção, a tese (b).
Após mais de cinco anos de julgamento, e depois de mais de 30 anos de edição do CDC, a Corte Especial decidiu que não é nem (a) nem (b). Ela saiu-se com (quer dizer, por) uma terceira via criativa, um tertius genus - quando tertius genus non datur. E assentou não apenas uma nova leitura do artigo, jamais empreendida antes por tribunal algum, nem pelo STJ, mas uma nova redação, para uma nova norma, com um novo sentido, e com a introdução de elemento inexistente até então: o da boa-fé objetiva, o frenético mantra acadêmico. Haverá, então, doravante, segundo a nova lei fixada na tábua, devolução em dobro quando a conduta do fornecedor/prestador for contrária à boa-fé objetiva. A questão, portanto, não foi fechada, ficou em cláusula aberta. Resultado: a sociedade fica ainda mais confusa e insegura do que estava antes. Sob o prisma jurídico, eis o diagnóstico:
a) Trata-se de genuíno julgamento surpresa, empreendido em sede de embargos de divergência, com solução diversa das soluções possíveis à luz dos entendimentos em confronto e que disputavam primazia na Corte; decidiu-se, enfim, com base em (i) fundamento jamais alegado, (ii) não objeto da impugnação recursal, e (iii) que só veio à tona no meio do julgamento, numa solução de improviso, qual um deus ex machina;
b) O STJ inequivocamente agiu como legislador, porque transfigurou e reescreveu a norma, e não apenas a interpretou: o que era subjetivo (dolo ou culpa) - trata-se, afinal, de uma pena - passa a ser objetivo; o antigo entendimento de que a boa-fé é presumida, e a má-fé deve ser provada, dá lugar a uma pena civil a ser aplicada de modo objetivo; o que, enfim, o legislador nem sequer havia imaginado, muito menos escrito, e que tribunal algum jamais aplicou, agora é regra ex novo;
c) Baralhou, com isso, pena com responsabilidade, e igualou institutos ontologicamente inigualáveis; a objetivação da responsabilidade de indenizar (CF, art. 37, § 6º) passa a ser estendida agora para a pena cível prevista no CDC; a dobra prevista no seu (antigo) art. 42 encerra(va) uma pena civil, não uma modalidade de indenização; e só indenização comporta objetivação; pena, não; toda pena é subjetiva, e a existência de elementos anímicos deve ser provada - isso é mandamento constitucional; agora, ao objetivar-se a pena, subjetiva-se, também, o juízo, com amplo espaço aberto de discricionariedade conferido doravante aos julgadores dos casos futuros para punir ou não empresários, conforme lhe parecer mais adequada sua leitura da demanda e sua visão pessoal de mundo - também por aqui, portanto, viverá mais viva do que nunca a décima primeira tese de Feuerbach;
d) A nova norma, em modulação seletiva, direcionada e injustificável à luz de todas as circunstâncias, valerá pro futuro para todos os setores, menos para o de telefonia; para este a nova norma - jamais aplicada por ninguém, por tribunal nenhum, nem, insista-se, pelo próprio STJ, notadamente por suas duas Seções em confronto - tem efeitos retroativos e surpreendentes, com sabor de banana - banana bolt.
