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Discricionariedade não é carta branca

Embora deva o Poder Judiciário declarar a nulidade de atos ilegais, não pode substituir a decisão do administrador e julgar o mérito de um ato administrativo discricionário. O mérito é o domínio opinativo do administrador público, o que extrapola a atuação do Poder Judiciário.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Atualizado às 12:40

A discussão colocada no título deste texto pode soar como uma obviedade. Ora, há vasta doutrina, jurisprudência e legislação que reforçam a máxima segundo a qual o exercício do poder discricionário é amplo, porém não é absoluto (e deve ser fundamentado). No entanto, quando se analisa a realidade (ou o tal mundo dos fatos), há uma considerável indiferença administrativa e judiciária quanto à referida máxima.

Explico.

Segundo a doutrina - e não entrarei nas minúcias e nas divergências conceituais, pois este não é objetivo desta discussão - o poder discricionário é aquele no qual há a um juízo de conveniência e oportunidade por parte do administrador. Tal discricionariedade deve estar circunscrita nos limites da lei, sob pena de ser o ato mera conduta arbitrária, considerada ilegal. A inobservância dos limites legais leva o ato à nulidade.

Não obstante, embora deva o Poder Judiciário declarar a nulidade de atos ilegais, não pode substituir a decisão do administrador e julgar o mérito de um ato administrativo discricionário. O mérito é o domínio opinativo do administrador público, o que extrapola a atuação do Poder Judiciário.

Especificamente no que diz respeito ao universo dos atos de méritos das Bancas Examinadoras de Concursos Públicos, o próprio Poder Judiciário já pacificou o seu entendimento no sentido de que "Não complete ao STF, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame" (RE 632.853/CE).

A tese fixada no precedente do RE 632.853/CE deixa claro que o Judiciário deve realizar apenas o controle de legalidade sobre os atos administrativos, entendimento pacífico sedimentado na súmula 473 do STF: "A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".

Agora, pensemos na seguinte situação: um candidato se submete a um concurso público e, após realizar a etapa dissertativa, interpõe um recurso administrativo pleiteando a majoração de sua nota, sendo tal recurso indeferido. Todavia, as razões apresentadas pela Banca Examinadora poderiam se prestar a fundamentar o indeferimento de qualquer outro recurso apresentado (como ocorreu, conforme será evidenciado). Desnecessário, aqui, lembrar que o CPC, em seu artigo 489, parágrafo 1º, inciso III, não considera como fundamentada uma decisão que "[...] invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão". Dispensável, igualmente, citar o artigo 2º, parágrafo único, inciso VII, da Lei de Processo Administrativo, que determina que "[...] serão observados, entre outros, [no processo administrativo] os critérios de: VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão".

Mas para que estou falando em dispositivos legais e precedentes judiciais em torno de uma situação hipotética? Pois bem, um cidadão realizou o VIII Concurso Público para ingresso na carreira da Defensor Público de Minas Gerais, tendo sido aprovado e classificado na 1° fase, bem como aprovado e não classificado na 2° fase. Diante disso, o tal sujeito questionou a nota atribuída em uma determinada questão que versava sobre o princípio do contraditório. O que fez a Banca Examinadora? Indeferiu o recurso. Quais foram os fundamentos? (Diante da necessidade de ser coerente, eles serão reproduzidos a seguir, razão pela qual peço escusas ao leitor pela extensão da citação). Disse o Examinador:

