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Controle de operações societárias pelo CADE e protecionismo nacional

Em primeiro lugar, criou-se, inicialmente, a ideia de que há uma contradição entre público e privado, tanto é que o liberalismo foi visto com desconfiança por muito tempo (SUNDFELD, 2014, p. 139) e ainda o é para alguns setores.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Atualizado às 10:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Brasil possui um Estado um tanto quanto protecionista. Em primeiro lugar, criou-se, inicialmente, a ideia de que há uma contradição entre público e privado, tanto é que o liberalismo foi visto com desconfiança por muito tempo (SUNDFELD, 2014, p. 139) e ainda o é para alguns setores. Nos anos 90, com o início da privatização de instituições públicas, começaram a surgir autarquias especiais, com poderes de regular, disciplinar e controlar (SILVA, 2009) os setores econômicos do país, saindo de um modelo de Estado patrimonialista para um gerencial (ADAMI, LANCIERI, PEREIRA NETO, 2014, p. 144), marcando a passagem para um Estado mais próximo ao neoliberalismo. Em segundo lugar, a LSA (lei 6404/76) foi criada a fim de contemplar um protecionismo por conter objetivos nacionalistas em si mesma (PARGENDLER, 2019, p. 24). Diante dessas características, serão analisados: (i) a forte presença do Estado nas decisões e operações societárias de empresas brasileiras através do controle do CADE e de agências reguladoras, (ii) o protecionismo nacional de companhias brasileiras frente a países estrangeiros e (iii) casos exemplificativos dos itens i e ii.

Em relação ao ponto (i), os órgãos reguladores devem ser vistos atuando dentro de um espaço regulatório "moldado pela interação entre diversos atores institucionais e stakeholders". Isto é, deve-se não só buscar compreender as normas e autonomia em abstrato, mas ver as relações com outras instituições e os limites de sua atuação (ADAMI, LANCIERI, PEREIRA NETO, 2014, p. 150). Assim sendo, para que determinadas operações societárias sejam concluídas, precisam ser analisados previamente os atos de concentração. Dependendo do setor, necessita-se de uma aprovação destes atos não só pelo CADE como também pela Agência Reguladora competente, enquanto em outros não há, como o setor alimentício. No setor de telecomunicações, por exemplo, para que um negócio jurídico societário seja concluído, é necessária a aprovação da ANATEL e do CADE¹. Já no caso de setor alimentício, o qual será abordado posteriormente no caso Perdigão/Sadia, não houve a necessidade de aprovação da fusão pela ANVISA, somente do CADE.

Sobre o CADE, em específico, havia anteriormente um problema na análise destes atos de concentração, uma vez que a lei anterior (lei 8884/94) possuía requisitos menos objetivos para que os casos que fossem levados ao Tribunal Administrativo e à sua Superintendência Geral (SG), a fim de se aprovar das operações. Com a instituição da lei 12.529/11, esses critérios passaram a ser muito mais claros, melhorando não só a questão processual, uma vez que diminuíram os números de casos anuais, como também a própria defesa do sistema concorrencial nacional, já que se criou uma maior segurança jurídica nestas análises (BECKER, BERARDO, ROSENBERG, 2015, p. 1-2). Assim, o controle passa a ser prévio. Logo, para que uma operação seja aprovada, é necessário cumprir os requisitos previstos no art. 88 desta lei. Caso contrário, há penalidade administrativa em forma de nulidade do negócio e/ou de multa (art. 88 §3º). No entanto, vê-se uma certa tendência de desobediência prévia das empresas praticando gun jumping, isto é, determinados atos que podem ser enquadrados como formas de consumação do negócio antes mesmo da aprovação do ente da Administração Pública. Percebendo isto, criou-se um Guia para evidenciar possíveis condutas ilícitas relacionadas à prática, a fim de que os grupos econômicos as evitassem (BECKER, BERARDO, ROSENBERG, 2015, p. 16).

Diante de tal cenário, é possível questionar essa ideia de protecionismo do Estado. Ainda que previstas multas pesadas na própria lei em caso de "queimada de largada", vê-se que há um certo desrespeito à própria autoridade do CADE, posto que esta situação já aconteceu algumas vezes (BECKER, BERARDO, ROSENBERG, 2015, p. 17-19). Para impedir tais práticas ilícitas, a autoridade ainda precisou criar um guia para determinar quais atos seriam considerados consumados. Ademais, houve somente um caso cujo julgamento culminou em anulação (DANTAS, 2020), que foi a da criação da Blue Cycle. Portanto, pode-se pensar, de certa forma, que a ideia de proteção está se tornando cada vez mais frágil, já que o próprio órgão controlador do direito da concorrência, de algum modo, "deixa passar" algumas práticas ilícitas, somente multando posteriormente ou, em um único caso, desfazendo o negócio, como aconteceu com a Blue Cycle. Afinal, o CADE não tem uma função de análise prévia de atos de concentração?

O ponto (ii) é mais complexo, pois envolve prática anticoncorrencial em um plano internacional. Uma forma de protecionismo nacionalista se dá na propriedade de companhias pelo Estado, a fim de garantir o controle doméstico de empresas e manter matrizes de indústrias estratégicas dentro do país (PARGENDLER, 2019, p. 2). Existem algumas formas de fazer tal controle como: 1) privilegiar interesses de stakeholders locais, criar alianças com elites e trabalhadores, além de criar leis que são protecionistas, ou seja, buscar eficiência com exigências econômicas básicas e 2) por meio de política ao moldar a governança corporativa através dos grupos de interesses locais (PARGENDLER, 2019, p. 3-4). A intenção do governo é gerar um sentimento de identidade nacional nos principais stakeholders. Busca-se instituir a ideia de poder nacional e orgulho ao se ter um controle doméstico. É como se os cidadãos preferissem o controle local pelo mesmo motivo pelo qual torcem pelo time de futebol do país (PARGENDLER, 2019, p. 6). A ideia atrelada a isso tem a ver com a lealdade, uma vez que as pessoas no comando dessas empresas tendem a ser leais ao seu país (PARGENDLER, 2019, p. 6). Ademais, isso é utilizado como mecanismo para elevar o bem estar nacional ao se criar um compromisso com a economia local, já que é uma forma de gerar empregos, investimentos e até contribuições de caridade local. Tem-se, portanto, um sentimento de fidelidade com a própria nação. Assim, acionistas, trabalhadores e outros stakeholders identificam esses benefícios, se tornando grandes aliados políticos do governo no que tange um protecionismo na forma de controle local (PARGENDLER, 2019, p. 6). No Brasil, diversas leis foram criadas como forma de protecionismo. O art. 117, §1º, a da LSA define como abusiva a conduta na companhia que cause lesão do interesse nacional, além de o art. 146 da mesma lei obrigar que o Conselho de Administração seja composto por brasileiros. Assim, mantém-se a lealdade nacional das companhias brasileiras. Outra forma de controle criada pelo Estado com a privatização de grandes empresas foi a de golden shares, criando deveres de consentimento estatal nas aquisições, a fim de barrar assunção de controle estrangeiro (PARGENDLER, 2019, p. 25).

Para exemplificar, serão analisados os casos de (iii.a) aquisição da Brasfigro pela Goiás Verde como exemplo de análise do CADE de gun jumping e (iii.b) da fusão da Sadia com a Perdigão como exemplo de protecionismo estatal frente a um cenário estrangeiro.

A aquisição da companhia Brasfrigo S.A. pela empresa Goiás Verde Ltda. foi um tanto quanto controversa. Isto porque, ambas realizaram a consumação desta operação societária, cujo valor era de R$120.000.000,00, sem aprovação prévia do CADE (MARCHESINI, 2015). Segundo a autarquia, não houve notificação do ato de concentração, descobrindo tal operação por meio de veículo de imprensa. A partir disso, sua SG abriu Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração 08700.007161/2013-71 (CADE, 2015). Foi concluído que o gun jumping se deu pela aquisição de toda a planta industrial e das marcas da Brasfrigo: Jurema, Jussara, Tomatino e Terrabela. A partir daí, houve sanção administrativa na forma de multa no valor de R$3.000.000,00. No entanto, a operação não se tornou nula, apesar da sobreposição horizontal de mercados de milho em conserva, ervilha em conserva, seleta de legumes em conserva, extrato, molho e polpa de tomate, pois "não representaria riscos concorrenciais em razão da baixa concentração resultante da operação e da existência de rivalidade no setor. Por essa razão, a aquisição foi aprovada sem restrições" (CADE, 2015). Diante de tais fatos, verifica-se que há certo desrespeito à autoridade administrativa por parte das empresas ao não cumprirem a determinação normativa de notificar a autoridade e nem esperar pela aprovação prévia antes da consumação. Portanto, aos poucos, deslegitima-se o poder estatal de proteger o próprio sistema de concorrência ao se descumprir regras formais sobre a competência da autarquia especial e não haver sanções mais pesadas por tais ações.