Se eu sou eu, quer dizer, se nós somos nós e nossas circunstâncias, toda demanda é ela e as suas. E as do caso eram flagrantemente monotônicas. De fato, se os recursos, na hipótese deste relato, aportaram à Corte Especial em conta-gotas, devagarinho, com pés de pombo, inofensivamente, e sem chamar a atenção, traziam, no entanto, consigo características explosivas que os uniam: elementos que, vistos isoladamente, em cada caso, poderiam passar despercebidos; avaliados no todo, no entanto, eles gritam em uníssono, ao descortinarem um universo muito mais vasto, de mais de 600 demandas só no STJ, com o mesmo enredo. E quando se abre a cortina, o que se vê é o seguinte:
(a) Todas as demandas são originárias das mesmas cidades no interior do Rio Grande do Sul (Santo Ângelo, Santa Rosa e Santo Cristo), percorríveis, todas, em menos de uma hora, em linha reta, pelos 75km de estrada que as une; todas as ações apresentam a mesma história, o mesmo texto, a mesma redação: o consumidor valeu-se do serviço prestado, e dele fruiu por anos;
(b) Só após muitos e muitos anos de regular uso do serviço e pagamento das faturas (4, 5, 11 anos depois) resolveu propor uma demanda; por anos a fio, enfim, usaram à vontade o serviço, e por ele pagaram sem qualquer contestação. Depois de muito tempo, quando o dever de guarda das ligações em call center, por onde eram feitas as contratações, encerrou-se, eles resolveram, enfim, ingressar estrategicamente com demandas em série, nas quais alegaram que aquele serviço que utilizaram não teria sido contratado;
(c) E aqui vem a aldrabice: justamente porque todas as demandas foram propostas muitos anos depois do alegado ilícito, a empresa não tinha como apresentar a contraprova da efetiva contratação. Afinal, o prazo regulamentar para guarda de tais dados já havia passado. Pelas Resoluções da ANATEL, o prazo de arquivo de áudios do call center era de um ano, hoje é de 6 meses. Após esse período a agência entende não ser razoável que haja alegação de serviço prestado sem contratação - e o mínimo que o administrado pode fazer, ainda mais entre nós, onde há tanta intervenção do Estado na economia, é confiar na regulação editada pelo Poder Público.
(d) Em todas essas ações o cenário fático duvidoso e inverossímil é o mesmo, sem alteração: com a inversão do ônus da prova, e sem que a operadora tivesse conseguido, devido ao longo período transcorrido, comprovar que foram os próprios consumidores quem pediram os serviços cobrados, foi imposta a condenação de ressarcimento, mas sem pagamento da dobra pelo Tribunal gaúcho. Partiam, todos deste ponto, os recursos interpostos pelos consumidores ao Superior Tribunal de Justiça, que seriam rechaçados pela Segunda Seção mas, ao final, acolhidos pela Corte Especial.
Não bastava, no entanto, ter agido como um lawgiver. A Corte Especial também não abriu a cortina do(s) caso(s), e não avaliou suas circunstâncias (patentes). Ficou no mundo rarefeito das ideias; aferiu a essência do ser ... e fez poesia social. Editou, então, nova regra, a que lhe pareceu melhor, em substituição ao legislador: nem (a), nem (b): (c). O acórdão, com mais de 150 páginas, reveste-se de sofisticada articulação teórica, calcada nas mais recentes variantes acadêmicas5. Só não viu a indústria de ações de três cidades que estava ali bem plantada, com ramos já frondosos, à sua frente. Uma indústria explícita e setorizada, nascida de uma retórica de nonsense, quase pueril, que não vingou nas instâncias ordinárias. Quem, afinal, pode dizer, com seriedade, que não terá contratado algo que usou e por que pagou regularmente, sem questionar, por mais de cinco, seis, onze anos? Quem faz isso? Nem no mundo de Alice! Nem no mundo de Emília! Só no mundo de Macunaíma!
