Possibilidade de responsabilização do judiciário ante à sua atuação em substituição aos gestores públicos na pandemia
Da necessidade de respeito aos critérios estabelecidos pelo STF na adoção de medidas de combate ao covid-19.
terça-feira, 13 de abril de 2021
Atualizado às 18:27
Ainda na semana passada tive a oportunidade de publicar um artigo relativo à dimensão negativa do direito fundamental à saúde e a possibilidade de se exigir judicialmente que o Poder Público se abstenha de praticar atos contrários a tal direito, exemplificando a propagação pelo Chefe do Executivo de medicamentos sem eficácia comprovada como conduta violadora, eivada de inconstitucionalidade.
Posteriormente, no dia 3/4/21, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 701, o Excelentíssimo Ministro Nunes Marques, do STF, concedeu medida liminar determinando que os Estados, Distrito Federal e Municípios se abstenham de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da covid-19, com a manutenção de protocolos sanitários de prevenção.
Vale ressaltar que a medida liminar vem à luz após o próprio Supremo haver decidido pela competência concorrente da União, Estado, Distrito Federal e Município para adoção de medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública decorrente do coronavírus, autorizando aos demais Entes, mesmo sem autorização da União, adotar medidas como isolamento, quarentena, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver e restrição à locomoção interestadual e intermunicipal em rodovias, portos ou aeroportos.
A decisão conferiu ainda interpretação conforme a dispositivos da lei 13.979/20, no sentido de que as medidas previstas na Lei devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo.
A esse respeito, considerando que as ações dos gestores públicos devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, sob pena de responsabilização, de igual modo entendemos que as ações do judiciário, que dispõem não apenas sobre a legalidade/inconstitucionalidade, mas sobre o mérito das medidas de enfrentamento, em substituição às ações dos gestores públicos, também devem estar consubstancias em documentação técnica e fundamentada.
Destarte, em que pese não esteja mais vigente a Medida Provisória 966, de 13 de maio de 2020, a qual dispunha sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, certo é que o STF já teve oportunidade de fixar algumas teses acerca da responsabilização de agentes públicos. Assim, colacionamos alguns dos entendimentos:
1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância:
I) de normas e critérios científicos e técnicos; ou
II) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente:
I) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e
II) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Nessa esteira, no que tange à proteção da saúde e da vida, a jurisprudência do STF se baseia em dois parâmetros: a) as decisões governamentais devem respeitar padrões técnicos e evidências científicas sobre a matéria; b) essas questões se sujeitam ao princípio da prevenção e ao princípio da precaução, ou seja, se existir alguma dúvida quanto aos efeitos de alguma medida, ela não deve ser aplicada. Isso significa que a Administração deve se pautar pela autocontenção.
Nesse contexto, no qual o Brasil já conta com mais de 300.000,00 (trezentas mil) mortes decorrentes do covid-19, imprescindível se faz a reunião de esforços de todos os Entes e Poderes, cada qual na sua esfera de atuação e com base em estudos e evidências referendados por organizações e entidades médicas e sanitárias, reconhecidas nacional e internacionalmente, assim como a observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, conforme citados alhures.
Desta sorte, sem adentrar ao mérito da essencialidade da atividade religiosa utilizada como fundamento da decisão do Excelentíssimo Ministro Nunes Marques, advoga-se que ao substituir as ações adotadas pelos gestores públicos, a referida decisão deveria estar amparada em fortes evidências técnicas e científicas, o que a priori, entende-se não restar configurada no caso concreto, porquanto a decisão não se baseou em nenhuma fonte apta a repelir as justificativas das ações adotadas pelos gestores públicos.
Do exposto, a decisão analisada mostra-se temerária, porquanto afronta ao direito fundamental à saúde em sua dimensão negativa. Para Jorge Miranda, a denominada dimensão negativa dos direitos a prestações, dispõe que "as normas programáticas, ainda que essencialmente se caracterizem como preceptivas (e não proibitivas), também possuem um sentido complementar negativo (ou proibitivo), visto que, além de vedarem a emissão de atos normativos contrários, proíbem a prática de comportamentos que tenham por objetivo impedir a produção dos atos destinados à execução das tarefas, fins ou imposições contidas na norma programática".
Logo, caso reste configurada uma violação constitucional a direito fundamental por decisão judicial, proferida por membro do judiciário no exercício de função atípica, portando-se como gestor público, infere-se que esses se submetem aos mesmos parâmetros para responsabilização aplicáveis aos administradores públicos, não havendo razões para concluir o contrário, se até o legislador pode ser responsabilizado pelo desempenho inconstitucional da função de legislar.
Assim, no atual contexto pandêmico, levando-se em consideração que o Supremo Tribunal Federal já consolidou entendimento acerca dos requisitos a serem observados pelos agentes públicos quando da adoção de medidas de enfrentamento ao covid-19, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos, indubitável à possibilidade da corresponsabilização de membros do judiciário, enquanto agentes públicos, quando atuarem fora dos limites da judicatura.