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Neutralidade estatal e liberdade de culto versus equiparação de ritos religiosos virtuais e presenciais

O presente trabalho visa demonstrar que a utilização do discurso de equiparação de ritos religiosos em meio virtual aos cultos presenciais tem cunho teológico, constituindo-se em risco à liberdade religiosa e à neutralidade estatal.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado às 12:43

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A proibição de celebração de cultos religiosos, efetivada por atos dos Poderes executivos estaduais e municipais, em razão da decretação de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus, se fundamenta na decisão da Suprema Corte que infirmou competência de todos os entes federativos para estabelecer e manter medidas restritivas no período pandêmico (MC na ADPF 672).

Decretos restringindo a aglomeração de pessoas, têm limitado, e até suspendido, o direito de reunião, incluindo as reuniões coletivas de cunho religioso em locais de culto. Ao argumento de violação da liberdade religiosa, foi provocado o Supremo Tribunal Federal, que proferiu decisões monocráticas em sentidos contraditórios: uma proibindo, outra mantendo, a vedação de realização de cultos coletivos presenciais.

Defendendo a suspensão de reuniões coletivas religiosas, o decano da Corte Constitucional, Ministro Marco Aurélio, proferiu declaração pública advogando a realização de cultos domésticos: "o melhor altar é o lar" (RODRIGUES, 2021). Citado exemplo de discurso passa à margem do conteúdo jurídico, tangenciando o filosófico-religioso, o que desafia ao mesmo tempo o princípio da neutralidade estatal e a liberdade religiosa.

A razão pública na fundamentação da argumentação jurídica

A violação à laicidade, especificamente ao princípio da neutralidade ideológico-religiosa estatal, ocorre quando há uma opção por uma concepção religiosa - como, no caso, a restrição à dimensão privada da liberdade religiosa do indivíduo -, pois ao Estado não é permitido dizer qual a forma, coletiva ou privada, o cidadão deve exercer a liberdade de culto, o que seria, em última análise, um embaraço à cerimônia religiosa, conduta vedada pelo disposto no art. 19, I, da CF.

Da neutralidade estatal decorre a proibição de promoção ou detrimento de qualquer cerimônia religiosa e, também, a utilização de conteúdos religiosos, sejam positivos, com carga doutrinária religiosa, ou negativos, que negam a religião. O princípio prevê a equidistância do agente público de todos os tipos de discursos ideológico-religiosos, uma vez que não cabe ao Estado imiscuir na conceituação de verdade ou do que é correto, porém é seu dever garantir o livre desenvolvimento moral, espiritual e conceitual do indivíduo sobre a sua crença.

A título exemplificativo, ressalta-se posição teológica cristã, a qual não pode ser valorada pelo Estado, declarando a impossibilidade de substituição do culto presencial pelo rito em meio virtual, pois impossibilita o exercício da feição social da prática religiosa, ante a ausência de elementos do culto público, como louvores da congregação e da sua própria essência conceitual contraposta à teologia dos desigrejados e inviabilidade de exercer os sacramentos do batismo e da ceia, que pressupõe compartilhamento coletivo do pão e vinho, além da impedir auxílio material aos membros da comunidade religiosa (CAMPOS JÚNIOR, 2021).

Ademais, a laicidade dá um contorno à razão pública da argumentação do agente estatal de vedação de fundamentação em credos ou razões religiosas, impondo uma limitação objetiva às razões discursivas da atuação do Estado.

Ainda, importante destacar que, dentre outras, a neutralidade estatal tem como finalidade a garantia da liberdade religiosa individual e do princípio da igualdade, organizando as relações sociais de forma a impedir a hierarquização entre os indivíduos no convívio social, o que também é desafiado com a proibição de rituais coletivos, pois viola a liberdade religiosa dos crentes de doutrinas nas quais a cerimônia e ritos coletivos são essenciais, os colocando em nível de desigualdade com outros indivíduos sem religião, ateus e praticantes de confissões religiosas exercidas de forma privada.

A dimensão coletiva como característica central da liberdade de culto

A liberdade religiosa tem seu conteúdo central na liberdade de crença, que é direito garantido ao individual de crer ou não em qualquer matéria religiosa, e na liberdade de culto, que pressupõe a garantia do cidadão de exercer sua fé, com prática de rito e cerimônias religiosas, seja individual ou de forma coletiva.

O reconhecimento da dimensão coletiva da liberdade de culto é garantido tanto no STF (vide ADI 2566/DF), quanto na constituição, com a garantia do livre exercício de ritos religiosos e proteção aos cultos e liturgias (art. 5º, VI, CF), e em documentos internacionais, especialmente no art. 18º da Declaração dos Direitos Humanos e art. 12 do Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direito Humanos).

A despeito de não ser um direito absoluto, a liberdade religiosa para ser restringida tem que obedecer aos ditames da reserva legal para restrição, finalidade legitima e proporcionalidade (PIRES, 2018).

Então, conclui-se que o princípio da neutralidade religiosa do Estado, em sua aplicabilidade à razão pública da fundamentação da argumentação estatal e sua finalidade de promoção da igualdade, a tutela coletiva da liberdade de culto e os limites de restrição da Liberdade Religiosa, especialmente da reserva legal, consubstanciam-se em parâmetros que inviabilizam a utilização por agentes públicos da equiparação entre cultos em meio virtual e/ou doméstico e cerimônias e rituais de caráter coletivo e comunitário.

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RODRIGUES, Basília. Marco Aurélio rebate Nunes Marques e diz que 'o novato está assanhado'. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 07 abr. 2021.

OLIVEIRA, Paulo. Gilmar Mendes: "Constituição não prevê direito à morte". 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 abr. 2021.

CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. Em tempos de pandemia, como fica a comunhão? Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 abr. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 672. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília: Dje, 29 out. 2020.

OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, 18 jul. 1978. Disponível aqui. Acesso em: 12 jan. 2021.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 10 dez. 1948. Disponível aqui. Acesso em: 12 jan. 2021.

SARLET, Ingo Wolfgang. Notas acerca da Liberdade Religiosa na Constituição Federal de 1988. Revista Direito UFMS, Campo Grande, ed. especial, p. 87-102, jan./jun. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 17 mar. 20201.

PIRES, Thiago Magalhães. Entre a cruz e a espada: liberdade religiosa e laicidade do Estado no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

PECCININ, Luiz Eduardo. O Discurso Religioso na Política Brasileira: Democracia e Liberdade Religiosa no Estado Laico. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

Tercyo Dutra

Tercyo Dutra

Analista judiciário (STJ). Especialização em Direito e Processo do Trabalho (UNIDERP) e Direito Tributário (UFG). Discente do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas (UnB).

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