O Supremo Tribunal Federal e o artigo 212 do CPP: Ainda temos um longo caminho rumo ao processo acusatório
A ordem de questionamentos auxilie efetivamente na separação das funções dos atores processuais, deixando claro o lugar ocupado por cada um na dinâmica do processo penal, a possibilidade de complementação das perguntas pelo julgador ainda é ponto de tormento.
sexta-feira, 9 de abril de 2021
Atualizado às 12:39
Nesta semana, especificamente no dia 06 de abril, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua Primeira Turma (HC 187.035/SP), deu importante passo na consolidação do chamado sistema acusatória no país, dando efetividade (ou um início de efetividade) à previsão expressa do artigo 3º-A do Código de Processo Penal.
O caso concreto, de modo geral, tratava sobre a possibilidade de o juiz iniciar a inquirição de testemunhas, se sobrepondo à ordem imposta pelo artigo 212 do Código de Processo Penal. Na espécie, a magistrada singular se antecipava às perguntas da acusação e da defesa e iniciava a inquirição de todas as testemunhas do processo, deixando aos outros dois personagens processuais apenas a função de complementar tudo o que já havia sido exaustivamente questionado pela julgadora. Obviamente, a defesa insurgiu-se contra tal conduta, pois, em suma, a juíza se arvorou na condição de acusadora, questionando o réu sobre pontos que caberiam ao órgão de acusação, basicamente antecipando todos os questionamentos necessários para subsidiar a condenação que ela própria seria a responsável. À defesa nada sobrava, tornando-se impossível conduzir o processo segundo sua estratégia.
Ao se debruçar sobre o assunto, a Suprema Corte compreendeu que a ordem do artigo 212, imposta a partir da reforma do processo penal em 2008, deve ser seguida de modo rigoroso pelo julgador. Ao juiz, nessas condições, caberia tão somente complementar eventuais pontos omissos, sem que houvesse sobreposição de papeis no momento da inquirição das testemunhas.
A decisão, porém, foi longe de ser unânime. Parcela dos ministros, no caso o Ministro Barroso e Alexandre de Moraes, entenderam que a prática não ocasionava prejuízo ao réu, não sendo o caso de se reconhecer a nulidade. Por outro lado, prevaleceu o entendimento do relator Marco Aurélio, o qual foi acompanhado pela Ministra Rosa Weber e o Ministro Dias Toffoli, em que se compreendeu pelo rigor da forma imposta pela norma processual.
O julgamento demanda algumas reflexões.
Em primeiro lugar, merece elogios a decisão no que se refere à fixação das posições na dinâmica processual. Infelizmente, na prática judiciária, ainda se encontram ranços de amorfismo que movem os julgadores a assumirem múltiplos papeis na condução do processo. Embora haja uma forma rigorosa apontada pelo artigo 212 do CPP, ainda se tem uma mentalidade forense de que a forma dos atos, no modo como posto pela norma, seria uma "mera recomendação" aos atores processuais, não uma liturgia impositiva. Não é incomum que julgadores substituam efetivamente os acusadores e conduzam as inquirições de modo a formar seu convencimento ou a fim de consolidar a prova dos autos a partir de suas próprias convicções preexistentes. Ao saber que se quer um resultado condenatório, juízes fazem perguntas e "pressionam" as testemunhas até conseguir o relato que precisam. Mesmo quando o promotor - titular da ação penal e maior "interessado" na tese acusatória - se limita a perguntas básicas sobre o fato, sem maiores aprofundamentos, nota-se em certos juízes um inconformismo com a simplicidade do acusador e uma tendência em substituí-lo, alcançando a prova pretendida.
E isso não ocorre apenas com a inversão de ordem do artigo 212 do CPP.
Em que pese a ordem de questionamentos auxilie efetivamente na separação das funções dos atores processuais, deixando claro o lugar ocupado por cada um na dinâmica do processo penal, a possibilidade de complementação das perguntas pelo julgador ainda é ponto de tormento. E aqui o STF não se manifestou. O grande problema, nesse aspecto, reside no "disfarce" das chamadas perguntas complementares em verdadeiras perguntas acusatórias. Na prática forense não é incomum que juízes se utilizem dessa "prerrogativa" de perguntar por último e aproveitem para complementar as perguntas da acusação. Observando tudo aquilo que não foi questionado pelo Ministério Público, insistem em aspectos que não são apenas questões sobre pontos omissos, mas verdadeira inquirição complementar, pontuando questões que nunca foram levantadas pelas partes, seja acusação ou defesa.
E aqui mora o perigo.
No afã de corrigir os erros da acusação, juízes se tornam novos acusadores, coniventes com falhas do Ministério Público - reconhecendo como meras irregularidades ou mesmo "dando a dica" do que deve ser consertado - e extremamente rigorosos com a defesa, colocando qualquer alegação de nulidade na vala comum da "ausência de prejuízo". E nessa questão não interfere muito o respeito à ordem do artigo 212 do CPP.
Ainda é preciso ir além. O STF merece elogios ao buscar consolidar o sistema acusatório e impor o rigor das formas. Mas, de outra face, ainda é cambaleante ao tratar de temas mais delicados e que são cruciais na construção de um processo penal realmente afinado com a Constituição e com o devido processo legal. Nota-se, ainda, uma resistência em "sancionar" os erros acusatórios e uma tendência a relativizar as violações da tipicidade dos atos sob argumentos vazios de conteúdo concreto, como a "ausência de prejuízo". Isso, inclusive, restou claro no voto do Ministro Barroso e Alexandre de Moraes. Malgrado tenha ficado evidente que a magistrada substituiu a acusação, ainda se buscou "salvar" o processo sob o argumento do prejuízo. Ora, como não houve prejuízo? A juíza formou a prova acusatória, condenou o réu a 73 (setenta e três) anos. O que mais seria necessário para se entender pelo prejuízo?
Ainda se tem muito a caminhar nesse ponto.
Mas não só. É preciso que o debate sobre a posição do julgador no processo chegue efetivamente a uma pacificação. O uso indiscriminado da possibilidade de questionar pontos omissos tem levado juízes a simplesmente agir na condição de novos acusadores, corrigindo tudo aquilo que viram falhar na inquirição do Ministério Público. Há verdadeira deturpação do mandamento processual a fim de consolidar a prova acusatória. Quem pôde acompanhar a rotina de depoimentos da "Operação Lava-jato", por exemplo, muito bem viu que para muitos o embate era entre o juiz e o réu, como se o julgador tivesse de assumir uma posição de antagonista. E isso, novamente, não será o mero respeito a ordem do artigo 212 do CPP que irá impedir. É preciso mais.
De nossa parte, não entendemos em absoluto que o juiz não possa formular perguntas - e não ignoramos o amplo debate que ainda existe na academia sobre o tema -, mas, por outro lado, cremos que essa prerrogativa deve ser limitada, sendo possível apenas para fins de explicação de um fato obscuro na primeira explicação e sem possibilidade de inovar qualquer inquirição, limitando-se apenas àquilo que foi questionado pelas partes. Sem que o assunto tenha sido levantado pela defesa ou acusação, não poderia o julgador tratar sobre elas. Mas é um assunto delicado, sem dúvida.
O que se quer dizer, com tudo isso, é que ainda temos um longo caminho a seguir no intuito de fortalecer o processo penal acusatório no Brasil. Iniciativas louváveis, como o julgamento da Primeira Turma do STF, merecem elogios, mas não podem ser vistas de modo ingênuo. Ainda há muito o que se fazer. O objetivo, pois, está em se apontar os acertos, mas também em se indicar pontos de tormento que ainda não estão bem resolvidos.
Douglas Rodrigues da Silva
Mestre em Direito pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo UNICURITIBA. Professor de Direito Penal Econômico das Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais. Advogado Criminal do escritório Antonietto & Guedes de Castro Advogados Associados.