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Os freios e contrapesos na proteção da democracia

O momento político do Brasil é oportuno para analisar o sistema político visando preservar a democracia. Assim, para ajudar na reflexão tomo como referência o livro "Como as democracias morrem", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Atualizado às 13:27

O Brasil passa por um momento singular na sua democracia e é sobre este tema que discorrerei neste artigo. Terei como parâmetro uma leitura recente que fiz do livro "Como as democracias morrem", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e o interessante é que resultou na seguinte reflexão que certamente muito oportuna para a realidade do Brasil de hoje.

A separação e a autonomia dos poderes constituem dois dos principais fundamentos da democracia moderna, sendo a sua importância destacada no livro por diversas vezes. A sua instituição foi desenvolvida com o intento de se evitar a concentração do poder nas mãos de uma só pessoa e, por conseguinte, que houvesse a configuração de um Estado autoritário. Assim, houve a criação de três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), independentes e harmônicos, cada qual com funções típicas e atípicas, cujo exercício fica delimitado pela Constituição Federal.

A função típica do Poder Judiciário é a de julgar, ou seja, de aplicar a lei a casos controvertidos, ao passo que a função típica do Poder Legislativo compreende a inovação do ordenamento jurídico, com a criação e edição de leis e, por fim, a função típica do Poder Executivo é nada menos do que a de administrar e executar atos. Tem-se, assim, que os Poderes exerceriam funções atípicas quando desempenhassem funções típicas de um dos outros Poderes.

A fim de exemplificar isso, tomemos como análise o artigo 62 da Constituição Federal. Segundo o referido dispositivo legal, é de competência do Presidente da República a edição de medida provisória.

Nesse sentido, apesar de a função típica do Presidente da República compreender a administração, é possível que ele, em casos especificados na Constituição Federal, exerça atipicamente a função legislativa, editando um ato normativo, qual seja: a medida provisória. Além disso, cumpre destacar que referido ato normativo deve ser apreciado pelo Poder Legislativo no prazo de 60 (sessenta) dias, prorrogáveis uma única vez, nos termos do artigo 62, §§ 3° e 7°, da Constituição.

O dispositivo legal supramencionado exemplifica bem a consagração do chamado "sistema de freios e contrapesos", instituto trabalhado no livro "Como as democracias morrem". Segundo este sistema, há a interferência legítima de um Poder em outro, de forma a equilibrar os Poderes e evitar a tomada de decisões arbitrárias. Dessa forma, há uma colaboração e um controle recíprocos entre os três Poderes do Estado. Um pensamento corroborado por Montesquieu, no seu livro O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota - 3. ed. - São Paulo: Saraiva, 1994, p. 25-26, in verbis: 

(...) precisa-se combinar os poderes, regrá-los, temperá-los, fazê-los agir; dar a um poder, por assim dizer, um lastro, para pô-lo em condições de resistir a um outro. É uma obra prima da legislação, que raramente o acaso produz, e raramente se deixa a prudência produzir (...). Sendo o seu corpo legislativo composto de duas partes, uma acorrentada a outra pela mútua faculdade de impedir. Ambas serão amarradas pelo Poder Executivo, o qual o será, por seu turno, pelo Legislativo. Esses três poderes deveriam originar um impasse, uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são compelidos a caminhar, eles haverão de caminhar, eles haverão de caminhar em concerto.

Mas, retornando ao livro "Como as democracias morrem", foi brilhantemente explorado que, na consagração de tais delimitações na Constituição Federal, nem sempre é o suficiente para evitar que líderes autoritários alcancem o poder. Exemplos disso são as implantações de governos ditatoriais por Juan Domingo Perón, na Argentina e por Getúlio Vargas, no Brasil.

Isso ocorre principalmente em razão do fenômeno da polarização na política, segundo o qual existem dois grupos distintos e extremos na política. Não há diálogo entre tais grupos, com cada qual defendendo friamente seus posicionamentos. Consequentemente, há uma disputa entre os dois grupos para a tomada do poder.

Esse fenômeno representa uma forte ameaça ao sistema democrático, eis que, conforme largamente exposto pelos autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, para que a democracia prevaleça, é necessário o respeito mútuo, com diálogo e tolerância, entre os adversários que se candidataram aos cargos políticos. Caso não haja o respeito entre os líderes dos partidos de cada grupo polarizado, eles verão seus adversários políticos como inimigos. Consequentemente, eles não medirão esforços para alcançar o poder, entendendo que, para tanto, seria justificável violar normas constitucionais democraticamente estabelecidas, aderindo, por exemplo, a fraudes eleitorais.

Além disso, a polarização pode se fazer presente dentro de processos legislativos, em especial nos processos de impeachment. Isso porque eles são processos políticos, eis que analisados por membros do Poder Legislativo, senão vejamos.

No Brasil, para que haja o processamento do Presidente da República, pelo crime de responsabilidade, é necessária a autorização de instauração do processo por 2/3 dos membros da Câmara dos Deputados (artigo 51, inciso I, da CF-88). Com o preenchimento do quórum mínimo necessário para a instauração do processo, os autos serão remetidos para o Senado Federal (artigo 86, caput, da CF-88), órgão responsável pelo processamento e julgamento, sendo que, para que haja a condenação do Presidente da República ao final do processo, é necessário que 2/3 dos membros do Senado Federal votem favoráveis à condenação.

Logo, pode-se concluir que, para que a democracia não seja violada, é necessário que os adversários políticos não se vejam como inimigos, mas sim como rivais, estabelecendo respeito mútuo e dialogando, além de não deixarem seu posicionamento político influenciar em decisões que devem ser tomadas objetivamente, à luz do caso concreto e em concomitância com as previsões legais, como é o caso das decisões tomadas nos processos de impeachment, cujo objetivo maior deve ser o bem comum.

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*Artigo trabalhado a partir da monitoria nas aulas de Filosofia do Direito do Prof. Dr. Lafayette Pozzoli.

Maria Carolina Vitorino

Maria Carolina Vitorino

Estudante de Direito na PUC-SP.

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