Planejamento sucessório aplicado às criptomoedas
A variedade de comércio eletrônico se contrapõe à que outrora prevalecia, a presencial.
terça-feira, 20 de abril de 2021
Atualizado às 11:28
(Imagem: Arte Migalhas)
I - INTRODUÇÃO
A internet, reconhecidamente a invenção de maior relevância do Séc. XX, permitiu o desenvolvimento multidisciplinar de diversos ramos do conhecimento, revolucionando a metodologia até então aplicada na oferta de produtos e serviços, bem como na sua disponibilização aos consumidores.
Sob o viés tradicional do comércio, a internet gerou a aproximação de clientes e fornecedores, ao permitir a celebração de negócios a distância, sob o formato do chamado ecommerce, modalidade atualmente predominante nas relações negociais. A variedade de comércio eletrônico se contrapõe à que outrora prevalecia, a presencial.
Em outro plano, a internet auxiliou o desenvolvimento de uma área que se encontrava inexplorada, a criação das moedas digitais. Até então, o que se encontrava disponível era um sistema de pagamentos online (e.g. PayPal), que permite a transação de valores em moeda escritural (fiat money) para a celebração de negócios entre usuários cadastrados.
Diferentemente das criptomoedas, o serviço de pagamentos online se limita à possibilidade de transferências online com valor respectivo em moeda escritural que o usuário transferiu previamente à plataforma. Todavia, tal serviço pressupõe para a sua utilização a realização de cadastro com o fornecimento de documentação que identifique o usuário (know your customer rule) para fins de avaliação e administração de riscos, bem como para o monitoramento das transações realizadas.
Dito isso, dentre os fatores responsáveis pelo surgimento das criptomoedas, destacase a crise financeira de 2008, cujo epicentro foi o sistema bancário norte-americano. O colapso se deu em face da negligência de instituições financeiras e agências de classificação de risco, ao avaliar produtos financeiros com risco inferior à realidade, ao comercializar títulos com alta taxa de inadimplência.
Por tal motivo, essas instituições foram responsáveis por inundar o mercado financeiro com o título conhecido como "obrigações de dívida com garantia" (tradução livre da sigla CDO), composto por dívidas de alto e baixo risco de inadimplência, de modo que o pagamento dos débitos com juros remunerava os seus detentores (ROQUE, 2018¹).
Nesse liame, vale ressaltar que os títulos integravam dívidas assumidas visando o investimento de capital no mercado imobiliário, o qual se encontrava em pleno aquecimento à época, contudo, devido ao investimento exacerbado, se tornou parte de uma especulação.
Assim, a facilidade em se obter crédito, aliado ao investimento desenfreado, levou os devedores a financiar reiteradamente as dívidas pré-existentes, desencadeando uma grave inadimplência generalizada, a partir da impossibilidade de absorção pelo mercado dos empreendimentos realizados, e a incapacidade dos devedores em adimplir as dívidas assumidas.
Esse contexto culminou na queda brusca1 dos valores de CDO, uma vez que as chances de sua remuneração eram ínfimas, significando relevante perda monetária à parcela significativa do mercado. Nesse cenário, o governo norte-americano iniciou a sua intervenção, gerando uma coalisão com instituições bancárias para dar início ao projeto de recuperação e estabilização da economia estadunidense.
Assim, a divulgação de informações inverídicas sobre os produtos comercializados e a falta de fiscalização dos órgãos fiscalizadores, o sistema financeiro perdeu parcela considerável de sua confiança².
Dentre os efeitos ocasionados pela perda de confiança gerada pela crise de 2008, uma delas foi o surgimento do Bitcoin, criptomoeda e sistema criptografado responsável por transaciona-las.
O protagonista dessa criação, assinou sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto o artigo denominado "Bitcoin - A Peer-to-Peer Electronic Cash System", materializando a existência de uma rede criptografada e descentralizada de transferência de criptomoedas, que prescindiria da administração de uma entidade para o seu funcionamento, de modo que a própria utilização pelos usuários manteria o funcionamento da rede.
Por meio dessa criação, obteve-se a democratização do sistema financeiro mundial, substituindo a necessidade de se depositar a confiança nas instituições que formam o clássico sistema financeiro mundial, para uma "simples" rede criptografada que é isenta às interferências humanas, mas regida pela dinâmica da oferta e demanda.
Então, a partir dessa criação os usuários, munidos da public key³, e da private key4, e por meio do sistema de blockchain5, poderiam transferir criptomoedas para diferentes usuários, sem o conhecimento de autoridades e instituições e, especialmente sem a necessidade de aprovação de instituições financeiras e órgãos regulatórios.
II - INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DE CRIPTOATIVOS
Diante do funcionamento do Bitcoin, uma vez optado o autor da herança pelo planejamento na via testamentária, a obtenção da private key por quem tenha acesso ao instrumento pode se tornar um risco ao fiel cumprimento de sua vontade, uma vez que as criptomoedas podem ser transferidas livremente sem possibilidade de rastreio haja vista que não é regulado por nenhuma entidade.
Assim, ainda que se opte pela formalização de um testamento cerrado, protegendo as informações do seu conteúdo até a sua abertura, a sua utilização para fins de sucessão de criptomoedas é considerada arriscada, eis que no momento de sua abertura, bem como na hipótese de seu descerramento antecipado, haverá a possibilidade de desvio dos bitcoins armazenados.
Além disso, inexiste solução na hipótese de fraude à propriedade de criptomoedas, uma vez que o registro das transações promovidas pela blockchain não é feita utilizando-se de elementos de identificação do usuário - nome, endereço, identidade, CPF, dentre outros, como ocorre tradicionalmente no âmbito dos bancos (know your customer rule), mas apenas pelas public keys.
Dessa maneira, diante da ineficácia dos institutos tradicionais e suas incompatibilidades com a segurança e anonimidade no acesso e transferência das criptomoedas, é necessário repensar as formas de planejamento sucessório, de modo a adequar os institutos e ferramentas disponíveis com a racional de funcionamento das criptomoedas.
II.I - Fidúcia
Primeiramente, uma das formas de se proceder ao planejamento sucessório de criptomoedas seria mediante a formalização de um contrato de fidúcia. Tal instrumento, oriundo do ordenamento norte-americano, sob o sistema da common law, intitulado sob a denominação de trust, em que uma das partes (trustee) receberá em sua confiança bens móveis ou imóveis para administração em prol da outra parte (settlor), ou em benefício de terceiro.
Comumente utilizado na técnica da common law, segundo a qual o objeto do contrato de fidúcia se encontra estabelecido em um documento secreto, ou até mesmo na sua ausência (WULF, apud PEREIRA, 2005, p. 4305), voltando-se principalmente para casos em que se pretende assegurar a vida patrimonial futura de terceiro sem lhe transferir prontamente o acervo de bens, como forma de reduzir o risco de exposição de investimentos. (PEREIRA, 2005, p. 430).
Neste caso, todavia, aplica-se para solucionar a questão da posse da private key por apenas um indivíduo, de forma que as criptomoedas estarão sob o alcance de ambas as partes do contrato de fidúcia (contratante e contratado), de maneira que, caso a morte do contratante sobrevenha, os bens serão administrados de acordo com o estipulado no instrumento, em prol do beneficiário por ele escolhido.
Contudo, conforme a sua intitulação no direito norte-americano de trust (confiança - tradução literal), é mister que a parte contratada (trustee) seja atribuída de confiança pela contratante, uma vez que, a transferência de bitcoins para outra carteira de propriedade de terceiro ocorre com rapidez, facilidade e sem possibilidade de rastreio.
Além disso, ao optar pela celebração de um contrato de fidúcia, a parte relativizará a segurança e anonimidade oferecida pelo funcionamento das criptomoedas, de modo que o contratado terá acesso e conhecimento dos ativos armazenados.
Ainda, verificado que para administração das criptomoedas, a princípio, as instituições mais indicadas seriam as corretoras ou exchanges, cujo objeto social é a intermediação de transações de criptomoedas, elas estarão em cumprimento da IR 1.888 da RFB, ou seja, todas as transações, bem como seus demais aspectos, conforme previsto no art. 7º, II13, dessa instrução, serão informados à Receita Federal Brasileira, reduzindo o nível de anonimidade aproveitado pelo usuário.
II.II - Doação em vida
Como forma de se evitar que o autor da herança seja o único com acesso aos criptoativos, uma solução seria a sua doação inter vivos. Neste caso, os criptoativos seriam transferidos de imediato ao beneficiário, importando a ele administração das criptomoedas a partir do momento de seu recebimento.
Além disso, há de se ressaltar que tal doação pode ser eventual tema de discussão no momento da colação, para se verificar a legítima dos herdeiros legais. No entanto, diante da anonimidade e segurança fornecida pelas redes de criptomoedas, as chances de comprovar tal doação tenha ocorrido são ínfimas.
Isso porque, diante da possível proximidade que se têm entre autor da herança e sucessor, há de se ter em mente que dificilmente seriam cumpridas as obrigações dispostas na IR 1.888 da RFB, de modo que as transações realizadas em criptomoedas não seriam informadas às autoridades.
II.III - Criar uma cópia da carteira de armazenamento
Modalidade mais prática para se garantir a sucessão das criptomoedas pelo beneficiário escolhido. Trata-se da criação de uma cópia da carteira de armazenamento das criptomoedas. Ou seja, similarmente a uma conta conjunta, havendo acesso por dois pontos distintos, proprietário e futuro beneficiário, os ativos poderiam ser transferidos utilizando-se de qualquer uma das carteiras de armazenamento.
Todavia, apesar da facilidade dessa modalidade, os criptoativos estariam à mercê do futuro beneficiário a partir do momento que lhe estiver disponível a private key. Desse modo, esse instrumento apenas seria indicado de acordo com a proximidade das partes, para se garantir que a propriedade somente seria transferida a partir do falecimento.
Além disso, o futuro beneficiário teria acesso à toda a quantia armazenada na respectiva carteira, sendo assim, caso o proprietário queira lhe transferir, apenas uma parcela dos ativos, deverá criar uma carteira apenas com a quantia que pretende conceder, fornecendo-lhe as chaves de acesso.
Ainda, caso se opte por tão-somente um novo ponto de acesso à carteira das criptomoedas, é necessário que o sucessor, mantenha um protocolo de segurança similar ao adotado pelo sucedido, para se evitar eventuais ataques cibernéticos, e consequentemente a perda dos ativos armazenados.
II.IV - Transação com multi-assinatura - M-of-N Transactions
Trata-se de um protocolo implementado no sistema de transferência das criptomoedas. Ao invés de se permitir a transferência de ativos apenas pela inserção de uma chave de acesso privada pelo proprietário, nesse caso, para a transmissão, é necessário a assinatura de um número M de N sujeitos (M-of-N Transactions) para que seja autorizada a transferência; por e. g., assinatura pelo beneficiário escolhido e terceiro (ANTONOPOULOS, 2014, p. 1006).
Ou seja, por exemplo, são conferidas chaves de autorização de transferência para três pessoas, mas para sua efetivação é necessário a assinatura por pelo menos duas chaves, de modo que, com a eventual morte do proprietário, os criptoativos serão transferidos pelas assinaturas do beneficiário e terceiro, este que ficará incumbido de chancelar a transferência apenas quando se verificar a morte do autor da herança.
As vantagens desse protocolo se iniciam pelo fato de que, o beneficiário, por si só, não pode realizar a transmissão dos ativos, mas em conjunto com a assinatura de um terceiro, de modo que é improvável que haja uma antecipação da transferência. Além disso, por se tratar de uma transferência com multiassinaturas, o beneficiário não teria acesso a todos os ativos da carteira, mas tão-somente àquele número envolto na transferência.
Todavia, há de se ressaltar que, como no contrato de fidúcia, há o envolvimento de terceiro na efetivação do planejamento sucessório, o que se traduz numa redução da segurança e anonimato da propriedade dos criptoativos.
II.V - Dead Man's Switch - Interruptor do homem morto (tradução literal)
Trata-se de conceito originalmente utilizado no âmbito de máquinas ou veículos, de modo que um interruptor é acionado caso o operador se encontre incapacitado por morte, perda da consciência, dentre outras razões que importe na perda do controle do equipamento.
Todavia, tal denominação passou a ter uso no meio intangível, em protocolos de softwares. Essa modalidade é uma variável da transação com multi-assinatura, porém ao invés de terceiro chancelar a transferência após o falecimento do autor da herança, essa função é realizada pela assinatura de um servidor, ao verificar a falta de inserção de determinada informação pelo proprietário das criptomoedas.
Neste caso, o referido servidor envia periodicamente ao usuário da carteira uma mensagem perguntando se ele se encontra vivo. Neste caso o proprietário clicará em um link que postergará o envio de uma nova mensagem. Contudo, se o usuário não responder à mensagem enviada, o sistema enviará novas solicitações e, atingido certo número de tentativas, a transferência se efetivará pela assinatura do próprio sistema, presumindo que o usuário da carteira teria falecido (FARMER, TYSZKA, 2015, p. 2667).
Tal modalidade faz jus às mesmas vantagens previstas pela transferência de multiassinatura, entretando, se sobressai uma vez que não há a inclusão de terceiro no processo de transmissão de ativos, garantindo a anonimidade e reduzindo à exposição dos criptoativos a terceiros.
Entretanto, tal método apresenta certa desvantagem em relação à modalidade de multiassinatura, considerando-se que o sistema não conta com um juízo de consciência acerca de fatos, é possível que a transferência apenas se efetive tempo considerável após a morte do autor da herança, ou até mesmo antes de sua morte, por negligência do usuário.
III - CONCLUSÃO
Os bitcoins e demais criptomoedas, juntamente com o sistema que faz parte da sua operação, trouxeram uma nova camada de desafios e entraves a serem enfrentados pelos seus usuários, bem como aos legisladores e operadores do direito.
Assim, ao promover o planejamento sucessório, há de se ter em mente que o testamento, instrumento tradicional, não se amolda com as características de funcionamento das criptomoedas, possibilitando fraudes não rastreáveis, e consequentemente a impossibilidade de cumprimento da vontade do autor da herança.
Ainda, outro aspecto a ser observado é a intenção de se envolver terceiros no processo de planejamento sucessório de criptomoedas, bem como a proximidade e confiança existente entre o autor da herança e seu sucessor.
Portanto, para a escolha ideal da forma de planejamento sucessório de criptomoedas deve-se atentar aos aspectos pessoais do autor da herança para com o seu beneficiário, aliado com os riscos de exposição com terceiros, bem como o histórico do cumprimento de medidas regulamentares existentes.
__________
1. ROQUE, Leandro. Como ocorreu a crise financeira americana. Mises Brasil, 17 ago. 2018.Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2019.
2. Por toda a magia técnica e legal empregada pelos cidadãos de Wall Street, por toda a inovação financeira praticada pelos banqueiros de Wall Street, a confiança era o elemento mais importante do mercado de capitais - confiança de que as contrapartes tinham o dinheiro prometido, confiança de que os valores do mercado realmente refletiam as informações havidas à época; confiança de que se um ativo fosse representado no balanço valendo X dólares, ele realmente valia a quantia de X dólares. O colapso da Lehman e da AIG destruiu tudo isso. Ninguém confiança na avaliação de ativos ninguém confiava na cotação de valores. Ninguém confiava nos balanços financeiros de bancos. A inteira máquina dos mercados globais de capital parou de funcionar, de maneira desastrosa e devastadora, porque não havia mais confiança. VIGNA, Paul; CASEY, Michael J. The age of cryptocurrency: how bitcoin and digital money are challenging the global economic order. ed. St. Martin's Press, Inc., 2015.
3. Conjunto de algoritmos que representa a "conta" ou destinação que as criptomoedas devem ser destinadas, a título de exemplo, o CPF para o envio de PIX.
4. Conjunto de algoritmos que representa a senha para confirmar as operações de transferência de criptoativos, como por exemplo uma senha de cartão de crédito. Disponível aqui.
5. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. São Paulo: Forense, 2005. v. 3.
6. ANTONOPOULOS, Andreas M. Mastering Bitcoin: Unlocking Digital Cryptocurrencies. Sebastopol: O'Reilly Media, 2014.
7. FARMER, Abigail J.; TYSZKA, Corey Elizabeth. Virtual Currency Estate Planning, Bit by Bit. Actec law Journal, v. 40, 2014.