A recuperação de crédito como meio de equilíbrio financeiro e as oportunidades para a administração pública
A crise econômica atual não é a primeira a atingir proporção global (a grande maioria da população ainda carrega algum efeito da crise de 2008), mas também é certo que o cenário econômico já instável foi agravado pela pandemia de uma maneira sem precedentes.
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Atualizado às 12:42
Em tempos de recessão e crise econômica acentuada, como o que vivemos atualmente, a recuperação de crédito em favor de instituições financeiras vem se mostrando como um dos grandes ativos para impulsionar a saúde do mercado financeiro.
É certo que a crise econômica atual não é a primeira a atingir proporção global (a grande maioria da população ainda carrega algum efeito da crise de 2008), mas também é certo que o cenário econômico já instável foi agravado pela pandemia de uma maneira sem precedentes, que dificilmente algum dos economistas poderia prever.
O ano de 2019 foi de muitas projeções positivas para o mercado financeiro. O entusiasmo era tamanho, que em relatório divulgado pelo Banco do Brasil em dezembro/19, na descrição as perspectivas para o Brasil em 2020/21, a análise dos especialistas do renomado banco era a seguinte:
"Perspectivas para o Brasil 2020-21
O ciclo de negócios da economia brasileira anda em favor do otimismo e da tomada de risco no mercado interno, dado que o crescimento econômico ganha momentum em função de reformas estruturais. Ajustado aos ruídos premissa número um para avaliar uma economia emergente o cenário positivo deve persistir para os anos (no plural!) que virão e o mercado de equities deve capturar os benefícios de taxas de desconto em mínimas históricas.
O entusiasmo de 2019 veio da confiança sobre a implementação de políticas econômicas. A preparação convida aqueles do lado mais cético da arquibancada a jogar, já que os sinais agora são mais claros. O balanço risco retorno se ajustou, mas ainda acreditamos haver espaço para upside na bolsa.
O hiato do PIB fecha lentamente A capacidade ociosa da indústria e o elevado desemprego mostram ausência de pressões inflacionárias, consistente com a nossa premissa de que o estímulo monetário e a ascensão econômica persistirão. Os bancos mostram maior apetite para o crédito a pessoas físicas e PMEs favorecendo o consumo."1
No entanto, em janeiro de 2020, com a confirmação dos primeiros casos de contaminação global por covid-19, todas as previsões otimistas foram drasticamente afetadas e o setor econômico se viu, mais uma vez, como também ocorreu em 2008, obrigado a reduzir as ofertas de crédito, sendo diretamente afetado pelos crescentes índices de endividamento e inadimplência da população.
Em fevereiro/21, foi divulgada a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, indicando que que 66,7% dos consumidores estão endividados, tendo o índice de inadimplência atingido seu patamar máximo em 2020, no mês de agosto, com 26,7% das famílias com contas ou dívidas em atraso.
Não há como negar que, para as instituições financeiras, a concessão de crédito anda sempre par e passo com a recuperação de crédito, até porque essa última influencia direta e sensivelmente os resultados financeiros das instituições, inclusive, na disponibilidade de ativos para concessão de novas linhas de crédito.
De se esperar, portanto que, com o agravamento da crise econômica, os esforços despendidos para viabilizar a recuperação de crédito às instituições ganhassem maior proporção, não só por parte das instituições financeiras, mas também por toda a rede de atendimento (fornecedores e prestadores de serviços) que viabiliza e suporta essa atividade de forma conjunta.
Com um mercado que movimenta bilhões de reais anualmente, o interesse no desenvolvimento de ferramentas que auxiliam tanto na concessão quanto na recuperação de crédito tem se mostrado cada vez mais intenso. Nesse sentido, as fintechs tem ganhado cada vez mais expressão no mercado, desenvolvendo produtos financeiros totalmente digitais e facilitando a interação entre clientes e empresas.
Para acompanhar a força da entrada das fintechs no mercado financeiro, até as instituições e empresas mais conservadoras se viram obrigadas incorporar o uso da tecnologia em suas atividades, para que pudessem almejar e até manter suas posições de destaque em suas respectivas áreas de atuação.
Com os serviços destinados à recuperação de crédito não foi diferente. Desde ferramentas utilizadas internamente pelas próprias instituições financeiras até plataformas de cobrança e controle de acionamentos utilizadas pelos prestadores de serviços, como escritórios de advocacia, a variedade de soluções é bastante vasta. No entanto, com um minucioso diagnóstico da realidade de cada empresa, é possível identificar as soluções que mais se adequam às necessidades e perfil de cada carteira.
