A nova lei de licitações e os métodos adequados de solução de conflitos
Dentre as inúmeras alterações trazidas, destacamos as que dizem respeito ao uso dos métodos adequados de solução de conflitos decorrentes dos contratos administrativos celebrados.
segunda-feira, 12 de abril de 2021
Atualizado às 12:24
Dia 1º de abril entrou em vigor a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133/21), revogando a lei 8.666 que há quase 30 anos estabeleceu as normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Dentre as inúmeras alterações trazidas, destacamos as que dizem respeito ao uso dos métodos adequados de solução de conflitos decorrentes dos contratos administrativos celebrados. É com muita alegria que vemos o legislador federal dando mais um passo na valorização dos meios alternativos à tradicional jurisdição, para resolver conflitos no âmbito do Poder Público.
Como se extrai da leitura do artigo 151 da nova lei, os meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, como a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem poderão ser utilizados nas contratações regidas pela lei.
O parágrafo único do citado artigo diz textualmente que as controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações, podem ser resolvidas pelos métodos alternativos.
O artigo 153 permite que os contratos já celebrados pela Administração Pública sejam aditados para conter cláusulas contratuais prevendo o uso dos métodos alternativos. Ou seja, estimula-se não só a utilização da conciliação, mediação, arbitragem e dispute boards em novas contratações, como também para as relações e contratos já existentes.
O artigo 154, por sua vez, estipula que a escolha dos profissionais que auxiliarão as partes a prevenirem ou a solucionarem os conflitos decorrentes da relação contratual deverá observar critérios isonômicos, técnicos e transparentes. O dispositivo cuida dos árbitros e dos membros dos comitês, não citando expressamente os conciliadores, negociadores ou mediadores. Mas nos parece claro que também para esses profissionais a escolha deve observar os mesmos critérios.
No artigo 138, II, mais uma referência é feita aos métodos de autocomposição quando o legislador prevê que a extinção do contrato poderá ser consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, se a Administração pública tiver interesse. No inciso III do mesmo artigo, destaca que a extinção do contrato poderá se dar por decisão judicial ou arbitral, ou seja, por um método heterocompositivo (jurisdição ou arbitragem).
A negociação, outro método eficiente de prevenir e solucionar conflitos, também aparece na nova lei em alguns dispositivos. No artigo 61, permite ao administrador público negociar com o primeiro colocado condições mais vantajosas; no artigo 107, permite a negociação da prorrogação ou extinção do contrato de serviços e fornecimentos contínuos; e no artigo 90, § 4º, estimula a convocação dos licitantes remanescentes para negociação, caso o licitante vencedor não celebre o contrato com o Poder Público.
Especialmente desde 2015, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil, lei 13.105, e da lei 13.140, que disciplinou a mediação judicial e extrajudicial no Brasil, os métodos alternativos como a conciliação, mediação, negociação, dispute boards, dentre outros, vêm ganhando espaço. A arbitragem, cabe destacar, já vem se desenvolvendo no Brasil há mais tempo, especialmente desde que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucionais dispositivos da lei 9.307/96.
As tensões e os conflitos são fenômenos inerentes ao convívio social; imaginar a inexistência deles seria ingênuo, mas buscar preveni-los ou resolvê-los de uma maneira mais eficiente, menos custosa (financeira e emocionalmente) e mais rápida, é medida essencial para contribuir para a pacificação social e para o desafogamento do Poder Judiciário que conta com mais de 80 milhões de processos aguardando julgamento. É aqui que a utilização dos métodos alternativos ou adequados de solução de conflitos ganha relevo.
Cada vez mais se tem entendido que o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF, que trata do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, pode e deve ser exercido de forma mais ampla, com o uso de ferramentas jurídicas que garantam às partes a solução dos seus problemas de forma mais satisfatória.
A Lei de Mediação prevê a autocomposição não só entre particulares, mas também entre entes do Poder Público. No art. 32 autoriza a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios a criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, com competência para: I) dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; II) avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e III) promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
Considerando que o Poder Público é o maior litigante brasileiro, já que mais da metade de todos os processos que tramitam no Poder Judiciário envolve o Estado, repensar a forma pela qual o próprio Estado soluciona seus conflitos é medida urgente.
Ainda nos deparamos com uma resistência à adoção dos métodos alternativos por parte das entidades públicas. Além da cultura da litigiosidade, acrescenta-se o clássico e tradicional princípio do Direito Administrativo da indisponibilidade do interesse público. Muitos procuradores invocam tal princípio como impedimento para conciliar ou mediar questões que envolvam entes públicos, mas nos parece que o conceito de indisponibilidade implica na impossibilidade de se renunciar ou transferir a terceiro o direito, não implicando, todavia, na proibição de buscar soluções consensuais para garantir o seu exercício.
Mas felizmente vemos relevantes movimentos dentro de diversas procuradorias estaduais e municipais para o desenvolvimento do instituto e a nova Lei de Licitações deu uma grande contribuição neste sentido.
A lei não só incentivou o uso dos métodos alternativos, como deixou claro que umas das maiores controvérsias que acabam desaguando no Poder Judiciário, quais sejam, as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, ao inadimplemento de obrigações contratuais e ao cálculo de indenizações, podem ser resolvidas de forma consensual.
Tal dispositivo, inclusive, está em total sintonia com o enunciado 19 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal e com o art. 32, § 5º da Lei de Mediação.1
Sem dúvida, a nova Lei de Licitações está antenada com as práticas mais modernas e eficazes de solução de controvérsias. Esperamos que, com ela, a Administração Pública invista seriamente nos métodos alternativos, construindo com os particulares soluções rápidas e inteligentes para os conflitos que surjam de suas relações contratuais. Todos sairão ganhando!
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1 Como destacamos em recente obra: "Os conflitos que dependam de autorização do Poder Legislativo para serem solucionados não poderão ser resolvidos nas câmaras. Por outro lado, a lei é expressa ao afirmar que conflitos que envolvam discussão quanto ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares podem ser tratados no âmbito das câmaras. Enquanto não forem criadas as câmaras de mediação, diz a lei que os conflitos poderão ser dirimidos nos termos do procedimento de mediação previsto no art. 14 e seguintes.
NETTO, Antonio Evangelista de Souza; LONGO, Samantha Mendes. A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos. Porto Alegre. Paixão Editores, 2020
Antonio Evangelista de Souza Netto
Pós-doutor em Direito. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Juiz de Direito de Entrância Final e Juiz coordenador do CEJUSC. Professor e coordenador do Núcleo de Ensino a Distância da EMAP.
Samantha Mendes Longo
Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania. LLM. em Direito Empresarial. Secretária das Comissões de Recuperação Judicial e de Mediação do Conselho Federal da OAB. Professora da EMERJ - Escola da Magistratura do Rio de Janeiro e da ESAJ - Escola de Administração Judiciária do TJ/RJ. Advogada do escritório Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados.