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Mais vacinas e mais desigualdade: O que esperar da autorização para que pessoas jurídicas de direito privado comprem vacinas para os seus

É fato que, atualmente e decerto pelos próximos meses, a produção mundial não será suficiente para atender a necessidade, que segue colossal.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Atualizado às 08:22

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Brasil e o mundo vivem um momento gravíssimo na luta contra os efeitos sanitários, sociais e econômicos decorrentes da pandemia do covid-19 e o caminho de saída passa necessariamente pela vacinação em massa. Enormes esforços estão sendo feitos para produzir e distribuir vacinas, as quais foram desenvolvidas em tempo recorde, em uma imensa e quase inacreditável vitória da pesquisa científica.

Porém, em que pese a grande tradição que o Brasil tem em campanhas de imunização e de já contar com um sistema de vacinação em massa consolidado e altamente eficiente, o país está enfrentando grande dificuldade para adquirir, produzir e distribuir os imunizantes. Vários fatores contribuem para este quadro e mereceriam ser analisados com apuro, mas, por ora, os olhos serão direcionados para um: a escassez de vacinas face à demanda.

É fato que, atualmente e decerto pelos próximos meses, a produção mundial não será suficiente para atender a necessidade, que segue colossal. E, ao mesmo tempo que a quantidade de pessoas infectadas continua a crescer, as medidas de distanciamento social e restrição de atividades - principal caminho para evitar novas contaminações - vêm sendo seguidamente confrontadas. O resultado é o aumento contínuo dos óbitos, do sofrimento, das sequelas físicas e mentais legadas pela pandemia.

Outra consequência é o incremento da corrida por imunizantes, numa disputa fratricida para ver quem consegue garantir mais doses. Em um cenário onde a demanda supera em larga margem a oferta, é esperado que quem tiver mais recursos e puder pagar o preço pedido pelos laboratórios farmacêuticos levará vantagem. E, assim, a competição se sobrepõe à solidariedade e os mais ricos serão salvos.

Este é o contexto que precisa ser considerado quando se analisam as iniciativas em curso no Congresso Nacional para permitir que pessoas jurídicas de direito privado comprem vacinas destinadas a imunizar seus funcionários e associados.

Em março deste ano foi promulgada a lei 14.125 que, dentre outros temas, permitiu tal forma de aquisição. Porém, o fez de maneira restrita pois, como definido em seu artigo 2º, as doses compradas por tais entidades devem ser integralmente doadas para o Sistema Único de Saúde até que todos os grupos considerados prioritários estejam contemplados. Após este momento, se veriam liberadas para distribuir e administrar 50% das vacinas.

Este escalonamento parece mitigar, em algum grau, a concorrência dos grupos privados com o governo na busca pelos raros imunizantes disponíveis no mercado, passando, ainda, uma ideia de que a iniciativa privada poderia dar os braços ao poder público, dividindo custos. Porém, menos de um mês após a promulgação da lei 14.125/21, o tema volta à pauta legislativa. Só que, agora, escancara-se a intenção - possivelmente presente desde início - de privilegiar alguns.

Na Câmara dos Deputados, tramita o Projeto de lei 948, que visa alterar a lei 14.125/21, para permitir a aquisição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado para aplicação em seus funcionários, colaboradores ou associados, com a contrapartida de doar a mesma quantidade de doses aplicadas para o Sistema Único de Saúde. O texto base do projeto foi aprovado em 06/04/21.1 No Senado foi apresentado projeto semelhante (PL 1.033/212), também visando alterar a mesma lei e instituir regras quase idênticas àquelas em debate na Câmara dos Deputados.

Ambos parecem caminhar para a aprovação, mas, mesmo que acabem por restar rejeitados, sua propositura e o grau de apoio que já amealharam são suficientes para justificar uma parada para reflexão.

Há que se levar em conta que este tipo de autorização lança as grandes empresas brasileiras e as associações de classe (também abrangidas, já que a legislação se aplica às 'pessoas jurídicas de direito privado') no mercado, ampliando a concorrência pela aquisição de insumos escassos. Obviamente, micro e pequenas empresas, comerciantes e prestadores de serviços, pequenas associações com baixa representatividade não terão espaço nem recursos financeiros para negociar contratos de fornecimento com os grandes laboratórios farmacêuticos.

Assim, tal norma tenderá a ampliar o abismo que caracteriza os diferentes estratos da sociedade brasileira. Ganha quem tiver a sorte de um emprego formal em uma empresa de grande porte. Ganha quem faz parte de uma associação forte, como as que congregam diversas categorias de servidores públicos. Ficam de fora os funcionários de micro e pequenas empresas, as quais concentram a maior parte da força de trabalho formal. Ficam de fora os trabalhadores informais e precarizados, cerca de metade do contingente populacional ocupado. Fica de fora a massa de desempregados formada pela estagnação econômica que aflige o país há anos e que foi reforçada pela pandemia.

E o problema não se limita às assimetrias internas que caracterizam o Brasil.

No mundo, há uma clara divisão entre países ricos, que estão conseguindo acesso às vacinas, e outros, para os quais a chegada dos imunizantes é incerta. Segundo notícia publicada pela BBC Brasil, há estimativas de que os países pobres só conseguirão vacinar sua população adulta em 2024. Se conseguirem.3 Quando agentes privados entram no mercado disputando doses escassas, a tendência natural é a subida dos preços e o direcionamento de novos contratos para os agentes econômicos que ofereçam maiores garantias, o que tornará ainda mais improvável que nações pobres consigam adquirir quantidades suficientes para atender às suas populações.

Ao permitir a aquisição de vacinas por particulares, o Legislativo brasileiro se alinha com a noção de que vidas são mercadorias, sujeitas, portanto, à lei da oferta e disponíveis para quem tiver mais recursos. Assume que o papel do Estado como provedor de saúde de forma universal pode ser mitigado, abrindo-se espaço para privilegiar os mais ricos. Chancela a lógica de desigualdade que marca de forma tão dolorosa a sociedade brasileira. Alimenta uma disputa nacionalista perversa que tanto mal tem causado a todo o planeta.

É certo que, em um mundo globalizado, assim como não ficou restrita a um país, a pandemia não vai acabar apenas para alguns. Ou ela é combatida de forma integrada, mirando a defesa das pessoas independentemente de qualquer condição, ou continuará a assolar a humanidade. Assim, é inevitável concluir levantando uma antiga, mas ainda atual questão: até quando alguns vão continuar acreditando que podem se proteger atrás de muros (ou anticorpos) enquanto deixam os demais expostos à própria sorte?

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1. Projeto de lei 948 de 2021. Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021.

2. Projeto de lei 1033, de 2021. Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021

3. BBC Brasil. Vacinas contra covid-19: quando o mundo todo estará imunizado contra o coronavírus? 06 de abril de 2021. Disponível aquiAcesso em 07 abr. 2021.

Marcus Firmino Santiago

Marcus Firmino Santiago

Pós-doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Doutor em Direito do Estado pela UGF/RJ. Mestre em Direito Público pela UNESA/RJ. Professor de Direito Constitucional, Teoria do Estado e Direitos Humanos. Sócio de Soraia Mendes, Marcus Santiago & Advogadas Associadas.

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