O processo que envolve a efetiva recuperação de um crédito é muito mais complexo do que simplesmente ter o contato com o devedor. Desde a concessão do crédito já se pode fazer o mapeamento de perfil do cliente, com identificação de canais de contato e atualização de dados cadastrais para que, em caso de necessidade futura de cobrança, já se estabeleçam direcionamentos estratégicos visando garantir mais assertividade e tempestividade na recuperação.
Através de ferramentas tecnológicas é possível fazer o registro de todas essas informações e, em caso de inadimplência, já ter os primeiros direcionamentos quanto às melhores formas de condução da negociação, se por telefone ou plataformas automatizadas, se por correspondência física ou eletrônica, a melhor hora para contato (BTC - Best time to call), dentre outras diversas estratégicas que direcionam uma operação de recuperação de crédito e conduzem a resultados diferenciados.
Vemos, portanto, que as instituições financeiras já reconhecem e valorizam, há muito, a importância da recuperação de crédito para seus negócios, utilizando sempre a tecnologia e parceiros capacitados para extrair os melhores resultados.
Na contramão das instituições financeiras, no entanto, outros setores que também são grandes credores no Brasil, demonstram pouca atuação nas frentes de recuperação de crédito e menos ainda no uso de tecnologias para esse fim.
É caso por exemplo, da Administração Pública. No âmbito nacional, segundo dados da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, divulgados em seu site oficial, em 2018, o estoque da dívida ativa previdenciária, por exemplo, superou R$ 491,2 bilhões, com cerca de 80% desse valor ainda em fase de cobrança.
Não há dúvida que a União, Estados e Municípios são grandes credores fiscais, mas em regra, a cobrança dos referidos créditos se dá exclusivamente pela via judicial, em procedimentos longos e morosos de Execução Fiscal, que se arrastam por anos e anos sem qualquer resultado efetivo para devolução dos valores aos cofres públicos.
A cobrança de débitos fiscais há muito vem sendo tratada pelo legislador, em busca de formas para facilitar a recuperação em favor da Administração Pública. A própria lei 6.830/80 "foi editada com o claro e expresso propósito de agilizar a execução fiscal, criando um procedimento especial diverso do da execução forçada comum de quantia certa, regulado pelo Código de Processo Civil"2.
A exposição de motivos 223 traz em seu texto a intenção legislativa nesse sentido: "As inovações propostas, como normas peculiares à cobrança da Dívida Públicas, têm por objeto os privilégios inerentes ao crédito fiscal e a preferência por normas processuais preexistentes, ajustada ao escopo de abreviar a satisfação do direito da Fazenda Pública"3.
A manifestação declarada do esforço legislativo para facilitar os procedimentos de recuperação de crédito em favor da Fazenda Pública, no entanto, não vem se mostrando satisfatória para garantir a efetividade que se pretendia quando da edição da lei.
A verdade é que, na prática, os privilégios processuais conferido à Fazenda Pública pela alteração do texto legal não se materializaram em redução concreta do prazo para satisfação de seus créditos. Pelos dados do relatório Justiça em Números, divulgado pelo CNJ em 2020, o tempo de giro do acervo dos processos de execução fiscal é de 6 anos e 7 meses, ou seja, mesmo que o Judiciário parasse de receber novas execuções fiscais, ainda seria necessário todo esse tempo para liquidar o acervo existente.
O próprio CNJ na definição da Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 (Resolução 325, de 29 de junho de 2020), na visão dos Macrodesafios do Poder Judiciário sob a perspectiva de processos internos, definiu como uma de suas frentes a AGILIDADE E PRODUTIVIDADE NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL com a seguinte descrição:
"Tem por finalidade materializar a razoável duração do processo em todas as suas fases. Trata-se de garantir a prestação jurisdicional efetiva e ágil, com segurança jurídica e procedimental na tramitação dos processos judiciais.
Visa também soluções para um dos principais gargalos do Poder Judiciário, qual seja a execução fiscal. Busca elevar a eficiência na realização dos serviços judiciais e extrajudiciais".4
Nesse sentido, o exemplo de sucesso das instituições financeiras pode ser adequado à realidade da Administração Pública, claro, preservadas as questões legais que os diferenciam, para acelerar e alavancar o retorno dos valores devidos aos cofres públicos e, em última instância, à população, indo de encontro aos anseios que definidos pelo próprio CNJ.
Analisando a forma atual utilizada pela vasta maioria dos entes da Fazenda Pública, sejam estaduais ou municipais, verifica-se pouquíssima ou nenhuma atuação na cobrança extrajudicial dos débitos, ou mesmo para aqueles já objeto de cobrança judicial.
É sabido que somente através da inscrição em dívida ativa configura-se a liquidez e certeza do crédito, necessária para a constituição do título que viabiliza a cobrança judicial. A inscrição em dívida ativa também garante o registro contábil correto do débito, facilitando o controle e o levantamento de diversas informações que podem ser decisivas na efetiva recuperação dos valores devidos.
Nesse sentido, tomando como ponto de partida o registro do débito em dívida ativa, verifica-se a possibilidade de aplicação de diversas estratégias bem sucedidas na cobrança dos débitos particulares, tais como: estruturação de procedimentos de cobrança na administrativa; ranqueamento das dívidas considerando perfil e patrimônio do devedor, valores (ticket médio) e datas de prescrição; criação de ações direcionadas pela natureza jurídica dos devedores (PJ ou PF), dentre outras várias existentes.
Além das definições estratégicas, as ferramentas de tecnologia propiciam alavancagem dos resultados, criando novas formas de interação junto aos devedores, através de plataformas digitais para negociação de valores, propostas, emissão de guias para pagamento e até formalização de acordos judiciais.
A própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional vem buscando formas de melhorar a efetividade das cobranças fiscais. Através do Novo Modelo de Cobrança da dívida ativa da União, que abrange o novo fluxo de inscrição e cobrança da dívida ativa da União (regulamentado pela portaria PGFN 33, de 2018) e também do Regime Diferenciado de Cobrança de Créditos (RDCC) (instituído pela portaria PGFN 396/16), a PGN buscou aplicar estratégias mais assertivas e simplificadas de cobrança, com automatização na coleta de informações sobre bens dos devedores, para concentrar esforços nos créditos com maior perspectiva de recuperação, e utilização de meios extrajudiciais de cobrança, incentivando o devedor ao pagamento por meio de diversas frentes.
Vale lembrar ainda que a arrecadação tributária custeia as despesas públicas e as necessidades de investimentos públicos, sendo que os déficits de arrecadação afetam sobremaneira as políticas públicas e por consequência a população como um todo.
A lei complementar 101/20 editada para tratar da responsabilidade na gestão fiscal prevê a obrigação do gestor público de controle da quantidade e valores de cobranças judiciais da dívida ativa, além de ter que demonstrar a evolução do montante dos créditos tributários passíveis de cobrança.
Nesse espectro, fica ainda mais clara a importância da atuação do gestor público para buscar meios alternativos para satisfação do interesse público, com a devolução dos valores de créditos fiscais aos cofres públicos, sendo providencial a adoção e incorporação de novas estratégicas e ferramentas de tecnologia à realidade da Administração Pública para que se alcance esse objetivo.
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1 Banco do Brasil. Perspectivas 2020-21: Entusiasmo não é páreo para preparação (versão em português do relatório "enthusiasm is no match for preparation"). Disponível clicando aqui. Acesso em: 24/3/21.
2 Theodoro Junior, Humberto. Lei de execução fiscal: comentários e jurisprudência. 10 ed., rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2007. p. 3.
3 Theodoro Junior, Humberto. Lei de execução fiscal: comentários e jurisprudência. 10 ed., rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2007. p. 625.
4 Ministério da Justiça e Segurança Pública, Conselho Nacional de Justiça. Resolução 325 de 29/6/20, publicada no DJe/CNJ 201, de 30/6/20, p. 2-10. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26/3/21.
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Silva, Américo Luís Martins da. A Execução da dívida ativa da Fazenda Pública. 3 ed. rev. e atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Theodoro Junior, Humberto. Lei de execução fiscal: comentários e jurisprudência. 10 ed., rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2007
Banco do Brasil. Perspectivas 2020-21: Entusiasmo não é páreo para preparação (versão em português do relatório "enthusiasm is no match for preparation"). Disponível clicando aqui. Acesso em: 24/3/21.
Ministério da Justiça e Segurança Pública, Conselho Nacional de Justiça. Resolução 325 de 29/6/20, publicada no DJe/CNJ 201, de 30/6/20, p. 2-10. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26/3/21.
Daniela Marques Batista Santos de Almeida
Sócia advogada do escritório Ferreira e Chagas Advogados.