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A mineração brasileira na contramão

O decreto 10.657/21 atrapalha, ao mesmo tempo, a preservação ambiental, a saúde humana e o próprio desenvolvimento comercial da mineração nacional.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Atualizado às 12:24

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No último dia 25 de março de 2021 foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) o decreto 10.657/21, que "[i]nstitui a Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos - Pró-Minerais Estratégicos". Ainda que, aparentemente, o propósito do decreto seja alavancar o setor mineral brasileiro - que ocupa uma posição de destaque na economia nacional desde o século XVIII1 -, a possibilidade de a política e as estruturas criadas por ele serem um grande equívoco precisa ser abordada.

O decreto 10.657/21 criou um programa de "apoio" ao licenciamento ambiental de minerais considerados estratégicos. Contudo, não relacionou quais substâncias são efetivamente reputadas estratégicas, estabelecendo apenas que minérios dos quais "o País dependa de importação em alto percentual para o suprimento de setores vitais da economia", que "tenha[m] importância pela sua aplicação em produtos e processos de alta tecnologia"; ou "que detenha[m] vantagens comparativas e que seja[m] essencia[is] para a economia pela geração de superávit da balança comercial do País" podem ser classificados como estratégicos e, consequentemente, contar com o suporte do programa.

Dito de outro modo, minérios que são muito importados, muito exportados ou tecnologicamente importantes podem ser tidos como estratégicos; o que, na prática permite o enquadramento de qualquer substância mineral nessa categoria.

A análise dos projetos minerários elegíveis a integrar o Pró-Minerais Estratégicos será realizada pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos - CTAPME, também criado pelo decreto 10.657/21, e cuja composição não inclui órgãos ambientais (Ibama ou ICMBio), setores da sociedade civil (ONGs, associações de atingidos por desastres ambientais ou barragens) ou universidades.

Formado por representantes do Ministério de Minas e Energia - que o coordenará -, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia e Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o CTAPME obviamente fará uma análise eminentemente econômica dos empreendimentos cujo licenciamento ambiental merecerá a sua assistência, deixando os aspectos socioambientais à margem desse escrutínio.

É bem verdade que representantes de outros órgãos e entidades poderão ser convidados a participar de reuniões específicas do CTAPME; mas essa possibilidade não pode ser comemorada, pois além de depender de um chamamento - ou seja, de uma iniciativa do próprio CTAPME -, as entidades convidadas não terão direito a voto.

Também não se pode deixar de mencionar que o "formulário de apresentação de proposta de empreendimentos que demandam articulação interinstitucional para o licenciamento ambiental", incluído no anexo I do decreto, contempla alguns aspectos socioambientais, porém eles serão estudados por pessoas e órgãos ligados à Economia, que, naturalmente, se valerão de critérios igualmente econômicos. Donde se conclui que ainda que tenham muito boa vontade em prestigiar o meio ambiente e as questões sociais nos estudos - o que se suscita apenas para melhorar o debate -, os membros do CTAPME não possuem conhecimento para tanto.

Essa ligeira análise aproxima o texto do decreto 10.657/21 de ilegalidades e inconstitucionalidade que merecem ser apontadas, ainda que também de forma superficial.

Sob o aspecto constitucional, é necessário atentar para o fato de que a mineração é a única atividade citada nominalmente no artigo 225 da Constituição Federal, inteiramente dedicado ao meio ambiente. O fato de o § 2° desse artigo determinar que "[a]quele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente" denota a preocupação da Carta Magna com a atividade, haja vista os impactos e riscos ambientais que traz consigo.

O artigo 10 da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, por sua vez, determina que "[a] construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental".

Na mesma toada, o inciso I do artigo 2° da lei complementar 140/11 define licenciamento ambiental como "o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental".

Palmilhando esse caminho, sendo certo que o inciso IV do § 1° do artigo 225 exige estudo prévio de impacto ambiental (EIA/RIMA) para a instalação de qualquer obra ou atividade "potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente", uma interpretação sistemática dos dispositivos legais e constitucionais citados leva à conclusão de que: (I) toda atividade mineradora deve ser submetida a um processo de licenciamento ambiental2; e (II) nesse licenciamento deve ser exigido EIA/RIMA, o mais completo e complexo dos estudos ambientais - além do plano de recuperação de áreas degradas apontado pela Constituição Federal (artigo 225, § 2°, in fine).