Do ponto de vista sócio-político, não há nada de novo no front, ou que a essa altura já nos espante tanto assim - embora ainda deveras nos espantemos. As inferências desse precedente-revolução são as mesmas extraíveis de tantos outros que vêm a público toda semana, e com as quais há tanto tempo nos defrontamos com deglutição forçada. A análise vai escalonada:
(I) Ativismo era só no início; agora já é outra coisa, ainda sem nome; será talvez acintivismo; mas tudo guarda perfeita sintonia e coerência com a lógica de sistema; é necessário, com efeito, numa tendência crescente que já vem de há muito tempo, que julgamentos sejam realizados no mundo das ideias, descolados do mundo dos fatos, daquilo que foi ou não foi, do que foi provado ou não foi provado, do que consta claramente dos autos ou do que não consta claramente dos autos, e, sobretudo, do que se coaduna com as mais elementares regras da experiência (quod plerumque fit) e do que não se coaduna com as mais elementares regras da experiência; no mundo das ideias, afinal, sai-se do mundo da realidade, isenta-se de qualquer compromisso com a concretude da vida, e refugia-se no mundo da lua ou de outros astros da galáxia; e lá em cima, do alto de sua olímpica visão panorâmica, é o ambiente propício para legislar-se e manejarem-se as coisas aqui de baixo; lá nas alturas, enfim, é o topos perfeito para direcionar-se para qualquer lugar o sentido do que se quiser imprimir ao mundo da vida;
(II) Para ir-se ao mundo das ideias e captar-se a essência platônica das coisas, é necessária, é claro, do ponto de vista metodológico, uma boa dose de mística dialética, recheada de malabarismos vernaculares e piruetas retóricas, calcadas em princípios acadêmicos de laboratório, aquecidos e reaquecidos diariamente por gerações e gerações de operadores de direito que se formam e crescem em meio a essa ideologia molenga na qual grande parte nem sequer desconfia estar inserida; muda-se, assim, banalmente, com princípios soltos, e com vacuidades pseudocientíficas, em novas versões da quadratura do círculo, o mundo da vida (o mundo da vida dos outros); e o sinal verde para a magistratura exercitar esse essencialismo livre veio, fundamentalmente, com o tema 660 do STF: de fato, se garantias fundamentais, que constituem um freio ao exercício do Poder, pouco ou nada valem entre nós; se, por assim dizer, como eles dizem, elas são reflexas, então a boa-fé objetiva e a função social do contrato valem mais do que os postulados da separação de poderes e da legalidade (para não enumerar outros tantos aqui, como o da segurança); e a se a Suprema Corte pode, tal como o faz toda semana, revirar e puxar o tapete das coisas já assentadas, por que as demais, então, se o exemplo vem de cima, não haveriam também de poder fazê-lo?;
(III) Nesse quadro, consumidor é, per se, argumento reificado, a prescindir de prova; é uma presunção iure et de iure e um imperativo categórico a priori; nesse quadro, basta ser-se e a metafísica acadêmica se encarrega automaticamente do resto; nesse quadro, a vitória, per fas uel per nefas (ou por trevas), tem de ser do CDC, nossa segunda Constituição; uma Constituição que vale mais do que a primeira, a Constituição da República; porque o CDC lava a ineficiência do Poder Público; o CDC desvia o foco da Carta de privilégios que é a CF; não temos hospital, nem estradas, nem escolas, mas ganhamos em dobro, no final do dia, por um serviço de telefonia fruído e pago por anos a fio sem reclamação; é preciso, afinal, aquietar o numérico, e o CDC cumpre bem esse papel de anestésico social; para o setor produtivo, então, boa-fé objetiva e função social do contrato; para a burocracia, direitos adquiridos cumulativos, o orgulho da nossa Weimar tupiniquim que nos condena ao atraso; e se a sociedade trabalha e não sai do lugar, não faz mal, há muitos Hegels a mostrar-nos que isso é bom e enobrece a alma; que sorte, então, a nossa sermos conduzidos por tantas luzes;
(IV) Afinal, e aqui avança-se sobre a suma das sumas, num estado judiciário, como último reduto de um estado central implacável e controlador, protagonizado, agora, pelo governo dos juízes - numa sofisticada engrenagem que faria Orwell corar de diletantismo na sua intuição distópica -, é fundamental que as coisas naveguem num céu de Dementadores, não em céu de brigadeiro; é fundamental que o que se decida numa semana já não valha mais na semana seguinte, ou no mês seguinte, ou no ano seguinte; é fundamental que as decisões flutuem ao sabor de injunções políticas de momento, ou de visões de mundo, ou de novas composições nas cortes; é fundamental que o que se decida em caráter vinculante não tenha, na verdade, tanta força vinculante assim; é fundamental, ainda, seja como for, que quem diga por último se o caso concreto efetivamente se ajusta ao precedente vinculante firmado sejam as instâncias ordinárias, ou seja, outro tribunal que não aquele que fixou a tese geral; é fundamental, também, que se possa dizer, mais de 30 anos depois da edição de uma lei (o CDC é de 1990) o que determinada norma nele contida realmente terá querido dizer desde o início, mesmo que a tese finalmente fixada jamais tenha sido debatida por nenhum tribunal antes, nem mesmo por aquele que afinal trouxe da montanha a abençoada solução iluminada (o que se deu, no caso aqui narrado, em 2021); é fundamental, então, que ninguém saiba onde pisa, ou como deve pisar, que tudo seja um mare magnum de incerteza, mas que, no entanto, todo cidadão saiba dançar mambo ou gafieira ou samba como um exímio profissional, para que possa a qualquer tempo improvisar argumentos ou sortilégios ad hoc capazes de persuadir e levar vantagem, ainda que inverossímeis; é fundamental, enfim, que, sem compromisso, se dê sempre uma no cravo e outra na ferradura, e que tudo se passe num grande ambiente de non liquet; afinal, sem (in)segurança jurídica, não há (tanta necessidade de) acesso à Justiça; sem ambiguidade nas relações, o poder dos juízes arrefeceria; e sem imprevisibilidades, como justificar-se-ia tanto intervenção estatal?
(V) Esse risco, seja como for, a correr contra o governo instalado, não se justifica, ou se apresenta, antes, como um falso risco; numa sociedade coletivista e solidária (mas qual solidariedade?), na qual é preciso combater o individualismo egoísta de um capitalismo cruel (mas qual capitalismo?) e estar atento à crescente "uberização da vida" (vide os votos proferidos no RE 1.101.937, que julgou a questão da eficácia nacional da sentença coletiva), não faltam legitimados extraordinários para, em via concentrada ou difusa, levar as questões - qualquer uma, e como lhes parecer bem, no sentido que acharem que devam ter - para que magistrados decidam; então não faltará levantadores para que estes possam cortar; o exemplo prático disso, e o mais explícito, no âmbito do STJ, é o tema 60, que diz, em outras palavras, et contra legem, que uma ação coletiva vale mais do que uma ação individual e que o indivíduo, por conseguinte, deve ceder à vontade de autores coletivos ou seletos entes extraordinários dotados de saberes transcendentais.
De retorno ao caso que daria um conto tropical, eis a moral da uva, quer dizer, da jabuticaba: coroou-se de louros na Corte Especial uma engendrada indústria de ações de três cidades. Firmou-se, então, em rede nacional, a tese da boa-fé - mirabile dictu - contra a boa-fé. Onde será que nos desandamos? O fundo, seja como for, dizia o filósofo, é sem fundo. Macunaíma levou outra no bico. Afinal, É MUITA SAÚVA, E POUCA SAÚDE (em breve, assim como o mar virará sertão e o sertão há de virar mar, a saúde suplementar virará SUS e o salve-se-quem-puder há de ser um deus-nos-acuda). Ao que se acrescenta ao brejeiro dito: é MUITA GINGA, E POUCA INFRA; MUITA ALDRABICE, E POUCA APÓLICE; MUITA ESPERTEZA, E POUCA CERTEZA. São os (atávicos) males do Brasil. Essas e outras explicam-no.
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1 ANDRADE, Mário, in "Macunaíma, o Herói sem nenhum caráter", RJ, Nova Fronteira, 2013, pp. 90 e 25.
2 LIPPMANN, Walter, in "The Good Society", New York, Routledge, 2017, pp. 285/286.
3 EARESPs nºs 622.897/RS, 676.608/RS, 600.663/RS, 1.413.542/RS e 664.888/RS.
4 Estes cinco embargos não foram os únicos casos apreciados pela Corte Especial, nem foram os primeiros. Até então julgados de forma espraiada, mas com fluxo constante de centenas de recursos interpostos pelos consumidores, a questão reclamava a necessidade de consolidação de um entendimento uniforme, entre o entendimento da Primeira e da Segunda Seção, o que acabou por justificar o julgamento em conjunto dos casos.
5 "(...) a justificabilidade do engano, a afastar a devolução em dobro, insere-se no domínio da causalidade, e não no domínio da culpabilidade, pois esta se resolve, sem apelo ao elemento volitivo, pelo prisma da boa-fé objetiva (...)".
Bruno Di Marino
Bacharel em Direito pela PUC/RJ. Mestre em Teoria Geral do Estado e Direito. Constitucional pela PUC/RJ.