A chamada "decisão-surpresa" ou "decisão da terceira via" (terminologia utilizada pela doutrina italiana) é aquela baseada em fundamento fático ou de direito que não tenha sido previamente considerado pelas partes. O provimento é fruto de inovação jurisdicional, destoante da tese e da antítese processual. Há, neste caso, nulidade decorrente da violação do contraditório.  Para compreender a decisão surpresa é preciso ter em conta a insuficiência da noção de contraditório como "princípio da audiência bilateral" (resumido ao binômio ciência/reação), comumente abordado sob a perspectiva "estática" (ou formal). Na atual conjuntura, o contraditório deve ser concebido como poder de influência das partes sobre os termos do processo e, principalmente, sobre o conteúdo da decisão jurisdicional. Nesses termos, o processo deixa de ser concebido como "coisa das partes" ou como ato de supremacia judicial, passando a ser reconhecido como uma "comunidade de trabalho", na qual há ampla cooperação entre partes e juiz para construção do provimento (relação estreita entre contraditório, cooperação e fundamentação decisória - CPC, art. 489, §1º, IV). A concepção tradicional (e ultrapassada) do iura novit curia induz à conclusão de que existe uma divisão estanque entre o papel das partes e do órgão jurisdicional: aos litigantes caberia dar ao magistrado conhecimento sobre os fatos relevantes para o deslinde da causa. Em contrapartida, ficaria reservada ao juiz a tarefa de "dizer o direito". Todavia, a independência entre os sujeitos processuais não coaduna com o princípio da cooperação porque inviabiliza a concretização da "comunidade de trabalho" no âmbito jurisdicional. Sobre o tema, conferir a seguinte doutrina: FRANCO, Marcelo Veiga. Dimensão dinâmica do contraditório, fundamentação decisória e conotação ética do processo justo: breve reflexão sobre o art. 489, §1º, IV, do novo CPC. Revista de Processo, v. 247, p. 105-136, 2015. FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 227, p. 335-362, 2014. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. 1. ed. 4ª reimp. Curitiba: Juruá, 2012. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 60. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. v. 1. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 53. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. v. 2. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 52. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. v. 3. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, São Paulo, v. 168, p. 107-141, fev. 2009.  No presente caso concreto, a resposta lançada pelo(a) o(a) candidato(a) não atendeu aos requisitos prescritos pelo espelho de correção, motivo pelo qual INDEFIRO o pleito de majoração da nota atribuída, sob pena de violar o princípio da isonomia, que demanda tratamento paritário para todos(as) os(as) candidatos(as).

Pois bem. Qual teria sido a ilegalidade nesta fundamentação que "até doutrina cita"? Percebam que a tal "fundamentação" não faz qualquer menção às supostas incorreções na resposta do candidato. Aliás, não faz qualquer menção à resposta ou às razões apresentadas pelo candidato no recurso administrativo. Cumpriria questionar: onde há qualquer referência à resposta do candidato? Em qual linha desta decisão há alguma menção a erros ou equívocos cometidos pelo candidato? Em qual parágrafo desta decisão o examinador enfrenta a suposta insuficiência da resposta do candidato?

A vagueza da fundamentação do arrazoado não cessa na fundamentação do indeferimento de um candidato. Tal "fundamentação" fora reproduzida em verdadeiro "CTRL C + CTRL V" no indeferimento de recursos apresentados por vários candidatos (e não apenas do referido cidadão). E não foram apenas trechos reproduzidos, mas um verdadeiro "copia e cola".

Diante disso, o que fiz o referido cidadão e alguns outros candidatos? Recorreram ao Poder Judiciário. Deixando de lado as vicissitudes das diferentes ações manejadas, a Administração Pública alegou que o ato foi devidamente motivado, apesar de ter feito diversos pedidos subsidiários para que pudesse ter a oportunidade de reapresentar as motivações (o que violaria o edital e, obviamente, a própria legalidade, sem mencionar o fato e ter confessado a ausência de motivação de seu ato).

Apesar de tudo isso, alguns magistrados (em entendimento não unânime, mas que acabou prevalecendo) concluíram que o ato foi devidamente motivado. E tal decisão foi tomada justamente com base no precedente RE 632.853/CE (MS/TJMG 5017007-10.2020.8.13.0024; MS/TJMG 5182714-64.2019.8.13.0024).

Percebam a quantidade de paradoxos nesta situação: uma pergunta sobre contraditório que nega o contraditório; um precedente do STF que afirma a obrigatoriedade de o Judiciário anular atos nulos (como aqueles não fundamentados) que é empregado "legitimar" a ausência de fundamentação administrativa; uma fundamentação judicial sobre o infundado.

Com isso me encaminho para a conclusão retornando ao começo. A discricionariedade não é absoluta. A Constituição, o CPC, a legislação infraconstitucional e os precedentes (ao menos no nível das teses abstratas) são uníssonos ao defender a necessidade da fundamentação. No entanto, essa determinação cessa no exato momento em que se deve fundamentar. E o cidadão? Ainda procura a fundamentação.

Ricardo Manoel de Oliveira Morais

Ricardo Manoel de Oliveira Morais

Doutor em Direito Político pela UFMG. Mestre em Filosofia Política pela UFMG. Graduado em Direito (FDMC) e em Filosofia (FAJE). Professor

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