A partir, portanto, da atenção e zelo da Constituição Federal, da legislação ambiental e da própria sociedade para com a atividade mineradora - intensificadas após os desastres minerário-ambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019)3 -, é incompreensível que um decreto estabeleça uma espécie de lobby interinstitucional com o propósito de "priorizar os esforços governamentais para a implantação de projetos de produção de minerais estratégicos", ou seja, de flexibilizar o licenciamento ambiental para a mineração - sobretudo no momento em que o Congresso Nacional está prestes a aprovar o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental.

Mas não é só. O decreto 10.657/21 é inapropriado também sob os aspectos geopolítico e econômico, e inoportuno se analisado a partir da perspectiva sanitária.

No primeiro enfoque, há que se ter em mente que governos estrangeiros estão prestando bastante atenção ao Brasil. Para ficar apenas em dois exemplos bem recentes, pode-se citar que, na semana de 28 de março a 04 de abril de 2021, o presidente norte-americano pressionou o Brasil por novas medidas de redução do desmatamento4, e deputados alemães pediram ao Congresso brasileiro que não afrouxe regras ambientais5, fatos que bem simbolizam a preocupação com que a política ambiental brasileira é observada externamente.

Numa vertente econômica, é certo que o mercado está cada vez mais voltado para empreendimentos que atendam ao critério ESG - ou seja, ambiental, social e de governança -, e a mineração não representa uma exceção. Ao contrário, segundo o presidente do Conselho Diretor do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Wilson Brumer:

[O] mundo caminha para evoluir do licenciamento ambiental para algo mais complexo, como uma licença socioambiental, para que as empresas possam se instalar. Os investidores, os conselhos de administração estão cada vez mais preocupados em saber se as empresas estão afinadas com os fundamentos de ESG, ou seja, não é um tema a ficar restrito a apenas uma área de uma companhia, mas está a mudar conceitos de gestão empresarial - e não apenas na mineração6.

Sendo assim, é possível que a flexibilização do licenciamento ambiental da mineração brasileira tenha efeitos opostos ao que busca, afastando investidores e parceiros comerciais, cada dia mais preocupados em manter relações e fazer negócios com empresas alinhadas aos padrões ESG.

Já a crise sanitária evidenciada pela pandemia de covid-19 - responsável, até o momento, por 2.842.135 mortes no mundo inteiro7 e 328.206 apenas no Brasil8 - consoante a Organização Mundial de Saúde, possui causas muito provavelmente animais, ligadas ao morcego9, o que revela um desequilíbrio ambiental.

Vê-se, portanto, que sob qualquer ponto de vista de que seja observado, o decreto 10.657/21 é inapropriado, para se dizer o mínimo, exigindo que seja, o mais brevemente possível, se não extirpado do ordenamento jurídico, objeto de profundo aprimoramento, para que se adeque ao que exigem a Constituição Federal, as leis ambientais brasileiras, a emergência sanitária, as relações governamentais e, até mesmo, o mercado.

_________

1 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. O ouro das minas. In: Atlas histórico do Brasil. 2016. Disponível clicando aqui. Acesso em: 05 abr. 2021.

2 Veja-se, ainda, o anexo 1 da resolução Conama 237/97.

3 Veja-se a lei 14.066/20.

4 DIAS, Maria Clara e ESTADÃO CONTEÚDO. Biden pressiona Brasil por novas políticas de redução do desmatamento. 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 abr. 2021.

5 DEUTSCHE WELLE. Quarenta deputados alemães pedem que Congresso brasileiro não flexibilize regras ambientais. 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 abr. 2021.

6 PORTAL DA MINERAÇÃO. ESG é caminho sem volta para mineração e outros setores empresariais. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 abr. 2021.

7 WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard. Disponível clicando aqui . Acesso em: 05 abr. 2021.

8 WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard. Disponível clicando aqui . Acesso em: 05 abr. 2021.

9 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Origins of the SARS-CoV-2 virus. Disponível clicando aqui . Acesso em: 01 abr. 2021.

Marina Gadelha

Marina Gadelha

Sócia das áreas de Direito Ambiental e Direito Minerário de Erick Macedo Advocacia. Doutora e mestre em Direito.

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