No caso da fusão da Sadia S.A. com a Perdigão S.A., criando a BRF Brasil Foods S.A, em 2011, o ato de concentração foi aprovado pelo CADE com algumas restrições como suspensão das marcas Perdigão e Batavo por 5 anos, alienação de 73 mil toneladas de processados, desmantelamento de fábricas e centros de distribuição, venda de algumas marcas (Doriana, Light, Texa, Patitas, Rezende e Wilson) etc (BARBOSA, 2011). O motivo para a abordagem deste caso se deve ao fato da BRF está inserida no mercado internacional e é uma típica companhia que atende algumas condições mencionadas no item ii. Segundo relatório de 2011 da própria companhia, ela possui 42 centros de distribuição que correspondem a 98% do território nacional, além de ter consumidores em 140 países (BRF, 2011, p. 5). Alguns relatórios da empresa trazem a ideia do sentimento abordado acima que impacta na percepção de stakeholders sobre ela. Exemplos disso são a menção a um orgulho nacional a partir de investimentos no país, com um número de 120 mil funcionários e expansão da empresa internacionalmente (BRF, 2011, p. 5-6), além de buscar mostrar que aderem a esse movimento novo de busca por transparência por meio de compliance (BRF, 2018, p. 19-29) e de prever no seu estatuto social como objeto o desenvolvimento da agropecuária nacional (art. 3, p.u. VII). Diante disso, vê-se a busca por um controle local e criação de um sentimento nacionalista, não só pelo próprio estatuto como também por práticas descritas em seus relatórios, o que mostra conformidade com a própria lógica de governança corporativa protecionista ao se projetar nacionalmente e expandir sua atuação em territórios estrangeiros, criando a ideia de fidelidade nacional. 

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1. Um exemplo de ato de concentração aprovado pela ANATEL e pelo CADE foi o da aquisição da Nextel pela Claro. Aprovação pela ANATEL disponível aqui. e aqui. Aprovação pelo CADE disponível aquiAcesso em: 20 out 2020.

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- ADAMI, Mateus Silva; LANCIERI, Filippo Maria; NETO, Caio Mario da Silva Pereira. O diálogo institucional das agências reguladoras com os poderes executivo, legislativo e judiciário: uma proposta de sistematização. In: ROSILHO, André; SUNDFELD, Carlos Ari (org). Direito da regulação e políticas públicas. São Paulo: Malheiros, 2014.

- BARBOSA, Daniela. Cade aprova fusão entre Sadia e Perdigão com restrições. EXAME, 2011. Disponível aqui.
- BECKER, Bruno Bastos; BERARDO, José C. M; ROSENBERG, Barbara. Apontamentos introdutórios sobre o controle de concentrações econômicas na lei brasileira. Rio de Janeiro, Forense; São Paulo, Método. 2015.
- BRASIL. CADE. Ato de concentração. Aquisição de ativos. Procedimento ordinário. Mercados de legumes em conserva e de atomatados. Operação aprovada sem restrições. Infração ao art. 88, § 3º, da lei 12.529/11. Gun jumping. Alteração das condições concorrenciais. Acordo em Ato de Concentração 08700.010394/2014-32 Controle de Concentrações. Goiás Verde Alimentos Ltda., Brasfrigo Alimentos Ltda e Brasfrigo S/A. 2015, Voto. Conselheira Relatora: Ana Frazão. Disponível aqui.
-  BRF. Estatuto Social. BRF, 2020. Disponível aqui.

- BRF. Relatório anual e de sustentabilidade 2011. BRF, 2011. Disponível aqui.

- BRF. Relatório anual e de sustentabilidade 2018. BRF, 2018. Disponível aqui.

CADE. Brasfrigo e Goiás Verde pagarão R$ 3 milhões por prática de gun jumping. 2015. Disponível aqui.
- CADE. Cade celebra acordo de reversibilidade da aquisição da Brasfrigo pela Goiás Verde. 2015. Disponível aqui.
- DANTAS, Iuri. Pela 1ª vez, Cade anula contrato como punição por gun jumping. JOTA, 2016. Disponível aqui.
- MARCHESINI, Lucas. Cade multa Goiás Verde por antecipar aquisição da Brasfrigo. Valor, Brasília, 22 abr 2015. Disponível aqui.  
- PARGENDLER, Mariana. The Grip of Nationalism on Corporate Law (January 23, 2019). European Corporate Governance Institute (ECGI) -Law Working Paper No. 437/19.
- SILVA, Almiro do Couto e. Privatizações no Brasil e o novo exercício de funções públicas por particulares. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, número 16, 2009.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2a edição, revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2014.

Mariana Araujo Püschel

Mariana Araujo Püschel

Aluna da graduação de direito da FGV Direito SP, coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Administrativo da FGV Direito SP, monitora de Direito Administrativo II e aluna-pesquisadora da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).

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